sábado, 3 de dezembro de 2011

Temas de Filosofia Moderna


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DENUNCIE O FASCISMO BRASILEIRO QUE ESTÁ ATUANDO NAS INSTITUIÇÕES DE ESTADO COMO RIO DE JANEIRO


Temas de Filosofia Moderna



  
                                                                      Eliane Colchete 



                                                                                     Livro I : os pensadores do período moderno

           1 /   Descartes : A loucura e a refutação do ceticismo


             Descartes começa o processo da dúvida metódica com o argumento sobre a incertitude dos sentidos. Como prover a fundamentação das ciências se não se está completamente certo sobre os conhecimentos mais comuns? Mas o que ele faz a seguir é encenar a objeção mais usual que se pode antepor ao procedimento dubitativo proposto: negar a própria pertença ao corpo é loucura, ou seja, negar filosoficamente certas evidências dos sentidos não é exeqüível.
          O parágrafo 5 dessa meditação inicial enuncia a estratégia cartesiana para contornar a objeção através da hipótese do sonho, que é filosoficamente aceitável pois embasada na tradição filosófica a partir do averroísmo, já com Siger de Brabante sustentando que somente a evidência dos sentidos não pode garantir que isso que eles evidenciam não passa de sonho. Na utilização desse argumento se torna claro que Descartes está transpondo nesse trecho os problemas herdados da tradição medieval, formulando-os em novo sentido.
           Pois logo que ele torna a encenar uma objeção ao seu próprio empreendimento dubitativo metódico, isto é, à hipótese do sonho, relaciona-a ao procedimento de composição mais característico do período final da idade média, a composição ou mistura de elementos do real conforme a livre imaginação assim como nos quadros de Bosch e nas ilustrações de textos, conforme observado por Bakhtin. O que Descartes vai encenar como impossibilidade também dessa hipótese é seu modo mesmo de produzir-se.
            A  mistura imaginária resulta da união de coisas reais e sempre se conserva o elemento do real em todas as possibilidades da imaginação, como por exemplo a cor real utilizada para compor a figura inteiramente fictícia. A enunciação dessa nova objeção conduz à postulação da impossibilidade do procedimento dubitativo, desta vez pela evidência dos elementos mais simples e inegáveis do real, o que pode ser ilustrado pelos objetos da matemática.
            Ora, desde o início havia sido proposta a dúvida com o objetivo determinado de fornecer uma efetiva fundamentação às ciências. Assim, ao tratar essa objeção posterior à postulação da dúvida, Descartes mostra que ela só garante algumas dentre as ciências, isto é, aquelas que tratam somente das coisas mais simples e gerais. A transposição da hipótese tardo-escolástica e renascentista  – como   a potência de Deus (potentia Dei) é absoluta, tudo o que existe poderia ser de outro modo ou apenas sonho – se completa, pois Descartes mostra que a validez daquelas coisas mais simples e gerais, objetos da arimética e da geometria, permanece independente da hipótese.
Mesmo se tudo fosse sonho sua validez continuaria indubitavelmente afirmada. Mas a argumentação assim conduzida enuncia os limites da episteme – no sentido foucaultiano do termo, isto é, como estrutura epocal de conhecimento – da época tardo-feudal e do Renascimento. Pois ela se movimenta no interior do círculo da necessidade escolástica (Deus faz o mundo conforme as leis necessárias da racionalidade) ou da liberdade renascentista (Deus faz o mundo conforme sua livre vontade).
A hipótese do Deus falseador parece ser uma reformulação cartesiana da opção pela liberdade desde que todo o trecho se desenvolveu como uma hábil transposição da tradição. Se Deus não pudesse nos enganar, ou se ele fosse enganador, isso deveria ser indiferente ao número de vezes, logo também a qualquer partição entre as ciências. Que o círculo de liberdade e necessidade tenha surgido como limite da episteme do Renascimento, que em certos aspectos prolonga o período tardo-feudal, significa em Descartes, a meu ver, o seguinte. Ela não logrou fornecer uma fundamentação epistemológica capaz de garantir a validez das ciências.
Mas isso de modo tal que aquilo mesmo que infirmou o acordo escolástico como postulado da necessidade, isto é, o postulado da liberdade, ao mesmo tempo condicionou o desenvolvimento autônomo das ciências e conduziu ao ceticismo filosófico. Descartes enuncia o dilema como círculo fundado por e tendendo para a Potentia Dei absoluta. Mas desse modo ele enuncia que o período anterior havia se exaurido, isto é, que aquilo que o Renascimento havia conduzido como desenvolvimento da aplicação da Potentia Dei encontrava-se sem possibilidades de fornecer a fundamentação daquilo mesmo que desenvolvia.
O próprio procedimento dubitativo encena, mais profundamente, a impossibilidade da época anterior a Descartes por ele sentida,  que no entanto consiste ainda no fundo do empreendimento cartesiano, isto é, no estado de coisas com que se ele se defronta. Tudo o que se oferece como ciência desenvolveu-se na liberação em relação à fé mas como domínio precisamente do indemonstrável, do infundável, do puramente contingente, quanto ao fundamento.
Assim é interessante ver como Descartes joga com a possibilidade desse mesmo movimento “continuar” de modo a que o ceticismo que deriva da Potentia Dei venha a atingir o próprio domínio que o possibilitava agora negando que a existência seja criação de Deus.
O ceticismo radical que a dúvida exercita chega à sua consumação. Não ocorre mais a posibilidde de objetar seriamente o procedimento dubitativo se for levado ao absurdo o jogo de premissas que sustenta o desenvolvimento do pensamento renascentista.
Descartes de certo modo fechou o ciclo, mostrando que aquilo que se oferecia como justificativa apaziguadora da consciência da época e que frente à acusação formal de ceticismo encenada pela dúvida ofereceria suas meias verdades sob a forma das objeções reencenadas na enunciação do procedimento dubitativo, se desmorona de modo que a época se vê assim como é, cética porque incapaz de fundar aquilo mesmo que permite produzir. Todas essas dissimulações repõem afinal a época frente a si mesma, mas desse modo a desmascara e a faz confessar a própria verdade mais íntima.
A consideração que empreendo aqui sobre o procedimento dubitativo cartesiano vai permitir agora a aproximação à polêmica de Foucault e Derrida sobre esse mesmo trecho inicial das Meditações conforme amplamente desenvolvido por Ferry – Renault. Trata-se de uma divergência de interpretação acerca do lugar da loucura na economia da dúvida.
Foucault havia observado que Descartes não procede do mesmo modo frente às duas possibilidades de negação da evidência dos sentidos, a loucura e o sonho. Assim o sonho, como a ilusão, conserva em relação a verdade uma certa simetria pois a estrutura da verdade conjura as conseqüências céticas daquilo que proponho como sendo a hipótese escolástica, a criação correspondendo à necessidade racional.
Mas Foucault afirma que nesse trecho Descartes exclui simplesmente a loucura pois estabelece uma implicação entre pensar e não ser louco. Com isso propõe que se pode demarcar nesse trecho, nitidamente, a mudança de regime de pensamento, do Renascimento à modernidade.
Foucault faz intervir Bosch, com suas figuras compósitas, entre outros exemplos, como ícone do prolongamento da concepção medieval da loucura, concepção impregnada da possibilidade renascentista, enunciada como absoluta liberdade de Deus em relação à criação.
A loucura na concepção medieval, como “manifestação cósmica obscura”, na expressão de Foucault, seria o avesso possível do mundo como o animalismo do homem ou as misturas loucas das coisas. Essa concepção ilustrada por Bosch se opõe de um lado à fase mais estabilizada da Idade Média, em que a figura do animal se utilizava ainda apenas como antropomorfismo ilustrando tendências do caráter humano ao invés de animalização mesma do homem.
Mas enquanto Bosch e o procedimento da composição se relaciona à concepção cósmica da loucura, no prolongamento do período tardo-medieval, Erasmo é a posição própria do Renascimento que engloba a loucura na sabedoria tornando-a pessoal e humana. Essa é a concepção crítica da loucura. Pois a razão descobriu seus limites no momento em que se separou da fé.
Em relação à Razão de Deus toda sabedoria humana não passa de loucura, mas ao ser humano o pensamento de Deus pareceria loucura se ele pudesse se alçar até lá. A razão real do ser humano consiste portanto, no Renascimento, em aceitar seus limites, saber que está numa relação de reciprocidade com a loucura.
Aproximem-se um pouco, filhas de Júpiter! Vou demonstrar que o único acesso a essa sabedoria perfeita a que chamamos cidadela da felicidade, é através da loucura”. A expressão de Erasmo ilustra essa concepção renascentista, francamente contrastante com a do início da modenidade que Foucault designa a “época clássica” e que se enuncia precisamente no trecho de Descartes que estamos analisando: “Mas quê? [aqueles que negam a evidência da própria pertença ao corpo] São loucos e eu não seria menos extravagante se me regrasse por seu exemplo”.
           Excluída a loucura como qualquer termo de proporcionalidade com a dúvida a sério,  resta o sonho. Mas se o sonho atravessa a corrente de imagens do real, este subsiste em sua validez naquilo mesmo em que é o que permite sonhar, isto é, o real subsiste nessas imagens mesmas que se deturpam. Somente agora a relação entre os termos é antitética. Então torna a ser contrastável os extremos, ou loucura ou razão. Ou imagem composta onírica ou imagem real básica. Ou tudo ou nada. Ou o nada saber da dúvida hiperbólica e do ceticismo, seja ele mascarado ou professado como em Montaigne, ou algum fundamento que garanta todo conhecimento existente. Esse é bem o modo de pensar da “época clássica” e da Reforma protestante, conforme observou Foucault.
           Ora, segundo Renault e Ferry, Derrida acolhe  a “História da Loucura” mas contesta a Foucault que Descartes, nesse trecho, tenha excluído a loucura. Muito inversamente, ele teria feito silêncio sobre ela até relançá-la espetacularmente na hipótese geral do Deus falseador. O procedimento cartesiano só poderia ser apreciado conjugando-se esse trecho à segunda meditação. Pois se a hipótese do sonho não invalidava as ciências matemáticas, a hipótese da loucura – isto é, conforme Derrida, a hipótese de ter sido completamente enganado por Deus – não invalidava o fato mesmo de pensar. A fissura do irracional se insinua portanto como diferença no texto que é a própria fundação moderna da razão como identidade.
          O interessante na análise de Ferry-Renault sobre esse assunto é que eles utilizam ambas as versões interpretativas, de Foucault e Derrida, para desqualificar o método genealógico e mais geralmente uma certa tendência dos anos sessenta que, como expressamente enuncia Foucault sobre suas próprias influências, alia Nietzsche e Heidegger.
          A resposta de Foucault à objeção de Derrida, como eles reportam, estabeleceu um corte metodológico no interior dessa tendência mais geral: Foucault propondo que o texto não pode ser compreendido sem recolocar-se a exterioridade a partir da qual ele se enuncia e Derrida afirmando o célebre “nada há fora do texto”.
         Quanto à resposta de Foucault, Ferry-Renault detectam uma circularidade na estratégia utilizada. O trecho das Meditações teria servido para esclarecer a posição da época acerca do irracional como excluído, enquanto agora é a estrutura da época que serve para esclarecer o sentido do trecho como essa exclusão. Já quanto à interpretação de Derrida, eles antepõem que, inversamente ao que Derrida por ela estabelece e mesmo que esteja tecnicamente correta, nada implica que a “fissura da diferença” esteja nesse texto cartesiano, “no coração mesmo da constituição da identidade”.
          Assim Ferry-Renault pretendem mostrar que a genealogia nietzscheana conduz à regressão ao infinito, o heideggerianismo à superinterpretação. Quanto a Descartes, o que teria feito equivaleria, conforme eles, a enunciar a objeção da loucura à postulação da dúvida – só um louco poderia duvidar da pertença ao próprio corpo – mas não a responder à objeção. Ele, inversamente, a teria ignorado deliberadamente à falta de qualquer possibilidade de tratá-la e a seguir teria radicalizado a dúvida pela hipótese do sonho, filosoficamente fundada, ao invés de correlata ao que poderia fazer um louco.
         A partir de que Ferry – Renault convidam , por prudência, a verificar a totalidade da armação argumentativa da “História da Loucura” já que esse “erro” não seria de simples detalhe mas teria se instalado no seu próprio cerne. Nesse momento não seria interessante estender a verificação assim empreendida que vai, em seguida, se utilizar da “lógica da democracia” de Gauchet e Swain para contrapor ao esquema foucaultiano do capitalismo como sistema de crescentes processos normativos de exclusão, a partir do que seriam as vantagens inegáveis ao homem, do progresso social na modernidade.
         O que me parece relevante aqui é que Ferry-Renault enunciam também, em todo caso e de modo um tanto contraditório, tanto em Foucault quanto em Derrida, que no texto de Descartes se trata, sim, de um modo ou de outro, de exclusão da loucura ou ao menos do seu estabelecimento como o radicalmente Outro da razão.
Pois no desenvolvimento da hipótese Derrida, Ferry-Renault demonstram inicialmente que conforme ele, o cogito “precede a separação entre razão e loucura” mas também que “a eliminação da loucura só se efetiva com a refutação da hipótese” do Deus falseador. Não se deixa de afirmar, como Foucault, que há exlusão ou contraposição imperativa,  de loucura e razão, na época clássica e mais precisamente em Descartes.
Enquanto no Renascimento, conforme vimos em Foucault, ela é a sua contrapartida. Só se é sábio, à época de Erasmo, sabendo que perante Deus toda sabedoria humana é vã. Inversamente, só se é sábio, à época de Descartes, tendo reconhecido que se pensa, logo não se pode ser louco. E na contemporaneidade nova transformação: louco ou sábio, tudo é humano demasiadamente humano. Ao louco se trata como a qualquer doente, isto é, como a qualquer desvio da natureza.
Ferry e Renault não chegam a desenvolver o que efetivamente está em jogo, entre Derrida e Foucault, em termos de visões efetivamente contrastantes da filosofia moderna. Na perspectiva de Derrida, trata-se, não obstante a especificidade do texto cartesiano, da mesma operação metafísica que estabelece para o Ocidente um fechamento a priorístico das suas possibilidades de intelecção do devir, e essa operação é originariamente platônica. Ainda que por outro viés interpretativo, Derrida mantém quanto a isso a visão que Heidegger desenvolveu do processo metafísico-ocidental em termos de uma história do ser que vem a ser a do ocultamento do devir, desencadeada por Platão, conceitualmente finalizada por Nietzsche, mas na verdade perpetuada pelo modo de ser "técnico" cientificista-capitalista.  
 Foucault, inversamente, pensa a filosofia moderna como algo que não poderia estar numa ruptura com o a priori histórico dessa época específica, abrangendo os séculos XVII e XVIII. Assim, seu problema, inversamente a ser como a operação metafísica permanece a mesma desde a Antiguidade até a atualidade, foi o de mostrar inicialmente o corte radical dessa época em relação a toda concepção precedente de sociedade, linguagem e conhecimento, o que a filosofia de Descartes como esse lugar em que se enuncia uma razão inteiramente auto-garantida, transparente a si,  ilustra.  Mas a partir daí trata-se para Foucault de mostrar como a época ulterior, desde o século XIX, de fato não mantém o mesmo a priori, ainda que algo se comunique entre ambos os períodos como pertencentes a uma mesma "modernidade" efetivada por aquele corte radical.
 Examinando com maior minúcia o percurso dos pensadores, teremos meios para observar que o período moderno em filosofia não é matéria de consenso na atualidade quanto à sua significação histórica, e que entre Foucault e Derrida a pluralidade de visões a esse propósito não se limita.


            2 / Descartes e Locke

             Nota-se a sutileza de Descartes. Nos “Postulados”, aqueles  “Que Provam a Existência de Deus”, é “em quinto Lugar” que ele utiliza a expressão “não lhes será menos claro e evidente”,  a certeza de que Deus existe do que a da atribuição de par ou ímpar a dois ou três.
            Pode-se pensar que ele está afirmando que a existência pertence a Deus assim como a paridade ao número dois. Mas pode-se bem desdobrar, tendo em vista aquilo que o texto enunciou anteriormente, essa aplicação do “assim como”.
            Pois o que se fez até aí, operação que constitui o percurso da “dúvida” e que se repõe nos postulados, foi o deslocamento do papel daquilo que se considera normalmente como sendo a prova. E com esse deslocamento, ocorre a transformação da consistência ou meio do que é pensar, essa sendo a mudança desencadeadora da era moderna em filosofia.
           O que o início do texto exige é que se desloque o papel da prova, desde o ter que ser provada a dever ser exercitada. A realidade da distinção substancial entre corpo e espírito, nos Postulados, assim como a auto-evidência do Sou ao Penso nas Meditações, deve ser exercitada, vivida, ao invés de simplesmente constatada como uma verdade lógica.
         Ora, isso se estende à prova da existência de Deus, de modo que Descartes pode, finalmente, de certo modo, excusar-se da acusação de ter cometido um círculo.
         Pois o percurso da filosofia cartesiana se relaciona à postulação básica de que “Nós não podemos ter nenhum conhecimento das coisas a não ser pelas idéias que concebemos a seu respeito e, por conseguinte, não devemos julga-las a não ser segundo estas idéias e até pensar que tudo quanto repugna estas idéias é absolutamente impossível e implica contradição”, conforme a carta a Gibieuf. Assim a questão que se coloca inevitavelmente, e que se torna central, é o critério de validez das idéias, ou seja, aquilo que designaremos a questão da existência.
        Essa questão pode ser ainda enunciada pelo desdobramento da essência, bastante utilizado nessa idade "clássica", conforme o seu ser objetivo ou formal. O ser objetivo da essência é relativo ao seu conteúdo “ideal”, o ser formal é relativo ao seu conteúdo “atual” no sentido da existência ou natureza efetiva daquilo que ela se representa idealmente, isto é, objetivamente. Então a questão pode ser enunciada assim: se todo o nosso conhecimento das coisas só pode ter lugar como conhecimento das nossas idéias, como julgar o seu valor formal, como não atribuir a todas elas, de direito, enquanto idéias, apenas o seu ser objetivo?
        Vê-se a propriedade e o alcance da dúvida, tal como enunciada por Descartes. A dúvida põe essa questão: por enquanto, uma vez tendo-se descoberto que aquilo que conhecemos são idéias, não coisas, nada poderia garantir que tudo o que cremos existir não seja apenas quimérico ou puramente ideal.
         Até então, na medida em que o ser das coisas mesmas se identificava como aquilo que explicava o seu aparecer como tal, essa questão não poderia surgir, não teria sentido. O ser da coisa, eis o que a razão captava como forma ideal assim como o olho capta a aparência como forma visual ou imagem. A idéia era concebida como uma espécie de imagem inteligível mas sua realidade estava na coisa. Ora, uma vez que se reduz, pelo exercício da dúvida, toda a operação do conhecer apenas àquilo de que se tem a evidência, o resíduo limitando-se assim ao fato de pensar, a idéia se destaca da sua - agora apenas provável – origem na coisa, ela é puramente oferecida no pensar.
         A existência não poderia estar assegurada apenas pela facticidade da coisa, precisando de algum critério de validez tão a priorístico, tão auto-evidente quanto o pensamento é ao ser que pensa. A dúvida desloca a questão da existência, das coisas ao próprio pensar. A questão cética não é mais sobre o dado ao pensamento pelo mundo, sobre o ser do mundo; mas sim havendo somente o pensamento, a questão é sobre o que o pensamento pensa, alguma coisa ou nada enquanto pensamento, o que seria loucura. Vemos porque o tema da loucura é de fato imanente a esse novo postulado da razão, mas isso é complexo porque só haverá postulação se a razão nada tiver de comum com a loucura. Assim, ao menos quanto a isso, se poderia objetar a Derrida que em Platão não há função alguma para a dúvida.
          Vimos que agora a questão central da existência deriva do postulado básico do conhecimento como sendo relativo às idéias. Esse postulado, ele mesmo, é exercitado como auto-evidência do pensar, e por isso funda a legalidade da distinção entre corpo e espírito. Assim se reverte todo o pensar apenas ao pensar. Como se pode então perceber, o existir é necessário ao pensar enquanto pensar. Mas não àquilo que é pensado.
O empirismo na sua enformação moderna nasce desse problema. Ele o resolve, como em Locke, pela origem das idéias e pela distinção na origem. Assim basicamente a idéia permanece sendo relativa à captação da coisa mas o espírito, não sendo totalmente passivo, acresce a essa repectividade dos data sense uma ordenação, uma atividade reflexa. A oposição que Locke introduz entre idéias de sensação e idéias de reflexão realizam a partilha moderna entre experiência e espírito, ou melhor, dota a experiência mesma do seu sentido moderno de ser de algum modo espírito.
Mas o modo como Descartes reduziu a evidência impede uma tal via, uma vez tendo fundado a completa irredutibilidade entre o corpo e o que dele deriva como dos sentidos, e o pensamento. Ou tendo reduzido toda sensação a ser já pensamento de modo que sua origem extramental não tem nenhum meio de ser de direito assegurada. Pode-se fazer aqui uma incisão, aprofundando o sentido desse desacordo. Para isso basta observar como se o desenvolve entre os Ensaios de Locke e os Novos Ensaios de Leibniz, quando se trata da questão das máximas ou princípios.
Locke afirma inicialmente que todas as idéias têm o mesmo grau de evidência. Leibniz-Teófilo, defendendo o inatismo das idéias ao invés de sua origem na captação dos sentidos, se contrapõe a isso utilizando a orientação básica do cartesianismo pela qual há diferença de natureza entre o princípio ou máxima, por exemplo A = A, A não B, e o exemplo a que ele se aplica, por exemplo, vermelho não é azul. Ora o que Filaleto-Locke poderia responder, conforme a personificação do diálogo leibniziano, senão que a máxima é uma generalização daquilo que assim se considerou, posteriormente, como sendo o exemplo?
Voltaremos a Leibniz mais tarde. Mas essa incisão apenas mostra que o postulado cartesiano possui uma legitimidade formal a que o empirismo só pode contrapor outro postulado, que faz uso de um outro sentido do termo "evidência” . A evidência empirista envolve as coisas, a do cartesianismo as exclui. A evidência empirista é a experiência atual do mundo, a do cartesianismo é a experiência atual do Eu a si mesmo. O que é mais inegável? Não se pode responder sem ter se colocado no interior da perspectiva que torna essas alternativas excludentes, mas dentro dessa perspectiva a formalidade do método cartesiano permanece impecável apesar de que talvez para o comum das pessoas, e mesmo a meu ver quanto a isso, só a evidência empirista pareça ser razoável.
           Ora, desenvolvendo as conseqüências formais do postulado, a questão da existência daquilo que é pensado parece insolúvel, a não ser que aquilo mesmo que é pensado ofereça um grau de evidência equivalente ao fato de pensar. Assim a prova ontológica da existência de Deus se enuncia: “ aquilo que concebemos clara e distintamente pertencer à natureza ou essência de alguma coisa, pode ser afirmado verdadeiramente dessa coisa; mas tendo cuidadosamente inquirido o que Deus é, nós concebemos clara e distintamente que pertence à sua verdadeira e imutável natureza que ele existe; assim podemos afirmar verdadeiramente que ele existe”.
          O que permite o deslocamento do papel da prova é a necessidade – de que se deriva seu alcance ontológico. A existência é necessariamente envolvida em Deus, logo é necessariamente envolvida em algum pensável. Conhece-se a imediatez da objeção: do caráter objetivo da idéia não se tem ainda fundamento do ser formal da essência. Pelo fato de que proponho, em pensamento, que há o ser cuja existência é necessária, não significa ainda que ele existe em si, independente do eu que o pensou.
          Mas se compreendemos o raciocínio cartesiano, a objeção não se endereçou àquilo que realmente se afirmou. E o que se afirmou foi a idéia de uma existência necessária, previamente a ter se colocado a implicação do seu referente. A existência necessária é uma idéia que não pode não existir, pois a tenho. Sim, mas é só uma idéia, objeta-se. Mas, responde-se, não se trata de uma qualquer outra idéia que depende de uma relação com o objeto para ser provada. O critério da existência está nessa mesma idéia, o ser que existe necessariamente não pode não ser ou não existir – necessariamente. O que pensamos em Deus é a existência, o que está em questão pelo novo viés do racionalismo cartesiano.
         Ora, uma vez mostrando-se que há algum pensável tão auto-evidente quanto o pensar, a questão da existência pode ser resolvida e a prova da existência de Deus recebe esse novo papel de prova da Existência mesma, em geral. Revela-se assim a sutileza daquele “não lhes será menos claro e evidente”“sem outra prova”. Pois que os princípios e máximas existem independentemente dos exemplos, que dois é par e três é ímpar, só se torna “manifesto” efetivamente porque a existência necessária é postulável de Deus, não apenas “como se”.
        Um “ser manifesto” (ser par ou ímpar) depende do outro (a existência necessária de Deus), não apenas “assim como” não tendo dificuldade para conceber um não precisamos ter problemas para conceber outro. Observe-se a importância da expressão conhecer “sem provas”, nesse trecho. Pois o que pareceria é que Descartes deveria estar provando suas afirmações, contra as objeções apontadas por Mersenne. Mas a impecabilidade do método cartesiano depende, para ser alcançada, da compreensão de como ele age, o que desloca e como isso se comporta no papel novo que se lhe reservou, depende principalmente de ser exercitado mais do que simplesmente envolver uma questão de “raciocínio”.
        O ser objetivo depende assim do ser formal, quanto ao critério da existência que vimos, por intermédio da idéia de Deus, se tornar imanente ao pensamento ele mesmo. Descartes o torna particularmente explícito no exemplo do céu azul.
        A propriedade de ser “produzida por seu objeto” que certas idéias, como a do céu azul, exibem, se apresenta geralmente como condição de seu valor formal, da validação de sua existência extramental. Mas o que Descartes mostra, como enfatiza Gueroult citado por Lebrun, é que a ligação causal dessa propriedade como fundamento formal de existência é ela mesma um princípio de todo conhecimento, mesmo de qualquer experiência sensível. O princípio de causalidade,  interno ao pensar, liga toda idéia a uma existência de um certo modo determinado. Assim o objetivo pode e deve ser causado pelo formal sem que seja preciso por isso afirmar a preminência da experiência sobre o espírito, isto é, sem que seja preciso negar o inatismo de nossas idéias.
Parece-me que a prova a posteriori da existência de Deus – a idéia que temos de um ser mais perfeito que nós deve necessariamente ter sido posta em nós por um ser efetivamente mais perfeito – não desempenha a mesma função, no interior do cartesianismo, do que a prova ontológica.
Pois a prova ontológica resolve, como vimos, a questão da existência na imanência do pensar reservando a existência necessária à idéia nuclear de Deus. Nesse sentido a prova ontológica é ou funciona como o princípio mais geral da existência imanente ao pensável de modo que todas as outras existências de todos os outros princípios pensáveis dependem dela. Mas não assim a derivação causal do criador por sua idéia no ser criado. Aqui a prova é tão aplicada como qualquer outra derivação do objetivo pelo formal na imanência do pensar.
Há contudo uma relação como que de dependência entre essas duas provas. É que a prova ontológica implica um paradoxo na sua negação, é certo, mas não tem como escapar da acusação de ter posto em evidência apenas um ente de razão, como a figura geométrica cuja existência é sua definição.
É verdade, como já assinalei em termos do que impulsiona as respostas de Descartes aos seus objetores,  que aquilo que o cartesianismo afirma é que se o conceito de Deus abrange mais do que uma definição geométrica, se a  existência necessária não sé uma definição do mesmo tipo do que ter certo número de lados, é porque ela tem uma força apodítica, assim como o Ego, na empostação da filosofia cartesiana. Mas Descartes assume as conseqüências dessa certeza, tanto quanto da sempre presente objeção. Ele crê poder fazer ver que tendo sido absolutamente ou necessariamente estabelecida a existência de Deus, é possível encontrar aquele algo mais que permite reencontrar Deus assim como se está acostumado a pensar nele, não apenas como o sujeito de uma definição geométrica, um ser de razão.
Deus criador é reencontrado no argumento por causalidade – deve haver mais perfeição na causa do que no efeito, nós que somos imperfeitos temos a idéia do ser perfeito, portanto ela só pode ter sido colocada em nós por Deus que nos criou. Esse argumento não “deriva” do anterior mas vemos que repousa de certo modo sobre algo mais constringente que se expressa como prova ontológica. Mas assim se mostra que o argumento a posteriori não se pôs de modo supérfluo e que, bem inversamente, ele permite evidenciar a face humana do cartesianismo, por exemplo, por que se pode afirmar que não se trata de um simples deísmo, ainda que o deísmo se tenha proposto tantas vezes como derivado de Descartes.
Penso que se pode afirmar que Descartes funda o uso husserliano do termo “imanência” ao localizar aquilo que mais tarde se conceitua como o dasein heideggeriano na espessura do Cogito, na transcendentalidade do Ego. Assim Descartes abre a via dessa imanência transcendental na modernidade. Husserl, nisso fazendo lembrar a atitude de Bachelard, também considerava que sua própria filosofia não ultrapassava as limitações do cartesianismo sem na verdade conceder-lhe um acabamento radical. Assim Husserl estende o epíteto de neocartesianismo à sua fenomenologia já definida como “um novo tipo de filosofia transcendental”.
A justificação dessa opção se encontra algumas linhas à frente, bem no início das “Meditações Cartesianas”. Trata-se da atualidade, como do “sentido eterno” do pensamento de Descartes, pois o que esse pensamento operou foi o “novo” da filosofia, sua transformação integral desde o “objetivismo ingênuo” ao “subjetivismo transcendental” de modo que Husserl vê no inacabado moderno dessa transformação a tarefa contemporânea de todo pensar.
Engloba-se aí a exigência de uma fundamentação das ciências que elas mesmas não logram fornecer, mais a crítica do viés positivista que separa filosofia e ciência em unidades autônomas irredutíveis. O que se propõe assim como tarefa é nada menos do que a consecução de uma ciência universal. Mas essa tarefa – contra a “fé” da multiplicidade irredutível de disciplinas e objetos que se estava consolidando no alvorecer da modernidade – estaria já, na origem, como revolução do cartesianismo em filosofia.
Ora, a fundação dessa separação da ciência, com o corolário de seu ideal de crescente especialização, está bastante relacionada com o empirismo. Pode-se afirmar que se apresenta como resultado histórico da separação de fé e razão que vimos vir se implementando desde a pós-escolástica.
A autonomia da razão, desde aí, já envolvia a complexidade de investimentos que se iam progressivamente especializando e se aproximando da formulação do método experimental por Galileu. Assim creio ser precipitado creditar a essa autonomia o primado da experiência que o empirismo e a prática científica acabaram por instituir. Ou o seu inverso. Mas sim que ambos os fatores se desenvolvem como um feixe de influências, envolvendo a efetividade das transformações que estão no alvorecer do mundo moderno.
Podemos distinguir esses fatores mas não devemos procurar estabelecer qualquer um como causa dos outros e sim conservar a sua interdependência no tempo.
A construção desse empirismo, porém, envolve momentos historicamente precisos. Como já enunciava Francis Bacon, seus momentos evoluem de modo duplo, pars destruens e pars construens. Destruição dos “ídolos”: os da “tribo” (superstições que se mantém pela recusa preguiçosa de observar os casos de predição errônea, como na astrologia); os da “caverna” (conservação de hábitos apenas derivados da tradição); os da “praça pública” (erros derivados do uso inadequado ou pervertido das palavras); os do “teatro” (erros derivados da aceitação sem crítica dos preceitos de “autoridades” como autores famosos, pessoas de posição social prestigiosa, etc.). E construção do método científico, que em Bacon é bastante detalhado mas não chega à clareza sintética que se observa em Galileu.
Bacon se notabiliza assim mais por seu pars destruens do que pela positividade do método que ainda prescreve como objetivo epistêmico, o atingir da forma ou essência, a coisa em si, localizando-se portanto mais na continuidade de pós-escolástica e Renascimento do que na modernidade estrita. A linha de demarcação pode então ser traçada entre Bacon e Galileu como percurso da destruição dos ídolos à consecução positiva do método experimental. Já o objetivo epistêmico do método de Galileu é o enunciado da lei que prescreve o comportamento do fenômeno.
          Mas é somente com Locke que o empirismo pode ser efetivamente afirmado – enquanto doutrina filosófica consistente. Pois não se trata apenas de fornecer uma descrição da prática científica, que assim como a escada de Wittgenstein deve-se inutilizar após o uso, isto é, que só serve enquanto atuada nessa mesma prática. Com Locke há uma atividade conceitual aplicada às questões rigorosamente filosóficas do conhecimento.
         Assim o pars destruens lockeano se dirige às idéias inatas, a todo o arcabouço puramente lógico-dedutivístico que dominava até esse momento a imagem do pensamento válido. É na verdade um ato de importância incalculável. Não que se posa afirmar que seus enunciados jamais se propuseram anteriormente, mas sim devido à síntese que aí se produz, ao novo modo pelo qual esses enunciados recebem seus pesos no interior do sistema.
         Em todo caso o que ocorre a partir daí é que os fatores atividade teórica ou fundamentação epistemológica das ciências especializadas – talvez um epíteto mais adequado do que apenas “experimentais” – e a prática mesma dessas ciências se tornam cada vez mais autônomos e independentes enquanto regiões de conhecimento, até resultar na cisão das próprias ciências em naturais e humanas.
        A filosofia subsiste, sem dúvida, mas com freqüentes incursões em territórios eles mesmos já em vias de especialização, principalmente dentro da área das humanidades, de modo que se criaram núcleos ambíguos. Assim como na teoria literária em relação à literatura ou a epistemologia em relação às ciências. A filosofia atravessa esses campos, é responsável por eles informando-os de dentro mas não tem como circunscreve-los ao modo de uma rubrica disciplinar definitiva.
        Pode-se afirmar que a epistemologia não deve ser justaposta à teoria literária, pois a epistemologia tem sido arrolada como disciplina filosófica, o que não é o caso da teoria. Mas como considerar Piaget filósofo, ele que realiza – e deseja expressamente que se o considere assim – pesquisa experimental ou ao menos observacional? Os exemplos se multiplicam. A unidade da filosofia poderia mesmo ser posta em questão. Como reunir ontologia e epistemologia sob seu domínio unívoco? Se a epistemologia por vezes anuncia pretender efetivamente solapar a legitimidade de toda metafísica enquanto pretensão de “filosofia primeira” – já que como tão bem expressou Canguilhem, não existem verdades primeiras, no início estava o erro.
           Retornando à questão de Husserl e sua tarefa enunciada de uma ciência universal, pode-se observar a adequação do epíteto neocartesianismo relativamente a seu empreendimento. O percurso da “introdução à fenomenologia” como que replica aquele das meditações de Descartes. Os três ângulos dessa replicação poderiam ser designados: o ter que ser exercitado da pretensão à evidência absoluta; aquilo que lhe é correlato como a afirmação de “evidência” no sentido racionalista de ser inerente a princípios apodíticos, isto é, independentes da experiência; logo, a proposição da tarefa de construção da ciência desses princípios, e por isso “universal”. O centro desse triângulo seria então a subjetividade transcendental como evidência “pura”.
Ora, é justamente aqui que incide o “neo” de Husserl, como também o sentido de sua contemporaneidade. Pois na perspectiva de Husserl o Cogito que centraliza o percurso de Descartes não teria se elevado efetivamente ao transcendental, permanecendo na atribuição meramente geométrica do apodítico.
Realismo transcendental” cartesiano, esse “contra-senso”, conforme a expressão de Husserl, na verdade falseia o sentido da transcendência por conceber o caráter apodítico do Cogito à maneira de substância espiritual real alinhada à realidade outra da substância material. Descartes teria permanecido demasiado empírico, seu espírito é “mente” ou espírito existente, ao invés de princípio de uma idealidade absolutamente irredutível a qualquer realidade dada “posterior” à subjetividade transcendental.
É interessante notar que aquilo que observamos sobre o alcance ontológico da prova da existência de Deus, assim como o caráter exercitado do “Eu Penso”, parecem conduzir a uma apreciação mais favorável à Descartes, nisso pelo que parece que se pode deduzir de seus escritos que ele tinha plena consciência do que separava esse tipo de certeza daquelas decorrentes apenas da constringência lógica. Creio mesmo que esse é o problema filosófico de suas meditações. Pois essa intuição que ele parecia querer por força comunicar não tem como se “comprovar”. Aqui se atinge a margem do conceito, mais propriamente, da filosofia.
O percurso vivido por Husserl poderia ilustrar o que estou querendo enfatizar. Sabe-se que ele muitas vezes hesitou quanto aos resultados teóricos da fenomenologia. Algo dessa insegurança se entrevê pela expressão “sempre novos e insuficientes” aplicada, no texto que estamos observando, a todos os escritos que tratam de conduzir ao idealismo subjetivista, incluindo Descartes. Husserl por um lado vê a dificuldade, por outro sabe, ou pensa, que ela deriva da ilusão infinitamente constrangedora do que considera o objetivismo “ingênuo”.
Ora, o problema se torna agudo quando se pretende derivar da presentação conceitual (filosófica) a exigência epistemológica (científica). Pois a intuição de que há algo mais apodítico do que a mera implicação lógico-geométrica é usada como fundamento de uma exigência que quer desqualificar a pretensão à validez das ciências realmente existentes porque derivada de um pretenso saber absoluto. Mas esse saber absoluto não pode ser demonstrado – daí o ter que ser exercitado da prova, a recorrência da insuficiência dos argumentos, etc. Mais, esses mesmos argumentos só podem ser transpostos na forma de constringência lógica, sendo a isto que afinal se reduz toda evidência de qualquer princípio.
O “logo” que liga o “penso” ao “sou” se pretende mais do que uma definição geométrica ao mesmo tempo que o que funda a exigência dessa anterioridade sobre a evidência empírica é ser exclusivamente lógica e por aí auto-evidente. A ambigüidade se instala nesse “auto” da evidência. Exercitando o pensar transpomos o mero raciocínio e atingimos o ser. Contudo, não se vê como a dúvida que atinge tudo – mesmo a verdade matemática, na hipótese do Deus falseador – não atinge a ligação de inerência do Eu ao Sou. O “logo”do Cogito parece infirmar qualquer empreendimento “fenomenológico”, pelo menos no sentido idealista de Husserl.  Mas de fato ele só repõe, na sua discursividade, o fato fenomênico - enquanto lógico - de se estar sendo.
Contudo a formulação do transcendental pode ser bem conduzida por vias que não se instalam na mera denegação da evidência empírica, ou melhor, que não se fundam na duplicidade do termo evidência. Assim o transcendental kantiano já se instaura sobre um outro estilo de filosofar, integrando de algum modo a positividade do empirismo, ou melhor, ultrapassando realmente a distinção de empirismo e racionalismo.           
   Mas se essas demarches já apontam para desenvolvimentos posteriores de pesquisa, por ora é preciso reconduzir à ambiência do cartesianismo e estender a problemática desse locus de nascimento das alternativas empirista e racionalista.


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Certos aspectos da crítica de Husserl a Descartes se reencontram, na contemporaneidade, voltadas ao próprio Husserl. É importante situar bem as perspectivas. A questão não é fazer de Descartes o precursor de Kant, o Cogito o “mesmo” que o Transcendental, apenas com outros termos. São conceitos que coalescem em planos epistêmicos – unindo assim de algum modo a Epistémê de Foucault e o plano de imanência deleuziano – irredutíveis.
A noção de transcendental como o que é independente da experiência surge na Escolástica. Ens, res, unun, aliquid, bonun, verun (ser, substância, uno, algo, bom, verdadeiro), são os seis transcendentais listados por São Tomás que, conforme Abbagnano, designam “propriedades que as coisas têm em comum, e que por isso excedem ou transcendem as diversidades dos gêneros” a que se podem atribuí-las.
Kant utiliza o termo de modo inteiramente outro, como condição da própria experiência, reduzindo-os como formas a priori da razão: “chamo transcendental todo conhecimento que se ocupa, não dos objetos mas do nosso modo de conhecer os objetos”. Assim nem todo conhecimento a priori é transcendental. Pois esse último não se aplica a tudo o que é simplesmente independente da experiência e sim só ao que a antecede sem ser porém “destinado a outra coisa senão a tornar possível o mero conhecimento empírico”. Conforme Abbagnano, contudo, nem sempre o uso desses termos nos textos de Kant preservam essa distinção.
Observa-se  a irredutibilidade de Kant a Descartes. O transcendental torna possível o empírico mas de modo algum está nele diretamente acessível. Só se pode alcançar sua realidade conceitualmente, por dedução, ele é pensável mas não como uma experiência do fato mesmo de se estar atualmente pensando. Enquanto a evidência do cogito, como vimos, exige a adesão empírica, o ser exercitado, para ser demonstrado como realidade conceitual.
Mas a crítica que se endereça, de muitos lugares, a Husserl, e que relança a crítica de Husserl a Descartes, de certo modo prolonga também a crítica que Deleuze enuncia sobre Kant. Trata-se sempre da acusação de ter decalcado o transcendental do empírico, ou com relação a Descartes, de ter recolocado aquilo que refutava a dúvida sobre aquilo mesmo que ela excluía. Isso, a meu ver, já poderia ser objetado a Platão, pois ele enuncia que a ideia nada tem a ver com o ser empírico da coisa, mas aquilo que ele atinge em termos de ideia por meio do exercício lógico da lingaugem, é uma identidade personificável apenas pela coisa assim como empiricamente acessível.
  Um pensamento como o taoismo ou o budismo, por exemplo, jamais postula para o real além do empírico uma realidade que iria fornecer a mesma identidade do que foi negado como real nos termos do empírico. Mas isso implica, inversamente a Kant, que não se pode fundamentar o conhecimento fenomênico além do seu valor "prático", isto é, humano (cultura/espiritualidade) e empírico (ciências). Essa será precisamente a crítica dos pós-kantianos românticos, especialmente de Schelling e Hegel, a Kant.
 Em Deleuze, que não atendeu ao verdadeiro propósito dos pós-kantianos que consiste em transferir ao histórico o locus do absoluto ao mesmo tempo transformando a noção de absoluto em somente o histórico, a crítica ao transcendental kantiano não se endereça a fim de atingir uma realidade impensável como no orientalismo, e sim para transformar a doutrina das faculdades, isto é, conceituar como as faculdades - da linguagem, da imaginação, etc., são engendradas no incosnciente. Mas aqui se encontra justamente o problema instaurado entre filosofia e ciência, na modernidade. Pois, que interesse pode ter esse tipo de desenvolvimento, que intercepta todas as questões em marcha na neurociência, mas não tematiza os reais constituintes da realidade cerebral que se está estudando? Deleuze não tematiza apenas o "psicológico", nesse ponto, obviamente.

                                                                          
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Penso, logo existe o ser – seria uma conseqüência boa, mas antiga,  Penso, logo existe pensamento – é uma conseqüência demonstrada, boa e contemporânea que ao mesmo tempo em que é lançada desloca o domínio de toda “evidência”, põe no mesmo lance o tema do inconsciente. O pensamento de modo algum se reduz à região de visibilidade que é a do sujeito empírico. Ao invés de explicar, o Ego precisa ser explicado. Mas penso, logo (eu) sou, eis aí uma conseqüência que parece duvidosa e que no entanto é bem clássica, cartesiana, de fato indemonstrável na sua ligação lógica, que não por meio do exercício de se a estar afirmando.
Ora, isso pode desde já iluminar uma tese cara a Foucault, aquela que se apresenta em As Palavras e as Coisas. Pois, como vimos anteriormente, o que se enuncia aí é que o “homem” é na contemporaneidade, não antes, sendo correlato das ciências humanas que o criam enquanto objeto de saber. Mas essa contemporaneidade, que se instala a partir do século XIX, surge com o limite epistêmico que sela o fim do período clássico que se estende entre os séculos XVII e XVIII, isto é, surge com o tema do inconsciente. Já vimos como Foucault utiliza a terminologia dessas épocas, designando o contemporâneo como o “moderno” e o moderno como o “clássico".
Assim o “sou” cartesiano não seria a surgência do “homem” que o enuncia mas tão somente a do sujeito de pensamento correlato aos objetos do mundo. O sujeito moderno não corresponde ao “homem” contemporâneo, corresponde sim à dobradura do mundo em signos ou idéias e matérias ou coisas.
Heidegger estava certo quando hesitava quanto à inserção do aristotelismo na rubrica onto-teo-lógica que sem dúvida se aplica a Platão. O “pré-socratismo” de Aristóteles se vê nisso pelo que seu mundo permanece uno, é de modo genuíno comunicável ao da physis grega. A teleologia não arrasta os seres ao pensamento sem ter estado sempre inscrita na sua mais íntima constituição enquanto substância composta, real, efetivamente subsistente.
O mundo platônico não subsiste, precisamente, como tal, sua não sub-sis-tância sendo o que há para revelar, para desmascarar, através de Sócrates. O platonismo instaura dois mundos? Na verdade ele desloca o ser do mundo, não é o mesmo significado a recobrir essa homonímia “mundo das aparências”, “mundo das idéias”. Um pouco como no cristianismo, o mundo é das aparências, o que é das idéias é o real que não é deste mundo, pois a realidade puramente ideal sempre se defrontou, desde esse início no pensar, com o mesmo problema. Ela não pode se dar como concretude fenomênica, mas seu estatuto transcendente, independente da experiência, só pode ser conceituado sobre a rubrica do cognoscível, logo decalcando-se sobre o fenomênico.
Mas também sob certo ponto de vista se pode afirmar que sim, são dois mundos o que instaura a filosofia platônica pois o mundo das aparências também possui uma alma, também tem o caráter do fundado naquilo em que não pode se furtar ao real de que deriva, de que depende como de sua necessidade – intrínseca, pois a metéxis, a participação na idéia é aí constitutiva da coisa. Esse seria um argumento mais coerente  a Derrida. A meu ver, o platonismo realmente não afirma dois, mas somente um mundo ideal.
E eis que o pensamento  moderno se instala numa duplicação que não se afirma numérica mas qualitativamente. O mundo da vida realmente se reduplicou no momento em que se tornou esférico. A Eurásia encontrou seu Ou(t)ro, a América. Mas esse duplo material precisa ser idealmente dominado pelo que lhe sobreveio assim de fora. O que a Epistémê moderna instaura, o a priori histórico do clássico, pode começar a ser visado nesse ser dobrado de um mesmo mundo que se desdobra em duas metades – tema que se reencontrará desde Descartes, em Leibniz, em Spinoza e mesmo no Empirismo. Mas note-se como o transcendental kantiano representará o limite dessa (des)dobradura.
E é aí também que se pode inserir as críticas a Husserl – de Cavailles, Granel e Foucault. Ora, o que Foucault mostra é que a aparente cisão maior que pôde ser polemicamente afirmada entre positivismo, marxismo e fenomenologia, na verdade não chega a ocorrer. Pois a religação sempre se restitui na imanência arqueológica do que Foucault designa o “postulado antropológico”, isto é, essa ambiência contemporânea que é a do pensamento do “homem”.
Assim a análise do vivido, a fenomenologia, protesta sua antecedência de direito sobre tudo aquilo que o positivismo e o marxismo reclamarão como dados imediatos, a natureza e a história. A fenomenologia busca falar da experiência originária, subjetividade (Husserl) ou corporeidade (Merleau-Ponty), anterior à natureza assim como a experiência da vida recolhe o que nela se oculta e/ou se mostra enquanto cultura ou “espessura semântica”. No entanto, como afirma Foucault, não é isso justamente preencher ainda mais cuidadosamente “as exigências apressadas que foram postas quando se pretendeu fazer valer, no homem, o empírico pelo transcendental”?
Essa pretensão é porém a marca do contemporâneo naquilo pelo que nossa época se localiza no “pós” em relação ao kantismo. Isto é, quando a questão, desde o século XIX, não está mais na fundamentação de uma ciência da natureza, como ainda era a motivação essencial de Kant, mas sim nesses novos domínios que as empiricidades novas – da vida, do trabalho e da linguagem – descobriram. O homem pensa o que ele não pensa, anima essa vida cuja rede é inapreensível à sua consciência, produz no entrelaçamento de forças produtivas cujas leis não se derivam da imediatez de suas decisões, utiliza uma linguagem cujo sistema manifesta sua autonomia irredutível a toda prática do falante.
Esse quádruplo deslocamento em relação a Kant (da verdade ao ser; da natureza ao homem; do conhecimento prévio ao desconhecimento prévio; do não-fundado filosófico frente ao fato científico à consciência filosófica do não-fundado científico) assinala a entrada no contemporâneo, esse domínio do impensado, que é o do ser humano enquanto duplo empírico-transcendental.
Mas como no kantismo, para Foucault,  esse duplo empírico-transcendental continua a ser aquele em que  “se tomará conhecimento do que torna possível o conhecimento”. Assim se vê a co-pertença desses partidos que na aparência se defrontam, pois essas condições de possibilidade se determinam: a) seja pela positividade das condições de conhecimento formalizadas pela natureza biológica e corpórea (positivismo) ; b) seja pela positividade das condições de conhecimento formalizadas pela história, sociedade ou economia (escatologia, marxismo); c) seja pelo que a análise fenomenológica do vivido tentou restituir numa teoria do sujeito – a subjetividade desempenhando o triplo papel de reconduzir à pureza do transcendental em relação ao empírico, reconstituir a interconexão presente dessas duas instâncias, reintegrar as experiências do corpo e da cultura.
É nessa superposição de atribuições que a fenomenoogia repõe o Cogito, pôde se propor como neocartesianismo. Granel já o observa, como identidade de situações entre Husserl e Descartes. Assim se a crítica de Husserl é que Descartes substancializou a consciência, logo não se elevou ao transcendental, Husserl mesmo não teria feito mais do que estender ao infinito o horizonte da substância, esvaziando-a ao modo de sujeito puro mas instituindo-a como espaço teórico mesmo. Pois a redução do mundo só se faz sob a evidência do mundo subsistente.
Isso ressoa ainda na crítica de Cavailles, que numa démarche epistemológica bastante próxima de Bachelard e Canguilhem, enfatizando o papel das rupturas no progresso científico ao analisar o devir das matemáticas, irá mostrar que o posterior não mantém com o anterior o caráter de unidade que prescreve a consciência fenomenológica enquanto evidência justificadora única de todo conhecimento – justamente o que implica renunciar ao “primado do Cogito” pela aceitação de que “o que marca a história é a submissão do transcendental às suas etapas”.
Pode-se mostrar como essa observação de Cavailles ajusta sua démarche na localização da Epistémê contemporânea, assim como conceituada por Foucault, já pela consideração do transcendental inteiramente constituída como duplo do empírico. Pois aí onde o empírico só manifesta o prolongamento de palavras, as continuidades ou desenvolvimentos de domínios, o que se atua é a ruptura, o corte, o rasurar. Mas o que atua essas rupturas, o transcendental de Cavailles, não se poderia identificar como o espírito humano que a ciência intermedia ao em-si, mas sim como esse objeto “original em sua própria essência, autônomo em seu movimento”, absoluto elemento “no sistema dos existentes”, isto é, a ciência mesma.
Em todo caso na contemporaneidade trata-se sempre de pensar o impensado, iluminar o empírico pelo transcendental. Mas vê-se o modo como isso é o inverso do empreendimento clássico. Para Descartes, com efeito, o corpo e o mundo são uma espécie de fuga. O tema são as idéias inatas que só estão no espírito, no pensamento. Mas as variações e fugas podem se ramificar, extravasar a centralidade do tema. Assim Gassendi é só “carne”, Descartes é só “espírito”, mas ambos são reduções. Na prática, como Descartes antepõe a Gassendi na carta que lhe endereçou,  é impossível evitar a fuga, o prolongar das variações.
Mas na ordem das razões, isto é, para dar conta do real, só as reduções importam, a obra se define pelo tema, o ser pelas idéias. A extensão é irredutível ao espírito mas isso porque o extenso é o mensurável, não o sensível. Ora, na contemporaneidade, que seria do processo sem o sintoma, da ruptura sem o erro que a condiciona, do para-si independente do em-si, da langue sem nenhuma parole? Não só não seria conceituável mas não seria, simplesmente. A natureza dupla do ser humano contemporâneo se mantém, efetivamente, sem que seja possível reconduzi-la ao simples jogo de essência e aparência.
O que importa agora, então, é perguntar: mas como reservar aí, por menor que seja, algum espaço de contestação? Se a fenomenologia nunca pôde conjurar “o insidioso parentesco” com as análises empíricas sobre o humano, onde está a verdadeira contestação do positivismo, do cientismo ou da escatologia determinista? O que Foucault vai responder envolve o qualificativo “aberrante” restringindo o termo “questão”. O aparentemente aberrante da questão se deve a que ela desloca isso que é o a priori de nosso pensar. Nietzsche o formulou: trata-se de indagar se esse objeto dos saberes, o “humano” - existe.
Trata-se, como na pesquisa arqueológica de Foucault, de mostrar como ele sobreveio, como ele não esteve sempre lá, como ele não se confunde com a “velha palavra” – homem – que o designa. Observa-se aí também a propriedade da terminologia. Pois se o que habitualmente se chama o contemporâneo é o que ele conceitua como o moderno, pensar o sobre-humano, o super-humano, o ?-humano é ou seria instalar-se, precisamente, na pós-modernidade, mas de fato Foucault não o supôs já exequível e o que enunciou estar realizando era apenas a delimitação do estruturante ao saber desse objeto impróprio, o homem.
Ora, isso envolve inevitavelmente a questão da verdade. Pois sem dúvida a crítica fenomenológica configurou esse território epistemológico “moderno” numa fratura que põe lado a lado problematizações profundamente divergentes daquilo que se designa verdade. Pode-se afirmar que a fenomenologia contesta o que é, para Bachelard e Canguilhem, axiomático, a saber, que a verdade é de competência exclusivamente científica, e que à verdade científica, somente, compete eliminar o falso.
Mas se a própria ciência não pode exibir o horizonte único de sua inteligibilidade, se ela se funda no erro, na retificação, na dependência do objeto, como é que ela poderia protestar essa competência, ela, que vive sob o signo da crise e do provisório? Para Husserl a verdade é o absoluto – a idéia é um “objeto eterno”, para usar a terminologia de Whitehead. Husserl não teria dificuldade em reverter dessa crítica à falta de princípios da ciência atual, a uma postulação da fenomenologia como o seu remédio, já que o que a redução à subjetividade transcendental implica é uma eidética ou ciência mais universal desses objetos enquanto essências.
Todo e qualquer objeto, com relação à consciência imanente, para Husserl é transcendente. O Cogito cartesiano fornece uma via de acesso à descrição das percepções e domínios que lhe correspondem, conforme as “Investigações Lógicas”. O Cogito demonstra assim a evidência da existência dos objetos da percepção interna e o caráter puramente fenomenal ou intencional dos objetos da percepção externa que não seria, portanto, de todo percepção do ser-efetivo do objeto.
Assim, se a percepção externa experimenta exclusivamente os fenômenos físicos, a interna é a única a ter evidência e infalibilidade e lida apenas com os fenômenos que chamaríamos psíquicos. Husserl, como vimos, afirma que o caráter epistemológico é absolutamente o mesmo em ambos, pois em todo caso o objeto é transcendente relativamente à consciência. O que a atitude fenomenológica visa é precisamente inibir os posicionamentos transcendentes.
Todo fenômeno é vivência do “eu”, todas as vivências podem vir a ser objetos das intuições reflexivas internas. Assim fenomenologia é a doutrina das vivências em geral. Neste sentido é fenomenologia “pura” pois não trata de fatos psicológicos ou leis da natureza mas apenas das puras possibilidades e necessidades do Cogito puro, os atos que se manifestam como essenciais à constitutividade dos objetos na consciência.
Compreende-se pois, a crítica de Cavailles, partindo do ponto de vista de uma epistemologia do conceito. Ali onde Husserl vê uma atividade absoluta como subjetividade transcendental, a epistemologia do conceito que reúne grosso modo Cavaillés, Bachelard e Canguilhem, vê apenas a subjetividade empírica hipostasiada, ou, como em Granel, infinitizada, já que o transcendental para eles não tem o caráter de nenhuma subjetividade. É o “espírito científico”, metáfora de uma atividade que só pertence à ciência mesma, na temporalidade puramente lógica da pesquisa. Um conceito não poderia de modo algum ser enunciado não importando o tempo ou o lugar, no interior de uma disciplina, assim como deveria ser possível se concebido ao modo da espontaneidade pura dos atos da consciência transcendental conforme a fenomenologia.
A epistemologia do conceito também não é a da teoria. A teoria é certo sistema de conceitos mas o que a epistemologia do conceito busca são as mutações que certas noções sofrem de modo a produzir-se como objeto científico que de modo algum preexiste como “essência”, sendo sempre “da ordem do construído”, conforme a expressão de Fichant – sem que isso implique qualquer “sujeito construtor”. Efeito sem causa, resultado ou artefato, assim são os objetos da física, como o “efeito Zeeman” , no exemplo de Fichant.
Em todo caso, como na fenomenologia, o objeto está numa relação com o ato mas muito inversamente ao horizonte de uma subjetividade de que se pode apreender absolutamente os eternos atos fundadores, a dispersão se encontra no âmago da criação científica pois esses atos dependem aí de uma temporalidade, imanente a cada ciência, que reúne instrumentos, pré-conceitos, horizontes de pesquisa, contribuições pessoais, etc.
As implicações desse uso do termo epistemologia “do conceito” devem ainda ser problematizadas, porém. O próprio Canguilhem o notou, ao propor o termo “perceito”, que se define como objeto de percepção, sem referência a uma realidade ou coisa em si. Assim, se “conceito” equivalendo a “noção” está ainda na região “epistemológica” da visibilidade, da evidência e do “livresco”, a entrada no perceito já se realiza no âmbito da “fenomenotécnica”, da produção da experiência, do “laboratorial”. Ora, esse problema terminológico também está relacionado com a questão da verdade. Pois mesmo distinguindo-se quanto as suas condições de emergência, conceito e perceito guardam uma mesma relação de forma e conteúdo com a verdade.
Pode-se enunciar o problema desse modo: como conceito poderia ainda guardar uma relação com a validez, se ele não se instaura nos quadros da cientificidade, como no caso do conceito filosófico? Lembra-se aqui o postulado do neoempirismo pelo qual tudo o que não se verifica pela experiência, enquanto enunciado, como por exemplo as proposições metafísicas, rigorosamente não tem sentido.
Mas seria o caso de perguntar, que é então a verdade? Pois esse cientismo de modo algum sequer propôs a questão, pressupondo, ao que parece, sempre que se trata de uma mera adequação à coisa, ou à verdade do fato. O que se torna produzido são apenas as condições de emergência dessa verdade enquanto tal. Nesse âmbito qual seria o espaço teórico da indagação: que é mais verdade, o produzido/encontrado da ciência ou o horizonte absoluto da subjetividade fenomenológica?
Ora, deslocando-se a questão na perspectiva do a priori histórico vemos que “a verdade” não pode ser reputada como de competência exclusiva da ciência. Pois o descontínuo das epistemologias do conceito nunca se põe na perspectiva crítica de sua própria emergência, ele apenas descreve a série de rupturas e os meios que lhe são manifestamente correlatas. A epistemologia ela mesma não é uma ciência.
 Além disso, se a crítica "construtivista" num sentido aproximável ao de Piaget, desses autores, é válida quanto à pretensão fenomenológica de manter na uniformidade do evidente à consciência  aquilo que de fato é construído em níveis irredutíveis de realização, quando se trata das ciências humanas eles reduzem a problematização a uma adjacência das ciências naturais como um critério que lhes é pefeitamente extrínseco, mas que por ser manejado como se fosse estruturante, serve para invalidá-las. Ora, é a própria história dessas ciências que se vê comprometida na sua reconstituição, por tal critério - como se vê bem no tratamento de Canguilhem a propósito da psicologia.
 Aqui, porém, é ainda o cenário da antecedência das ciências humanas construídas nessa terminologia e com essa pretensão científica, o que nós estamos aproximando. Nesse trecho vimos algo da repercussão do que se desenvolve nesse cenário moderno ainda na atualidade teórica, como o que esclarece o que assinalei quanto à dificuldade de apreender a significação histórica do período que é a mesma de se determinar a sua verdadeira ruptura em relação à "contemporaneidae". Agora será oportuno retornar ao que nele se constituiu.


  3 - A filosofia de Leibniz
                                                                                                    

             O leibnizianismo pode parecer muito surpreendente na ambiência do século XVII, em que o mecanicismo cartesiano detém uma posição tão preeminente, em que mesmo o espinozismo conserva a consistência do pensar no sentido de um princípio irredutível aos seres individualizados mas que fornece de todos estes a inteligibilidade, mais geralmente, nesse século em que tudo repousa sobre o alicerce inquebrantável da necessidade como da ordem universal, lembrando aqui o a priori histórico-clássico foucaultiano.
          É interessante notar que em exposições sobre o pensamento de Spinoza é comum constar um capítulo sobre os registros da estranheza que sua filosofia provoca em muitos autores. Com Leibniz, se isso não ocorre, não deixa de haver sempre algum comentário sobre o caráter desconcertante de sua produção conceitual, quer por sua exuberância em cada campo – assim como observado por Deleuze – quer pela multiplicidade de campos do saber em que Leibniz inova.
       Bréhier, por exemplo, observa que com Leibniz já se está num universo de pensamento bastante afastado daquele de Descartes, Spinoza ou Malebranche. E se considerarmos o caráter transicional do seu conceito de percepção, a noção de impressões que se ligam num continuun que porta ao infinito, não nos parecerá forçado relacionar esses aportes a uma filosofia que se propôs a centralidade da força, do ser vivo e dos corpos materiais, enquanto o cartesianismo dominante conservava a irredutibilidade de extensão e pensamento, matéria e espírito.
        Quanto a isso, Vergez-Huisman também mostram que se Leibniz pôde corrigir a fórmula de Descartes, que propôs a conservação do movimento em termos de sua quantidade (mv), isto se deve a que ele propôs a força viva como o que se conserva no ciclo (mv ²).
        No entanto, creio que é mais como se o leibnizianismo, ao pensar a vida, o corpo e a força, pudesse ser reunido às singularidades da filosofia de Descartes e Spinoza, fechando o circuito mais essencial ao clássico, ao invés de se conceituar como um biologismo avant la letre.
          E já nesse sentido , é bastante oportuna a observação de Vergez-Huisman, sobre ser uma das chaves do sistema de Leibniz a intenção de conciliar aristotelismo e cartesianismo, no intuito de unir ao seu sonho de uma combinatória universal uma visão de mundo em que estão presentes as noções de força, movimento, individualidade, finalidade, continuidade e variação. O que ressoa com a afirmação de Bréhier pela qual se Leibniz permanece de algum modo mecanicista, ele reabilita as formas substanciais do peripatetismo, assim como as causas finais em física.
         Ora, esse cálculo filosófico que deveria permitir encontrar todas as verdades a partir da combinação de símbolos elementares me parece o protótipo do pensamento classificatório clássico, assim como descrito por Foucault.
         Contudo, ainda quanto a essa consideração sobre Leibniz e seu tempo, pode-se sem dúvida afirmar que a monadologia conserva uma motivação que acarreta o ultrapassamento dos limites impostos pela substância única do espinozismo ou concebida em termos de dualidade, como no cartesianismo.
           Mesmo havendo a tendência a enfatizar a irredutibilidade do pensamento de Spinoza com relação ao cartesianismo, como ocorre em Deleuze, creio não ser de todo irrelevante a observação de Bréhier. Afirmando que o centro da metafísica de Leibniz é a noção de substância, Bréhier demarca o que singulariza a posição de Leibniz, a saber, uma noção de substância que é inseparável de seus acidentes tanto quanto das outras substâncias plurais. Ora, eis porque se pode afirmar que o cartesianismo contém o espinozismo em germe, uma vez tendo Descartes conceituado a substância a partir de um único atributo, sem mudança nem relação com outras substâncias criadas.
          Por outro lado essa motivação do leibnizianismo, que parece tão inovadora, na realidade pode-se mostrar como estando amplamente situada em sua época. Assim Vergez-Huisman relacionam a variação contínua ao cálculo infinitesimal e ao uso do microscópio, a concepção de força e a ênfase na matéria ao avanço no conhecimento dos corpos. E se a monadologia repousa sobre um princípio de força, esse princípio é metafísico, não “positivo”: ser é agir.
         Sobretudo o pensamento de Leibniz se inicia, conforme Bréhier, por uma intenção de demonstração que se relaciona a um critério de idéia que ultrapassa os princípios de clareza e distinção cartesianos. Leibniz exige que a idéia possua não só a clareza, como impossibilidade de confundir (por exemplo, duas cores) ou a distinção como consciência daquilo que singulariza (por exemplo, o pensamento e a extensão), mas também a adequação, isto é, a possibilidade da análise alcançar todos os elementos de um certo caráter.
           Mas é nisso mesmo que Bréhier assinala com precisão aquilo que demarca a consistência própria da filosofia de Leibniz, e o século XVII em geral, ainda que o período de atividade de Leibniz venha a abranger o início do século XVIII. Tratar-se-ia do infinitismo. O que parece surpreendente em Leibniz é essa convergência de método rigorosamente analítico e infinitismo, ao mesmo tempo as exigências da demonstração e da continuidade. Encontrar na infinidade de termos o ponto preciso que se está visando, eis o que se afigura como objetivo a partir dessa convergência inusitada.
          Para cada questão deve haver o algoritmo que desempenha o papel do infinitesimal no campo preciso do cálculo. O objetivo se torna equivalente a encontrar a lei de que deriva qualquer variedade infinita, em qualquer campo. Bréhier pretende assim conjurar o aspecto desconcertante do leibnizianismo, com sua exuberante produção conceitual em tantas regiões do saber. Matemática, física, filosofia, moral, jurisprudência, todas as contribuições de Leibniz seriam como corolários desse pensamento único, desse objetivo derivado do infinitismo.
          Torna-se então importante observar a interconexão entre física, metafísica e teologia, na filosofia de Leibniz, por esse meio ficando bastante evidenciada a inserção de seu pensamento na ambiência do século XVII clássico-barroco.
         Quanto à relação entre física e metafísica, pode ser visada através da concepção de universo do leibnizianismo. Apresenta-se aí o universo como continuun de fluídos progressivamente mais sutis, ao infinito, de modo que cada consistência específica atua como um meio sólido pleno de corpos relativamente àquela, mais sutil, que lhe é contígua.
           A física de Leibniz opõe-se à de Descartes principalmente no sentido de mostrar que a força deve ser visada independentemente do movimento. A força explica o movimento, não o inverso. Tempo e espaço são apenas relativos, ordens respectivamente de sucessão e de coexistência, assim como o movimento, que só subsiste como conjunto de suas partes constituintes
         A transmissão do movimento por impulsão pode ser perfeitamente explicada nesse meio pleno, negando que a extensão, esse ser por agregação, possa ser conceituada em termos de substância. Leibniz enuncia por esse meio o princípio de continuidade, que deverá infirmar tantas proposições cartesianas – por exemplo, sobre a conservação do movimento e sobre as leis do choque ou colisão.
           Quanto à conservação do movimento, Leibniz mostra, como vimos, que é a força a real constante, ao invés de, como afirmava Descartes, supor-se que o movimento deveria mensurar a força. Já quanto às leis do choque, o erro de Descartes se deve à sua concepção instantaneiísta quando o que se deve utilizar é a noção de corpo elástico. Pode-se assim conceber que dois corpos conservam sua força após a colisão , ainda que tendam ao repouso.
          Leibniz concebe os corpos materiais infinitamente divisíveis, cada parte de matéria composta de partes ainda menores, em contínua agitação. É a força que singulariza os corpos, uns em relação aos outros, não a grandeza ou a figura como na concepção cartesiana de extensão.
     Observa-se assim, conforme Bréhier, o sentido daquela interconexão de física e metafísica, pois os princípios leibnizianos de força, como de ação, são metafísicos, concebidos como realidades efetivas. Pode-se compreender melhor esse fato, algo que vimos já ser notado por Vergez-Huisman, comparando o manejo da física por Leibniz e Newton.
         Leibniz, descobrindo o cálculo infinitesimal, jamais o utilizou para descrever leis da natureza. Tampouco usou a fórmula mv² no cálculo de fenômenos físicos. A questão do leibnizianismo centrava-se no descerramento de uma realidade profunda. Já Newton manejava a força no contexto de uma teoria puramente física, como a gravitação universal, que deveria permitir o cálculo e a previsão de grande quantidade de fenômenos físicos.
        Bréhier observa a importância do contraste entre essas duas vertentes, a filosófica de Leibniz e a científica de Newton. Pois trata-se do confronto inaugural entre filosofia e ciência no sentido moderno-experimental do termo. O que Leibniz vai criticar, equalizando algo paradoxalmente o Deus ex machina cartesiano e o cientismo newtoniano, é que de igual maneira sempre se precisa conceber uma providência a manter as coisas em seus lugares. Leibniz almeja uma compreensão do ser assim das coisas a partir de princípios reais intrínsecos a elas mesmas, isto é, a sua realidade substancial.
        Ora, a noção central da metafísica de Leibniz é a mônada, como substância individual. A monadologia deverá, contudo, entretecer-se numa relação complexa com a teologia. Bréhier assinala a influência do aristotelismo nessa concepção individualizada de substância, mas também a influência neoplatônica no pensamento leibniziano, pois Deus é aí concebido como o infinito hipercategoremático, como lei que envolve todas as leis das séries atuais, a lei de cada série sendo o infinito categoremático de que cada série mesma é um infinito sincategoremático. O próprio termo “mônada” deriva de Proclo, que designava assim as unidades inferiores ao Uno, que continham a multiplicidade contida no universo.
         Já Deleuze enfatiza a importância de se compreender a originalidade de Leibniz nesse ponto. Pois Leibniz teria feito algo que até então não se havia ousado, isto é, levar o conceito até o âmbito do sujeito, justamente sendo o conceito, por definição, da ordem da generalidade enquanto representação única (por exemplo “a” cadeira) que se aplica às coisas múltiplas (todas as cadeiras de algum modo dadas). A mônada corresponderia inversamente a algo como um conceito individual, mas como a mônada é expressão do mundo o que resulta é o perspectivismo em filosofia, pois nesse caso o que constitui a noção enquanto individual é o ponto de vista, sendo este mais profundo do que o indivíduo que nele se localiza. O conceito que se inaugura enquanto estritamente subjetivo é algo ainda menos geral do que “o” sujeito, correspondendo ao ponto de vista que o define.
           A relação da monadologia com a teologia se torna bastante evidenciada no momento em que intervém o princípio de Razão suficiente, mas ao mesmo tempo o deslocamento que aí se verifica na noção tradicional de causa se relaciona estreitamente com esse novo papel do sujeito.
           O conceito tradicional de causalidade se reservava, enquanto fundamento, àquilo que de modo ontológico expressava “a necessidade própria do ser enquanto substância”. Se podemos relacionar essa expressão de Abbagnano à intenção de Leibniz ao enunciar o princípio de razão, o que ocorre agora é a supressão desse caráter de necessidade, de modo que o que se está formulando é um novo tipo de fundamento, apto a expressar a realidade contingente dos acontecimentos enquanto relativos ao sujeito que os efetua.
            Leibniz enuncia um princípio de razão atuando no âmbito das “verdades contingentes” ou “verdades de fato”, onde o inverso de uma proposição não implica contradição, sendo que a noção rigorosa de causa até então se limitava ao âmbito das “verdades de razão”, que não podem comportar contrariedade sem contradição. O princípio estende assim a determinação até esse domínio em que não se pode falar de necessidade.
           Deus escolhe o melhor dos mundos criando substâncias que envolvem todos os seus acontecimentos, mas esses acontecimentos são escolhidos livremente por Deus. Assim, conforme o exemplo clássico, César não ter atravessado o Rubicão é uma proposição de modo algum contraditória, isto é, conserva-se uma proposição possível. Mas César realmente atravessou o Rubicão, devido ao seu desejo de poder e mais geralmente devido a todos os eventos anteriores que determinam, por seu encadeamento, o fato real da travessia do Rubicão por César, mais o encadeamento de todos os fatos que daí derivam, como a fundação do Império Romano, etc. Assim os acontecimentos que inerem à noção individual, de cada sujeito, envolvem o mundo inteiro.
               Se as verdades de razão, por exemplo, a definição de uma figura geométrica, podem ser demonstradas por uma análise finita evidenciadora da necessidade causal que a engendra, as verdades de fato dependeriam de uma análise infinita para que se pudesse abarcar a sua razão integral, isto é, a concatenação de todos os fatos que determinam o acontecimento real. Análise contudo impossível de ser feita pelo ser humano. A determinação suficiente permanece porém garantindo metafisicamente a demonstração a priori das proposições que se podem considerar verdadeiras.
            Quanto a isso, Deleuze sublinha novamente a originalidade de Leibniz. Pois classicamente a lógica distingue dois tipos de proposições que se podem considerar analíticas ou idênticas. Toda proposição analítica ou idêntica tem o predicado incluído já na noção do sujeito. Contudo, esse tipo de proposição pode se apresentar na forma da reciprocidade, por exemplo quando se afirma que o triângulo tem três ângulos ou A=A, ou na forma da inerência, nesse exemplo quando se afirma que o triângulo tem três lados.
          O que Deleuze mostra é que Leibniz reverte a afirmação tradicional da lógica pela qual toda proposição idêntica é verdadeira, pela afirmação pioneira de que toda proposição verdadeira é idêntica, isto é, traz o predicado já contido na noção do sujeito. Ora, se o sujeito é substância, isto equivale a afirmar que os acidentes já estão contidos na própria substância.
         Leibniz utiliza aí uma analogia geométrica para ilustrar o sentido novo dessa constringência lógica determinada como inerência, também designada inclusão. Os seres individuais são compostos por linhas infinitas de desenvolvimento dos termos de seus predicados, assim como a equação de uma curva permite localizar qualquer ponto seu, ao infinito. Se a inteligência do ser humano não atinge nunca a infinidade desses pontos enquanto acontecimentos ou termos concatenados uns com os outros, podemos estar certos de que qualquer que seja o segmento oferecido ao pensar, pode-se sempre encontrar a conexão racional de um termo a outro.
          Somente Deus, cujo intelecto é infinito, pode efetivamente ver todas as linhas que compõem a substância, compreendendo assim toda a sua realidade, sendo Deus o autor das coisas. Ora, se o entendimento de Deus concebe todo o possível, é a sua vontade exclusivamente que escolhe o que efetivamente ele cria. Entendimento e Vontade são os dois atributos que Leibniz concebe como pertencendo a Deus, dualidade que recobre termo a termo a de essência e existência, relacionando-se também com as dualidades de contingente e necessário, possível e real.
          Deus possui uma visão infalível, pois sabe dentre as substâncias concebidas por seu entendimento, quais ele resolveu criar por sua vontade, e seu conhecimento abrange assim as substâncias na totalidade, ora apenas como possíveis, ora como efetivamente existentes. O princípio do melhor na escolha dos mundos, é, pois, o que convém a Deus. Ora, entre dois possíveis pode haver incompatibilidade ou não. Quando não ocorre incompatibilidade eles podem pertencer ao mesmo mundo e Leibniz cria o conceito de compossibilidade como conveniência entre possíveis. O critério do melhor é então aquele pelo qual, dentre todas as combinações de possíveis, Deus escolhe a que comporta a maior freqüência de compossibilidade, isto é, o máximo de realidade ou de essência.
          O terceiro atributo que Leibniz propõe como pertencendo a Deus é a potência como ação criadora. Quanto às essências que se tornam atuadas, porém, o leibnizianismo as propõe como contendo os menores detalhes das coisas, noções individuais, o que não permite que se as tome no sentido platônico.
         Essa concepção de essência é aproximada por Bréhier àquela de Plotino, que Bréhier compreende como sendo também essência individual, não como um modelo à qual a coisa tende sem jamais identificar-se, devido a seu constrangimento material. Bréhier aproxima também Leibniz e Plotino a propósito do conceito de expressão, pois em ambos ocorre a transparência da realidade total do mundo em cada idéia. Assim Leibniz estende a expressão como gênero cujas espécies seriam o conhecimento intelectual, a percepção e o instinto.
          As mônadas são expressões do universo, irredutíveis, mas hierarquizadas, do menos ao mais perfeito. Aqui, contudo, Bréhier converge a influência de Plotino com a de Platão, sobre o leibnizianismo, pois conserva-se em todo caso a noção de universo em níveis hierarquizados, do menor ao maior estado de concentração da realidade espiritual.
          Mas bem inversamente ao platonismo, tanto quanto ao neoplatonismo, a multiplicidade substancial do mundo atualizado não se propõe como o estado mais afastado da perfeição do Uno. As mônadas são por si mesmas unidades perfeitamente individualizadas. O que as singulariza e as hierarquiza não porta sobre a oposição união-dispersão, mas sobre o critério de clareza, relacionado como aptidão à expressão. Cada mônada expressa o mundo sempre o mais e o melhor que pode, mas nem sempre conforme a mesma extensão dos seus atributos que são: percepção (variedade de detalhes na representação) e apetição (tendência à clareza na representação).
             A mônada nua só possui percepção. A mônada animal possui memória, e as mônadas racionais ou espíritos possuem também consciência, reflexão, conhecimento das verdades necessárias. No interior da escala a que pertencem, no entanto, o que varia entre as mônadas é a clareza da expressão. Mas a harmonia pré-estabelecida garante o acordo entre os variados graus de clareza portados pelas mônadas, de modo que as percepções de cada mônada se correspondem com a de todas as outras. A vontade pela qual Deus escolhe o melhor dos mundos atua, portanto, como ordem universal.
           A harmonia pré-estabelecida se estende ainda à relação da alma com o corpo, mas naquilo que rege a correspondência entre a expressão das mônadas, determina o seguinte equilíbrio: sendo a mônada algo como um ser representativo, toda paixão supõe o tender a um grau menor de clareza, enquanto a ação, inversamente, é o tender a um grau superior de clareza.
          Mas a ordem universal pressupõe uma constante entre a soma de paixões e de ações assim como uma combinatória da reserva de clareza que compete a cada mônada em relação às outras. O aumento de ação como de clareza dessa mônada implica o aumento de paixão de uma ou de outras mônadas. O que acarreta certas aporias ao sistema leibniziano.
           Inicialmente há o problema moral: como conciliar a tendência à ação com o bem de todos. Mas também o problema da liberdade: se todos os eventos são pré-determinados, como afirmar a escolha racional como fundamento dos atos? Resta ainda o problema do mal: quem é o autor do pecado se Deus criou Adão pecador?
            Essas questões foram apresentadas a Leibniz por seus correspondentes. As soluções apresentadas por ele podem ser examinadas através da observação de seu ensinamento sobre a liberdade.


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           Heidegger visa bastante negativamente a filosofia de Leibniz, uma vez que a situa como a pioneira realização efetiva da antropomorfização do mundo. Assim, para Heidegger, o que os novos conceitos que Leibniz apresenta transformam, já estava se prestando a uma tal transformação, pois evoluía no âmbito romano-cristão, sendo que o ocultamento da questão do ser e a metafísica, como acontecimentos da história do ser, não podem ser explicados senão por alguma decisão do próprio ser. Ora, mesmo o emergir do pensar no exterior da metafísica, o fim da filosofia no sentido tradicional desse termo, assim como a tarefa do pensamento futuro, não poderia depender de uma decisão que pertencesse exclusivamente à esfera do humano.
          Essa crítica de Heidegger, que se poderia designar anti-humanista, soa bastante familiar na ambiência da contemporaneidade. Podemos reencontrar esse aspecto, por exemplo em Nietzsche ou mesmo nas vanguardas artísticas, sempre relacionado ao tema do descentramento do sujeito. O que torna tudo tão complexo em relação a Leibniz, porém, é que ao mesmo tempo que ele inaugura o pensamento do sujeito, o conceito mesmo sendo lançado no âmbito da individualidade, seu perspectivismo já se move na região da singularidade, como também observa Deleuze, que estende uma via de aproximação entre Leibniz, Nietszche e Henry James, quanto a perspectiva, e entre Leibniz e Borges, quanto às noções de compossibilidade e de mundos possíveis.
         Creio que se pode propor, efetivamente, que Leibniz inaugura um aporte irredutível naquilo que designei como pensamento humano, uma vez que só com Leibniz se libera o movimento conceitual no âmbito restrito do singular, aquilo que Deleuze conceitua como noção individual, enquanto que mesmo no auge da democracia grega, com o pensamento sofístico, se poderia propor apenas uma tendência nesse sentido,  não se fornecia um conjunto conceitual apto a expressar a realidade dessa irredutibilidade.
         Não que seja inviável qualquer humanismo antigo. Mas as condições pelas quais a problematização do ser humano se tornava pensável então, estavam subsumidas a uma série de pressupostos que se por um lado permitiam a compreensão de algo como a palavrização/construção do mundo na perspectiva retórica, por outro limitavam o foco questionante ao que se devia fornecer como constitutivo desse processo, a democracia, a cidade, o Nomos.
            Mesmo assim, pode-se sempre pretender encontrar na sofística, como nos gregos, uma interrogação mais fundamental, mais livre, sobre o ser e sobre o humano, na medida em que destacada, justamente, da “subjetividade” como normatização estereotipada do comportamento por aparelhos de controle que funcionavm por critérios extrínsecos aos do sujeito ele mesmo. Contudo, seja qual for a tendência pela qual se procure implementar uma observação assim, sempre se terá que confrontar o fato de que a Atenas democrática e o humanismo antigo constituíram o âmbito inteiramente singular desse pensamento que “retórico”, naquele meio dominado pelo mito com seu correlato político de soberania centralizada, despótica e imperial.
         Quanto a isso é importante reter a abrangência do momento moderno em sua relação com a emergência desse entrelaçamento de noções do leibnizianismo, que enunciam a entrada naquilo que Heidegger designa como a metafísica da subjetividade - para ele uma modulação da metafísica inaugurada no platonismo, o que lhe permitiu construir textualmente uma história una, não descontínua por a prioris múltiplos e irredutíveis, do Ser como da metafísica.
        O próprio conceitismo barroco, por exemplo, como observa Deleuze no livro sobre Leibniz, já estava se encarregando de realizar a conciliação entre conceito e indivíduo. E ao observar as imagens desse período através dos mapeamentos de Marx/Althusser, Foucault, Deleuze/ Guattari, maximamente quanto a isso, o de Heidegger, evidenciaram-se os meios de colocação da questão do sujeito que se tornará central na contemporaneidade, enunciáveis desde então.
         O me parece salientar a originalidade de Leibniz é o entrelaçamento de conceitos que ele libera na abrangência dessa noção individual. Assim, se poderemos ver algo como a essência singular no espinozismo, conserva-se contudo o pensamento numa consistência mais coextensiva ao naturalismo do que a essa irredutibilidade que Leibniz torna patente. Entrelaçando noções como razão suficiente, expressão e duração, que deslocam os antigos domínios de causalidade, generalidade, consciência e temporalidade, engendra-se uma realidade impensável na exterioridade do humano.
         Que o ser humano se pense na sua irredutibilidade, porém, pode ser interpretado de muitos modos. Ora pode ser proposto, de modo heideggeriano, como mais um passo no sentido do afastamento do ser.
Ou esse mesmo modo crítico de ver o fenômeno moderno/leibniziano também se pode propor como estando relacionado com o que designo pensamento humano, pois a crítica do “humanismo” envolve uma caracterização efetiva do que pertence autenticamente ao ser humano sem que isso possa ser efetivado na exterioridade de uma criação conceitual correspondente e localizável.
            Algo que se pode relacionar com a intenção de estender os meios de compreensão do que designo “pensamento humano”é aquilo que Foucault conceitua como “a história do pensamento”, opondo-se à história dos comportamentos ou das representações, e que se propõe definir os meios pelos quais “o ser humano ‘problematiza’ o que ele é, e o mundo no qual ele vive” (O Uso dos Prazeres, 14-5).
            Não deixa de haver, em todo caso, uma ambivalência incontornável nesse emergir do pensamento humano, com Leibniz, na modernidade, pois por um lado ele é inseparável de um complexo sistema de dominação, de poder, que como mostrou Foucault, vai tornar o papel do sujeito cada vez mais importante nos esquemas de controle social. Mas é ele também que fornece meios conceituais para que o “sujeito” se proponha na irredutibilidade de sua liberdade, de seu ser singular, o que está bastante relacionado com a questão do descentramento do sujeito, e com aquilo de que essa questão decorre, a saber, o tema do inconsciente.
            Conforme Deleuze, a proposição do leibnizianismo pela qual cada mônada exprime a totalidade do mundo, e isso de um certo ponto de vista, se desenvolve a partir de uma oposição entre essa expressão obscura, o clamor das pequenas percepções ao infinito, e a “apercepção” ou percepção consciente. O ponto de vista é então essa zona de clareza e distinção, essa região de apercepção que define um sujeito em relação a outro sujeito, pois o que permanece obscuro para um pode ser claro a outro, conforme outro ponto de vista.
             Em relação à totalidade, expressa obscura e confusamente, o ponto de vista corresponde, portanto, à proporção da região do mundo expressa de modo claro e distinto. Certamente pode-se mostrar que a noção contemporânea de inconsciente supõe aquela analítica da finitude de que fala Foucault, de modo que à noção corresponde uma sistematização como a proposição de constantes a partir das quais se pode compreender o funcionamento consciente – as ciências humanas não são assim um correlato do pensamento humano, mas só se pode compreendê-las numa ambiência de saber que já se constituiu sobre algo como o pensamento humano conceitualmente assegurado.
             O que ocorre no leibnizianismo, enquanto movimento conceitual absolutamente inaugural é que ele faz intervir uma oscilação entre obscuridade e clareza, inconsciente e consciente, de modo a salvaguardar a irredutibilidade da noção de sujeito, pois não ocorre a possibilidade de duas ou mais substâncias situadas no mesmo ponto de vista ou detendo a mesma zona de apercepção.


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              Retornando ao tema da liberdade em Leibniz, pode-se afirmar que ele deseja evitar as consequências de ter que admitir um Deus pecador. Mas a questão do mal não se restringe ao leibnizianismo, como informa Brehier, contrastando as soluções de Calvino e de Santo Agostinho sobre aquilo que creio poder ser enunciado como o problema da relação entre a onisciência de Deus e o ato humano pecaminoso enquanto contingente.
            Sendo Deus onisciente, como não teria já previsto todos os atos humanos, o próprio pecado de Adão? Assim não teria sentido falar de contingência ou mesmo de ato, no sentido auto-deliberativo que o termo encerra, quando aplicado à ação do ser humano.
              A solução de Santo Agostinho é mostrar, conforme Brehier, que os eventos podem ser previstos por Deus sem precisar ser predeterminados. Calvino, como em geral a tendência protestante, traça uma linha nítida entre os predestinados à condenação ou à salvação, através do que se atribui a Deus como seu decreto absoluto.
            Leibniz vai colocar a ênfase no conjunto. Ao invés de um decreto particular, concernindo a cada ser particular, o decreto de Deus incide sobre o todo conforme a sua escolha do mundo melhor. Assim, como também observa Deleuze quanto a isso, que Adão peca se relaciona à vinda de Cristo, à promessa do retorno, etc. O que Deleuze mostra por esse meio é que a questão da liberdade em Leibniz costuma se desenvolver conforme duas tendências.
              Uma é aquela pela qual o problema da liberdade humana se bifurca sobre a questão da liberdade em Deus. Nessa orientação Leibniz se aproxima, a meu ver, de Santo Agostinho, pois Deleuze noticia que ele opõe os critérios de necessidade e de certeza. Não é a necessidade que constrange o ato humano, mas isso não implica que o ato deixe de ser certo, uma vez feito.
            O sentido da oposição é resguardar a liberdade em Deus que escolhe, não por necessidade mas por vontade, o mundo melhor onde os eventos se realizam de modo certo mas não pré-determinado, como seria o caso se Deus tivesse que obedecer a alguma necessidade, por exemplo racional, na criação desse mundo aqui. E quanto às criaturas, os atos dependem uns dos outros e o encadeamento das razões os torna certos. Mas o ponto em que um ato, de que o seguinte depende, ocorre, não deixa de comportar a margem de liberdade que se supõe embasar uma escolha.
           Há também a tendência que visa o tema da liberdade exclusivamente do ponto de vista do ser humano. Nessa orientação a filosofia de Leibniz é de uma surpreendente atualidade, acarretando o deslocamento da noção de temporalidade conforme se pode reencontrar, por exemplo, em Bergson, como mostra Deleuze, mas que tem a ver, parece-me, também com o tempo anímico ou intenso que já vimos ser conceitualmente desenvolvido em Plotino e Santo Agostinho. Trata-se daquilo que em Bergson se enuncia como o conceito de duração.
          Leibniz substitui a concepção de escolha baseada numa comparação racional, consciente, de motivos dados, pela visão de algo como um tecido da alma, o formigamento das pequenas inclinações que vão ao infinito e que se opõem conforme tendam a esse ou àquele ato entre os quais é preciso escolher. A isso, conforme Deleuze, Leibniz especificou como inquietude. Na expressão que  Deleuze utilizou num dos seus cursos ( que agora está liberado para cópia na Internet), nssa noção de inquietude é como se a alma um tecido que não para de se dobrar ("plier") em todos os sentidos.
Trata-se de pequenas inclinações perceptivo-afetivas. Por exemplo, se a escolha a ser feita porta sobre dois lugares, os sons, odores, impressões, estados de espírito, etc., que acompanham o estar lá. Assim da macro-oposição entre este ou aquele lugar, este ato ou aquele ato, a observação como que se estende por sobre a continuidade que conduz às micro-inclinações.
Ora, em certo instante ocorre a dobra decisória, o momento da deliberação que se segue a partir de um máximo de pequenas inclinações que logram integrar aquilo que se designa uma inclinação considerável, ou notável (remarquable) . O que ocorre no entretempo é uma mudança quanto à natureza dos motivos, isto é, dos termos a escolher. Pois Leibniz não está afirmando que são exatamente os mesmos motivos, A e B, que seriam como que examinados até que a deliberação ocorre.
O entretempo, ele mesmo, nada tem de objetivo como o tempo da física. Mas é concebido como duração, movimento ou transição anímica. A e B se transformam continuamente em A` e B`, A`` e B``, sucessivamente, até que alguma dessas vias tendenciais que se desdobram ao infinito se sobrepõem como aquela que preenche a amplitude da alma em certo momento. Esse que será o termo da escolha se considerará então como o ato que é “meu” ato ou “minha” escolha.
            Os motivos não são portanto como objetos a pesar, mas produzem-se como termos de inflexões da alma estendendo.se como inclinações que devem integrar um ato livre de escolha, livre no sentido de que é o modo pelo qual a alma entrelaça o infinito de seus pequenos afetos que faz precipitar a tendência enquanto deliberação. O ato que assim se efetiva é o mais livre, pois expressa, como afirma Deleuze, o “eu”, sendo o ato que preenche efetivamente a amplitude da alma.
Creio que se pode de algum modo compreender a complexidade da proposição de Leibniz, pois o que ele afirma expressamente é que a verdade de cada acontecimento, ainda que encerrando-se na noção individual daquele que o efetua, nada perde de sua contingência, não só por fundamentar-se no livre-arbítrio de Deus, mas também no das criaturas.
Quanto à relação entre a salvaguarda da contingência e o livre-arbítrio de Deus, Leibniz o conclui a partir do caráter não-contraditório ou possível de cada termo dado à escolha, uns em relação aos outros. Mas se o critério da escolha é o ser ou parecer melhor a quem escolhe, esse critério é comum a Deus e às criaturas. Escolher livremente, para Leibniz, parece significar apenas uma escolha entre possíveis que se opõe à imposição por necessidade que não permite opção entre termos dados.
O problema não parece de todo resolvido, porém, apenas com base nessa asserção, uma vez que necessário ou apenas certo, os atos estão no sujeito assim como as propriedades do círculo estão contidos na sua definição. Ora, o que me parece bastante importante nessa visão de Leibniz, é que o modo pelo qual ele enuncia a questão soa como se estivesse sendo afirmada a liberdade como algo que se segue da natureza mesma da subjetividade pensada, de modo pioneiro, como realidade absoluta, mas não como realidade histórica  precisamente porque a noção individual, a ideia do indivíduo correlata aos seus atos mundanos existindo na mente de Deus, comporta uma explicação racional a priori da hístória. Ou seja, esse indivíduo não é ele mesmo histórico assim como por esse epíteto entendemos o objeto da ciência social que só estará se estabelecendo realmente na ambiência romântica, em inícios de século XIX. O indivíduo não é correlato a uma formação dele mesmo, a qual se pode compreender a continuidade subjetiva à suas decisões.
 O que faz a complexidade do tema "filosofia moderna" pode ser bem focalizado nesse ponto, porque se não há ainda a subjetividade em sentido contemporâneo, porque não há a noção de mundo histórico, há somente mundo lógico, por outro lado o suporte lógico do mundo só pode ser situado no sujeito como consciência intelectiva, uma vez que o conteúdo factual do mundo não está acessível por via silogística ou puramente ideada a princípio, e sim cada vez mais pela ciência empírica, o que vimos ter precipitado o relativismo renascentista entre "loucura" (factualidade indemonstrável na sua razão de ser em si) e "razão" (verdade científica, empriricamente garantida na sua evidência factual). A consciência intelectiva do sujeito, se situada como suporte da atribuição lógica da evidência factual, pode então receber o tratamento racionalista de sua elevação a essa noção de absoluto que é a mente lógica de Deus.
Assim, tendo sido posta a subjetividade desse modo monádico - irredutível ao histórico e contemporâneo -  a liberdade em Leibniz deve decorrer como algo intrínseco ao caráter individuado do sujeito, caráter que por outro lado está posto pelo que é  nível fundamental de sua individuação, a que ele enquanto individuado não acede, a saber, Deus mesmo ou a compossibilidade do mundo pré-ordenada dessa natureza fixista, onde se desconhece o evolucionismo.
Como a compreensão do cogito cartesiano, como vimos, depende de uma inflexão pela qual é preciso deslocar a perspectiva da simples análise lógica e se propor o engajamento na experiência auto-evidente do pensar, creio que se pode propor algo desse tipo quanto à liberdade em Leibniz. Entre Descartes, Spinoza e Leibniz, parece ser afirmável uma progressão no grau de aproximação conceitual à concretude da vida interior do sujeito, mas sempre mantendo o limite fixista da inserção de si como natureza. A via interior, como a criação de Deus em geral, está cindida entre essa concretude afetiva ou contingente e o intelecto puro onde toda contingência é anulada.
Pois do ponto de vista do que é formalmente afirmado em Leibniz, a liberdade em Deus é algo absoluto e compreensível. Deus escolhe entre todos os mundos o que lhe parece melhor. Esse melhor subentende o máximo de essência, mas não por necessidade e sim pela combinação dos possíveis livremente escolhidos, eles mesmos, por Deus, autor das essências.
Mas quanto às criaturas, aparentemente é apenas uma saída formal afirmar que sua escolha é livre por ser o que se afigura o melhor entre tantos termos possíveis, isto é, associar liberdade e possibilidade, quando na realidade o certo é ter já todas as escolhas feitas de antemão, essencialmente, enquanto criatura.
Contudo, do ponto de vista interno ao sujeito, como mostra Deleuze, o ato perfeito na acepção de Leibniz não se cumpre como passado, acabado. Sua perfeição enquanto ato é sua realização no presente, no continuo da duração em que o ato integra o infinito das pequenas inclinações como aquele que efetua a verdade do sujeito que escolhe livremente, ou melhor, que assim se escolhe.
Esse “livremente" decorre, pois, sem problemas no âmbito de uma “fenomenologia dos motivos”, conforme a expressão de Deleuze, que não visa a escolha como se os motivos fossem pesos numa balança, mas sim como o movimento tendencial na duração que expressa o evento anímico de unificação dos afetos parciais, múltiplos, não-concordantes, em um ato devido a essa escolha, ato que deve presentificar pontualmente esse movimento também presente ainda que continuamente.
Em outros termos, o movimento continuo das pequenas inclinações e micro-afetos está se desenvolvendo presentemente no tempo, ou melhor, no presente enquanto duração anímica. Na deliberação a alma unifica essa multiplicidade integrando a escolha que preenche sua amplitude, ou seja, opera a inclusão do ato em seu ser presente como em um momento da duração. Essa inclusão do ato, como do predicado na substância, é o que pode haver de mais livre, pois relaciona-se apenas àqueles atos que efetivamente portam o movimento e a escolha.
Os atos não livres são aqueles puramente habituais, enquanto os atos que definem o sujeito são produzidos pelo sujeito exclusivamente como aquilo que lhe concerne. O ato livre é sempre aquele que expressa a amplitude da alma. Os atos livres são, pois, raros.

Deleuze, num dos cursos sobre Leibniz, apresentou a propósito da liberdade em Leibniz, o exemplo da taberna. Alguém que deseja superar a compulsão ao álcool se encontra à frente de todos os objetos de uso da bebida. Lá estão as garrafas, os copos, a taberna. Sua capacidade de entendimento, isto é, sua faculdade de conhecer, poderia abranger quase uma infinidade de itens na designação dessas coisas associadas à ação de beber. No entanto, ele precisa optar se adentra a taberna, ou não. Precisa escolher se usa o copo, a garrafa, ou se abstém. Por mais que sua capacidade de compreensão objetiva acerca do mundo pudesse se estender, ela jamais alcançaria esse “objeto”. Onde se encontra “a” decisão?
Mesmo o conhecimento acerca das conseqüências físicas da ingestão da bebida alcoólica não encerra o elemento de decisão. Assim, encontramo-nos aqui perante o “abismo imenso”, conforme a expressão de Kant, entre o conhecimento e a decisão da vontade. Do ponto de vista puramente especulativo, a questão assim apresentada não oferece uma determinação qualquer, restando aporética. Além disso,  a decisão como inclinação da vontade ou liberdade, só é tematizável em Leibniz dentro da premissa de que de modo algum isso possa compremeter a validação da destinação do mundo como possível já escolhido por Deus
 Essa “liberdade” é relativa ao agente, mas não acarreta uma real divergência de resultados no plano dos fenômenos. Ora, a  ordem como decisão da vontade que, afinal, consubstancia o elemento irredutível ao conhecer, envolvida no sim ou não de beber, como não pareceria esse “puro irracional, ordem sem apelo que fecha toda discussão”, conforme a expressão de Bréhier para expressar o mesmo problema assim como desenvolvido, porém, no rousseauísmo?
Deleuze situa no leibnizianismo uma solução dessa questão da inclinação ou deliberação, que não depende da abstração de um imperativo ser já ideado. O tecido anímico é percorrido pelas pequenas percepções e inclinações aos afetos ligados à taberna, mas é também percorrido por aquelas ligadas ao que se antepõe à esses afetos, por estarem formando o conjunto de outro afeto, por exemplo, o de permanecer no escritório. A decisão não porta sobre o certo ou errado em si, e sim entre vários conjuntos afetivos, vários caminhos de dobras no tecido. Haverá uma dobra decisiva - "un pli décisif, un pli décisoire"- entre um ou outro lado, a qual "vai integrar" as  pequenas percepções e inclinações. Em outros termos, a decisão porta sobre o lado que vai integralmente dobrar a alma, como o ato definidor do sujeito, e enquanto decisão ela vai depender da quantidade de percepções ajuntadas de um ou outro lado dado a escolher, quantidade que em algum momento vai integrar a "amplitude" da própria alma enquanto esse sujeito que ela já é desde sempre.
 Creio que nesse ponto, a conveniência da ação exclusivamente ao próprio ser individuado repõe a inteligibilidade do percurso da dúvda cartesiana como esse nível próprio ao período moderno em que a realidade concreta do pensamento tornou-se ela mesma pensável e sua evidência está utilizada como argumento, assim como a descoberta de um fato científico muda a argumentação num certo domínio. O penso é atuado, por isso ele é - não por um laço lógico do penso ao sou. A decisão é atuada, por isso ela é livre, não importando que do ponto de vista do mundo ela já esteja predeterminada.
Mas essa concretude da atuação no período moderno é ela mesma em si, não chega ao para si, e por isso o em si pensado não é o mesmo daquele pensável em si  e  para si, o em si que deve ser também para si. Assim, a decisão é pensada apenas do ponto de vista dos afetos redutíveis a dados sensíveis. Nesse caso, a  interioridade não é intersubjetividade e antes do Romantismo, sendo o caso de se fazer uma objeção semelhante, não se chega por outro lado ao intersubjetivo, mas somente ao imperativo prático, à moral como  imperativo ou moralidade abstrata, ela também dado, só que intelectivo. Inversamente, quando se pensa o sujeito em si e para si, a decisão não integra um conjunto ou outro de informações conforme uma pre-determinação que é a do próprio indivíduo já determinado numa lógica do compossível, mas depende do desenvolvimento da mentalidade do sujeito ao longo do que ele pensou de suas experiências já existentes.
 Aqui o saber dos efeitos da acumulação do álcool no corpo seria, sim, importante na decisão, ainda que quanto a esta, como na crítica de Biran aos estóicos, pode depender de mais coisas do que simplesmente o objetivo abstrato de não se fazer algo que sabe-se indesejável ser feito por nosso interesse mesmo. Pode depender de tratamento, por exemplo, e de fatores que estão na sociedade, não apenas no indivíduo. O importante a reter então é essa noção de desenvolvimento que se torna a imagem do pensamento romântico - nós não pensamos no momento seguinte, de modo idêntico ao que pensamos antes, do mesmo modo que o organismo acumula efeitos que lhe podem convir ou não.
O que se mantém como exercício do pensamento é sua mutabilidade devido ao desenvolvimento que ele mesmo impulsiona por um lado, ativando-se qualitativamente no curso do mundo, por outro lado. A história pode ser pensada o plano do espírito no Romantismo, mas nele ela  jamais pode ser suposta ora um todo já dado em qualquer momento de sua apreensão, ora algo antecipável enquanto plano espiritual, por um conceito qualquer que estaria necessariamente instalado como apreensão de um momento. A espiritualidade da história é a heterogeneidade dos sujeitos no devir das circunstâncias infinitas, é evolução - como algo que conduz a realidades consequentes como da espécie primitiva à espécie evoluída, sem que isso prejudique o essencial que é preservar a autonomia das ciências humanas em relação às da natureza.
  O Romantismo voltou a ser considerado justamente quando o pré-determinismo-evolutivo positivista encontrou-se superado na ciência mais complexa de inícios do século XX. Se o resultado daquela releitura do romantismo feita pelos interessados numa ciência humana "compreensiva" não autorize supor que o resultado tenha sido um mesmo quanto às ciências do espírito românticas, torna-se ao menos bem localizável o que está em jogo quando se trata de recusar a pre-determinação do devir ou do sujeito, ainda que quanto a este se dispusesse essa predeterminação nos termos de um "ponto de vista".


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O verdadeiro problema dessa teoria da liberdade do leibnizianismo não é, portanto, sustentar-se no melhor dos mundos, o que conforme Deleuze no entanto, constituiu o cerne do pensamento anti-leibniz do século XVIII,  a que a noção de melhor dos mundos era profundamente antitética. Enquanto se situa Leibniz na problemática do período moderno em que evolui sua filosofia, se compreende as soluções conceituais possivelmente vigentes nessa consistência, onde não é inviável a  aparente contradição entre uma noção individual que contém todos os seus predicados e a afirmação da liberdade, uma vez que o pensamento lida com essa realidade - que para nós não subsiste - de um sujeito concreto mas a-histórico. O verdadeiro problema do leibnizianismo naquilo em que se comunica à filosofia perene, está na relação dessa teoria do ato livre, como expressão da amplitude anímica, com a moral.
Pois qualquer ato, uma vez livremente aceito pelo sujeito que o pratica, por mais abominável, seria tão livre e certo quanto o ato mais louvável, sendo a expressão mais própria da alma em ambos os casos. Teologicamente transposta, a questão se enuncia então, do seguinte modo. O ato do condenado seria tão eterno, livre e certo quanto o dos salvos, os eleitos. Há aqui o problema do mal.
 Na argumentação de Leibniz, segundo Deleuze, seria o caso de ingar: que seria o condenado, senão aquele que limita toda a amplitude de sua alma ao ódio e ao desejo de vingança – nisso havendo alguma coincidência entre Leibniz e Nietzsche, pois para Leibniz esse ódio do condenado tem o criador como objeto, para Nietzsche o objeto sendo outro ser humano.
Ora, que seu ato de ódio permanence livre, já se vê nisso pelo que o condenado poderia, possivelmente, ampliar ao menos um pouco sua alma. Mas a solução de Leibniz a esse problema teológico-moral, uma vez que o condenado se nega a isso ou não seria condenado, se encontra na sua visão de conjunto pelo que há como que uma função cósmica do condenado.
Pois como vimos, há uma espécie de constante universal na variação obscuridade-clareza, paixões-ações. Assim o que o ódio, a deliberada brutalidade do condenado permite, é o excedente de ação que os eleitos podem preencher de modo que a mônada, sem prejudicar ninguém, tem como que uma reserva de clareza a que pode asceder, obtendo por esse meio o aumento da ação e da amplitude de sua alma.
Se a todo ato livre corresponde o sentimento de alegria, o ato de ódio do condenado também lhe proporciona alguma alegria, mas a menor possível, tão pequena quanto o mínimo de amplitude a que devotou a sua alma. Já a alma dos eleitos, devotando-se ao amor do criador e da sua criação, reserva a cada ato justo o máximo de alegria, a beatitude ou felicidade correspondendo à maior envergadura de sua alma.
A moralidade no leibnizianismo corresponde, portanto, ao progresso da alma, não simplesmente à conformidade estática à natureza. A verdadeira punição do diabo, o protótipo do mal, é confrontar o fato de ter tornado exequível o bem. Isso porque o mal nutre aversão ao bem – se não fosse assim ele poderia se regozijar ao menos por servir de meio ao bem.
A realização ética do leibnizianismo, o progresso da alma, é o corolário de sua visão do mundo como República dos Espíritos, cuja lei é a justiça e cujo soberano é Deus. Se essa República é para Leibniz a universalização do cristianismo, sua filosofia não deixa de interpretar a imortalidade da alma como possibilidade de compreender uma tal noção de justiça.
Como observa Brehier, a moral do leibnizianismo é providencialista, endereçando-se como meio de resolução do problema do acordo entre a virtude e a utilidade. Assim Leibniz pensa que demonstrar a existência de Deus e a imortalidade da alma é o que basta para fundar a ciência moral. Ora, para tanto Leibniz deve sustentar que a providência aplica a justiça infalivelmente. A eternidade precisa então ser proposta como lugar dessa aplicação, pois muitas vezes não se vê um pecador ser punido nesta vida.
O progresso da alma é sempre aumento de clareza, no sentido da razão, sendo razão o mesmo que iluminação. Ora, a República dos Espíritos, inspirada no estoicismo, funciona de modo convergente com a lei natural ordenada por Deus, pela qual a cada instante cada espírito ascede ao máximo de perfeição compatível com o todo. Os espíritos são todos os seres possivelmente dotados de razão como os humanos, e os anjos, por exemplo – Leibniz crê ser possível a existência de várias classes desse tipo de seres ainda que desconhecidos por nós.
Esses espíritos conscientemente experimentam a virtude, isto é, a superação das paixões e o conseqüente aumento de ações, como auto-conhecimento, definido em termos de uma tendência ao bem comum já que a existência espiritual é a pertença a essa comunidade universal.
A afirmação da perenidade da existência tem a ver com a concepção vitalista do leibnizianismo pela qual tudo no universo é vivo e infinitamente organizado. Leibniz supõe que os seres vivos são como germens subsistindo desde a eternidade. Os germens são indestrutíveis e estão localizados uns nos outros desenvolvendo-se através das gerações. Todos os germens humanos já estariam assim localizados em Adão. Nascer é poder crescer desde esse germe minúsculo até a máxima visibilidade do corpo físico plenamente desenvolvido.
Mas nascer como espírito, não apenas animal ou planta, é asceder à razão ao nascer. A razão não preexiste senão como ato de destinação pelo qual Deus endereça o ser à vida racional com o nascimento.
Quanto à doutrina da indestrutibilidade da substância, porém, Leibniz não me parece completamente claro. Os animais e plantas subsistem, mas não de forma consciente, de modo que não dão conta das suas metamorfoses corporais – Leibniz não admite separação entre corpo e alma ou algo como alma pura. Assim, se as almas sempre estão de algum modo materialmente revestidas, ora parece que ele afirma que as mônadas não dotadas de razão retroagem ao estado de germens minúsculos ora que se metamorfoseiam materialmente.
Quanto aos espíritos que, como vimos, conservam eternamente a consciência, por isso mesmo jamais deixam de ter noção clara do julgamento de Deus, isto é, da aplicação da justiça, mesmo na eternidade. Mas o modo dessa subsistência espiritual também permanece algo ambíguo, pois ora parece tratar-se da hipótese de outras vidas, ora parece que se afirma apenas a conservação da consciência, ora ambas as possibilidades, conforme o caso.
            O leibnizianismo, como pudemos constatar, tem como característica a exuberância da produção conceitual que se estende ainda por várias regiões de saber. Aqui examinamos o que se me afigurou como o mais importante dessa produção, particularmente naquilo que se relaciona tanto com o cenário clássico-barroco quanto com o pensamento humano.




           4 ) A filosofia de Baruch Spinoza

             Descartes supõe Deus que cria as duas substâncias irredutíveis, pensamento e extensão (dualismo). Leibniz concebe Deus que cria as inúmeras substâncias irredutíveis, as mônadas (pluralismo). Quanto à natureza dos corpos,  Descartes supõe que na extensão os corpos se distinguem por seu movimento e por sua figura. Leibniz faz a força ser aquilo que singulariza a natureza dos corpos.
            Spinoza supõe Deus como a substância única que se expressa em infinitos atributos (monismo). Pensamento e extensão são dois desses atributos, aqueles que o ser humano pode conhecer. Movimento e Intelecto de Deus são os modos infinitos, respectivamente, dos atributos extensão e pensamento. E cada corpo ou idéia singular será um modo finito de seu respectivo atributo.
              Aparentemente o espinozismo oferece apenas mais um possível aporte dessa teologia de filósofo tão peculiar ao período moderno. Teologia que, inversamente ao dogma e à escolástica, repousa sobre a teoria do conhecimento e a metafísica, ao invés de permitir deduzi-los.
           Contudo, a substância una, assim como afirmada por Spinoza, parece oferecer uma contrapartida ao determinismo a priorístico heideggeriano pelo que todo pensamento ocidental, desde o período modeno, é uma antropomorfização da metafísica antiga. Com efeito, Bréhier já afirmava que o espinozismo, desenvolvendo-se no exterior de todo criacionismo, não traz consigo os inconvenientes daquilo que se poderia considerar o antropomorfismo, que transpõe na forma da subjetividade a fonte de tudo o que se oferece como pensar.
             A substância não é sujeito, mas inteligibilidade universal que se desdobra em cada atributo. Também Deleuze, no curso de Vincennes sobre Spinoza, havia observado que pensar a substância conforme propõe o espinozismo é pensar o ser enquanto ser. Ora, o que deve restar quanto a isso é a indagação sobre a representação, esse outro termo do a priori metafísico moderno conforme Heidegger, que completa a subjetividade na transposição da questão do ser como pergunta sobre o ente.
            Bréhier parece bem claro no que se relaciona a esse problema, pois ele afirma expressamente que a idéia em Spinoza, por exemplo a idéia de corpo, não se põe como reflexo (representação), mas como posição, no pensamento, da atualidade do modo na extensão.
               Spinoza utiliza a oposição, corrente em sua época, entre essência objetiva e essência formal, que já vimos no estudo de Descartes relacionar-se à oposição, respectivamente, entre a essência como ela existe apenas conceitualmente e como existe em si, isto é, realmente. Lopes de Mattos parece incluir assim a concepção de idéia em Spínoza na simples extensão terminológica que separa os modernos, para quem a referência do conceito à coisa é representativa, dos escolásticos, para quem ela é intencional (Coleção Pensadores, Espinoa, p. 49).
             Trata-se de interrogar, então, por um lado, sobre a relação entre os atributos, especialmente sobre o papel que o atributo pensamento desempenha em relação aos outros, de modo que se poderá compreender o estatuto da idéia no interior do espinozismo, e mais amplamente, a sua teoria do conhecimento, com o que teremos base para bem desenvolver aí a questão da representação.
               Antes de implementar a exposição do pensamento de Spinoza, porém, seria preciso observar em que o a priori heideggeriano poderia ainda não se considerar de todo denegado nessa démarche. Assim poderia ser proposto que a supremacia da potência no espinozismo, isto é, a caracterização da substância como potência, é plenamente inserível na ambiência do postulado metafísico-moderno do heideggerianismo.
Ou enfatizar o papel da causalidade na demonstração da unidade substancial, pois se pensar a substância nesse sentido absolutamente imanente equivale a pensar o ser ao invés de interrogar sobre o ente, a definição da substância como causa sui – aquilo que não pode ser causado por outra coisa mas que se define como "causa de si" – já estaria se desenvolvendo na ambiência metafísica pela transposição do que seria preciso repensar em termos de arché (origem), nos termos da aitía (causa).
                Não há dúvida que Spinoza utiliza amplamente a terminologia tradicional filosófica. Mas creio que seria conveniente iluminar o sentido nomadológico deleuziano da leitura do espinozismo já que assim, ao invés de procurar inserir termos e noções numa continuidade condicionada, nos tornamos mais aptos para observar o traçado das linhas de fuga que essa terminologia aparentemente tradicional esconde. Ou seja, podemos mostrar como se está, com efeito, pretendendo reverter a tradição metafisica com o pensar da imanência.
                Assim, quanto à consideração da potência, veremos posteriormente o quanto ela se afasta de um quadro de subjetividade que se propõe como dominação, na exterioridade de uma natureza extensa - a teoria da essência como variação da potência no devir é a concepção espinozista bastante inovadora, a qual estaremos desenvolvendo no trecho sobre a concepção de Deleuze a propósito desse período moderno. Aqui podemos nos deter na consideração da causalidade.
                Pode-se afirmar que a causa sui, reintroduzindo a necessidade pela qual a substância existe, é o inverso da operação metafísica de deslocamento pela qual o ser se aloja na ligação assim legitimada de Sujeito e Predicado, exclusivamente como cópula de modo que o ser é objetivamente alguma coisa atribuída. O ser substancial em Spinoza, inversamente, é aquilo que é, necessariamente, como aquilo que não pode não ser.          
             O que impede também a conversão metafísico-tomista dessa fórmula aparentemente escolástica que convém à definição da substância absolutamente infinita do espinozismo, é que a assimilação entre Deus e substância não passa pelo criacionismo como se Deus pudesse ser pensado como um ente eminente, isto é, como subjetividade de que derivam causalmente – assim como um coisa deriva do fazer deliberado de outra – tudo o que existe. Conforme a proposição 32 da Ética, corolário I, “Deus não faz coisa alguma por liberdade da vontade”.
            O deslocamento da causalidade originária se deve à  introdução do conceito de expressão. Deus se expressa através dos atributos, mas ele se expressa assim como ele existe, não por um ato livre, extínseco, como que por vontade ou arbítrio. Ele se expressa necessariamente uma vez que ele existe.
           Conforme Deleuze, o caráter expressivo dos atributos se relaciona, pois, fundamentalmente, com a substância de que são expressões, e como que a existência mesma. E Chauí situa na redefinição de Spinoza das idéias de atributo e substância, na importância que o atributo assume nessa redefinição, a subversão que o espinozismo implementa: a unicidade do ser concomitante ao rompimento com a idéia de simplicidade de Deus. A unidade existencial como pluralidade de essências constitutivas subverte, efetivamente, as idéias tradicionais de Deus, de Natureza, e das relações entre ambos.
            O estatuto da causa sui tem como correlata a modelagem conceitual da terminologia filosófica tradicional no sentido de uma contrafacção daquilo que ela acarreta, a metafísica como pensamento da transcendência que se traduz pela idéia de uma causa originária como ação eficaz que a partir da possibilidade de ser viabiliza o fato de ser.
            Esse é o sentido nomadológico - como linha de fuga da tradição metafísica - da causalidade imanente do espinozismo, assim como  Deleuze o demonstra no curso de Vincennes ao observar que nesse caso “não se sabe bem como distinguir a causa e o efeito, isto é, Deus e a criatura mesma”.
            Já no capítulo X de Spinoza e o Problema da Expressão, tratando do que opõe Spinoza e Descartes, Deleuze enfatiza que “Deus como causa sui” é o mesmo termo utilizado por ambos mas que na verdade  funda a irredutibilidade do pensamento de Spinoza, de modo que se pode propor como inteiramente fictícia a propalada dominância da filosofia de Descartes sobre o espinozismo justamente quando se pretende que a definição de substância cartesiana já contém a possilidade de uma interpretação panteísta ou mesmo monista, como vimos ser sustentado por Bréhier.
           Quando examinamos a teoria do conhecimento de Spinoza, vemos que o tema da causalidade se reintoduz, já na consideração sobre o método de apresentação geométrico. Mas aí também se verifica esse dom que Spinoza não cessa de ostentar, que é o de manejar a terminologia – a história da metafísica – do modo mais certo para libertar-se dela. Não teria o estudo do espinozismo se realizado assim também como o meio pelo qual, ao invés de propor como tarefa o fim da filosofia, se logra libertá-la da metafísica, revelando sua ação salutar nesse sentido, ao invés de insistir em confundi-la com sua utilização para tantos fins diversos daquilo mesmo pelo que ela existe?
           Quanto a esse efeito de camuflagem sempre surpreendente do espinozismo – tanto mais que não pode ser apreendido como um modo de lidar com a censura eclesiástica da época, já pela situação anômala da Holanda protestante onde a circulação da informação era livre  – penso que somente Deleuze soube bem evidenciar. Trata-se do uso de uma máquina conceitual rigorosamente tradicional, ainda que a corrente em que Spinoza se inscreve tenha a ver com a cultura hebraica, não tanto com a linha cristã de que descendem Descartes e Leibniz, mas a serviço da reversão da metafísica como daquilo que essa máquina enquanto técnica habitualmente implica.
                Esse efeito se relaciona muitas vezes com leituras bastante superficiais do espinozismo, de modo a inseri-lo na história de modo que sua originalidade se torna obscurecida, sendo essa originalidade aquilo mesmo que revoluciona essa história – isso sem falar no tipo de repulsa que o espinozismo provoca nos meios que teriam razões para repudiar as suas negação do criacionismo, da providência, das causas finais, do livre arbítrio, mais a crítica da autoridade dos livros sagrados.
               Quanto a essa leitura superficial, que poderia deixar embutir sem mais a inserção do espinozismo no postulado antropo-metafísico da modernidade, exemplifica-se com Bréhier, que em sua exposição sobre Spinoza superenfatiza o papel de Descartes, como se a cada conceito de Spinoza fosse preciso fazer dever a inteligibilidade ao modelo cartesiano.
             Não creio que seria ocasião de caucionar, porém, a imagem oposta que se costuma fazer de um Spinoza demasiado independente – sozinho, perseguido, excluído. Penso que se deve aceitar o seu próprio testemunho pelo qual, nas cartas, ele sempre se confessa alguém feliz. Há também evidências de que se manteve em boas relações com amigos que admiravam sua obra, compreendiam seu pensamento ou ao menos praticavam a liberdade de espírito pela qual se concede a cada um o legado de sua própria verdade – como os Colegiantes, seita que propugnava a revelação do santo espírito a todo ser humano piedoso independente da intervenção da autoridade na interpretação do dogma, entre os quais Spinoza contava com boas amizades.
              Em todo caso, considero oportuna a definição do espinosismo, por Bréhier, como “doutrina da salvação pelo conhecimento de Deus”. O sentido dessa oportunidade contudo,  ilustra o efeito surpreendente e libertário do espinozismo.  Bréhier utiliza essa definição no contexto da citação de Spinoza que afirma ser o objetivo de sua filosofia “procurar um bem capaz de se comunicar, cuja descoberta faria fruir eternamente de uma alegria contínua e suprema”,
              Ora, Bréhier observa também a operação de camuflagem do espinozismo, interpretando-a, porém, no seguinte sentido. Essa destinação salvífica parece ligar Spinoza a “essas teosofias de origem neoplatônica” tão “recorrentes na história” . Assim, o espinozismo parece se destacar, opondo-se pela motivação, às filosofias de Descartes e Bacon que são de índole positiva e desenvolvemse na exterioridade das problemáticas da fé, enquanto  Spinoza afirma a unidade entre os problemas filosófico, religioso e político.
            Mas a convergência fé-razão ao nível dos problemas, seria imputável, conforme Bréhier, ao meio anômalo holandês onde, aparentemente, qualquer um poderia fundar uma seita e poderia se ler como a defesa espinosista daquele tipo de especulação livre desenvolvida na evolução moderna do cristianismo holandês, acompanhado da prática de virtudes cristãs independentes de toda confissão – liberdade de consciência cuja garantia Spinoza exigia dos poderes públicos como extensível a todos.
             Mais profundamente, porém, ao invés da atmosfera de experiências vagas de índole mística, características dessas teorias de amor e salvação a que o espinozismo do Amor Intelectual de Deus parece tão relacionado, o que se encontra em Spinoza, como enfatiza Bréhier, é a ancoragem do amor no conhecimento, uma prática conceitual rigorosa, um método real de encadeamento de verdades que se opõe frontalmente àquilo que deriva apenas dos sentidos ou da imaginação, método que deve favorecer o conhecimento da natureza, a física e a matemática, tanto quanto a filosofia.
         É que a variação da potência ou essência, em Spinoza, não ocorre só na duração, atinge também o estatuto da essência na eternidade. Assim, o amor intelectual de Deus é  um meio de atingir o gênero mais elevado de conhecimento, a visão das essências, sem se limitar a simples definições da ciência comum que só tratam das relações de conveniência entre elas, muito menos às fugazes impressões subjetivas do gênero menos elevado de conhecimento. Isso porque entendendo Deus, entendemos o Real. Mas ao mesmo tempo, realizar o gênero mais elevado de conhecimento é uma realização eterna da essência como alma, o que a torna apta a manter-se ativa na eternidade. A ação, em Spinoza, é a plenitude da potência enquanto o ato de conhecimento.
               Mas é interessante que por essa oposição entre o que permanece imaginativo e o que ascede ao entendimento, bem inversamente ao que poderia parecer, Spinoza se revela, conforme Bréhier, mais cartesiano do que pensa – a partir do que Bréhier desenvolve sua exposição do espinozismo baseada nessa ascendência do cartesianismo, com certas ressalvas.
               Essa interpretação de Spinoza como resultando da influência cartesiana não é exclusiva de Bréhier, pois vimos como, por exemplo, Vergez-Huisman a utilizam, tendo sido mesmo corrente entre os comentadores de Spinoza, como Brunchvicg ou mesmo Freudhenthal, conforme reporta Joaquim de Carvalho enfatizando, contudo, a impropriedade dessa redução já que biógrafos como Pollock evidenciaram a anterioridade da intuição fundamental de Spinoza acerca da substância relativamente ao seu conhecimento dos escritos de Descartes.
             Quanto a isso, é interessante mostrar que Carvalho também havia notado que “uma das peculiaridades do gênio de Spinoza consiste precisamente em verter sentido novo em palavras velhas no vocabulário de teólogos e de filósofos”. (Col. Pens., Espinoza, p. 125).
             Os estudos de Deleuze sobre Spinoza já partem da inserção do espinozismo na ambiência da reação anticartesiana, isso que seria comum também ao leibnizianismo. O que se mantém como aquisição segura derivada de Descartes, no entanto, é a atualidade das potências da natureza, sempre em ato, ultrapassando assim a necessidade escolástica de postular formas que deveriam realizá-las. Mas Descartes mantém a metafísica, conforme Deleuze, nisso pelo que seu mecanicismo matemático implicava a desvalorização da natureza, a busca de um ser irredutível e superior a ela, o sujeito que pensa ou o Deus criador.
        O  anticartesiano, desde a segunda metade do século XVII, é o programa desse novo naturalismo a que se devotam Leibniz e Spinoza, mais geralmente, o expressionismo em filosofia, conforme Deleuze, mas sem que esses projetos possam ser sobrepostos, isto é, tratando-se de mostrar o que é a motivação comum mas também o que singulariza cada um desses desenvolvimentos filosóficos.
           A meu ver, por mais que o espinozismo seja um avanço até mesmo em relação a Leibniz, no sentido de um pensamento crítico do idealismo metafísico, não se pode negligenciar a crítica de Hegel, conforme o que o seu monismo é mais pretendido do que realizado, já que da substância aos atributos e aos modos, não há uma continuidade como um desenvolvimento de um nos outros, há apenas afirmação dos três como identidades distintas. Se essa observação não tem como ser contraditada, ela pode  no máximo ser contornada pela interpretação do espinozismo como introduzindo  uma ordem causal inovadora, original na história da filosofia. 
         Com efeito, a ordem e a conexão das idéias, conforme Spinoza, é a mesma que a que se verifica entre as coisas. Se isso não quer dizer que entre idéia e coisa a relação é de representação, como se a verdade da idéia fosse apenas a imagem efetiva da coisa, ou mesmo de correspondência, como se a realidade da idéia se devesse apenas à realidade da coisa, creio que se pode falar de causalidade estrutural no âmbito do espinozismo.
          Em A Nervura do Real Chauí evidencia a relação entre as idéias e as coisas do seguinte modo: pode-se afirmar que essa relação é de correspondência, entendendo-se porém esse termo não como se fosse fundado por uma operação intelectual, ou decorrente de uma propriedade da coisa agindo sobre o intelecto, mas sim como fundando-se na atividade causal da substância que produz a identidade das conexões em cada plano modal, mantendo a irredutibilidade de sua natureza e consequentemente, a irredutibilidade dos três planos de substância, atributo e modos, sem que isso deixe de ser um monismo:  a substância é, pois, articulada em níveis independentes que se inter-relacionam na sua atuação conjunta como uma mesma realidade.
            Em todo caso, mesmo isso não implica que o espinozismo possa ser transposto ao cenário contemporâneo se a este definirmos como o cenário historicizado - onde se a História não é o que explica, é o que tem que ser explicado, pois, em todo caso, é a ordem do Real. Mas o espinozismo tem sido sempre mais tematizado nessa atualidade em que é a estrutura, naquilo em que se tornou criticável justamente por que como explicação da história permanece a-histórica, o que se torna o parâmetro a re-pensar.



           5 )   Hobbes e Locke
        
             A Guerra civil inglesa durante o século XVII, culminando provisoriamente na revolução de 48 que institui o governo constitucional, a Commonwealth, esclarece bastante sobre as posições de Hobbes e Locke, conforme se pode depreender ao coligir os textos introdutórios dos volumes da coleção Pensadores, referentes a esses filósofos.
          Hobbes coloca-se como defensor do rei, o lado que reúne anglicanos e católicos, enquanto o pai de Locke adota a causa dos puritanos, alistando-se no exército do Parlamento. Locke, nessa época, é adolescente e estuda na Westminster School.
          Hobbes foi preceptor, do Conde de Devonshire, William Cavendish. Mais tarde, na década de vinte, secretariou Francis Bacon. Em viagem ao continente relacionou-se com o círculo cartesiano francês através da amizade com o Padre Mersenne, e com Galileu, cuja física influi decisivamente sobre seu pensamento.
          O alinhamento com as forças do absolutismo força Hobbes a refugiar-se em Paris, de modo que na ocasião do levante civil inglês, no início da década de 40, ele já se encontra no continente onde se torna alvo de ferrenhas críticas pelas idéias expostas no Sobre o Cidadão, publicado na França, em 42.
           Contornando as dificuldades causadas por essas críticas, Hobbes se torna preceptor de Carlos II, que governará a Inglaterra durante o pequeno período da Restauração dos Stuart. Mas desde 52, época de Cromwell, ele já se encontrava novamente na Inglaterra. Hobbes não chegou a presenciar a Revolução Gloriosa que em 89 derrotou finalmente as forças do absolutismo.
            Locke formou-se em medicina, sendo suas influências mais importantes John Owen, Thomas Sydenham e Robert Boyle – respectivamente o defensor da tolerância, o médico que participou da introdução do tratamento das doenças baseado na observação empírica dos pacientes e o formulador do conceito moderno de elemento químico.
          Mais tarde Locke se tornou médico e assessor do conde de Shaftesbury, Lorde Ashley da casa de Exeter. Nesse cargo Locke escreveu a constituição da Carolina, então colônia inglesa na América do Norte, e se tornou responsável pelos problemas eclesiásticos na Inglaterra desde que Ashley se sagrou chanceler.       
             Ashley militava incansavelmente pela causa do parlamento, opondo-se ao rei. Logo, Ashley e Locke procuraram exílio no período da Restauração, escolhendo a Holanda onde Locke viveu na clandestinidade sob o nome de Van der Linden, pois os agentes da monarquia inglesa o perseguiam mesmo no estrangeiro.
         Com a vitória dos Comuns, em 89, Locke retorna à Inglaterra, no mesmo navio que trazia Guilherme de Orange, a quem o parlamento havia nomeado para ocupar o trono sob o juramento do Bill of Rights.
            Tona-se evidente a oposição profunda entre o Hobbes absolutista e o Locke parlamentarista. Tomando como referência o liberalismo, de que Sciacca informa ser os dois tratados sobre o governo de Locke a pioneira teorização nítida, deveríamos colocar Hobbes na posição de conservador.
           Observando o contraste entre as caracterizações do estado de natureza, comparando assim os textos do Leviatã e do Segundo Tratado, verificamos que Hobbes pensa sob essa rubrica um estado qualquer em que não se possui qualquer “segurança” que não esteja na própria força, ou seja, lá onde não existe lei. Ora, onde quer que se possa configurar um tal estado de coisas, pode-se considerá-lo um estado de guerra. Hobbes parece crer que no mundo inteiro sempre houve em certos lugares alguma espécie de estado civil coexistindo com o estado de selvageria em outros – a América forneceria na atualidade exemplos desses últimos.
             Locke distingue três estados, o da natureza, o de guerra e o civil. Sua descrição do estado de natureza põe em relevo a virtude do ser humano particular, concretamente considerado. Todos os homens são considerados igualmente como particulares, irredutíveis uns aos outros, e em cada um se encontra, como conseqüência dessa irredutibilidade, a sua perfeita independência com relação aos demais.
             O estado de natureza é aquele da liberdade e da igualdade decorrentes da natureza do ser humano concreto, em que cada pessoa age conforme o que pensa ser conveniente à sua preservação particular, sem depender da vontade de qualquer outra pessoa.
           O estado de guerra sobrevém em qualquer caso que possa se configurar como um desafio a esses dois princípios naturais, liberdade e igualdade, princípios contíguos ao modo pelo qual cada um existe por si. Até aqui, observe-se que não se introduziu qualquer referência a instituições civis. Portanto, o estado de guerra ocorre quando se viola os princípios que configuram o estado de natureza na ausência de qualquer instituição civil.
          Para garantir a observância dos princípios naturais, pondo fim ao estado de guerra, introduzem-se as leis a partir do pacto que regula a sociedade civil. Não há necessidade de “demonstrar” a existência histórica de uma sociedade pré-civil. Locke fornece os exemplos de situações atuais nas quais alguém sofre uma agressão sem estar no meio de outros que, conforme o acordo social, viriam em seu auxílio. Nessa situação a pessoa só conta com sua própria força para se defender. Mais tarde ela não precisa ser responsabilizada pelos danos que infligiu ao agressor, pois todos concordam que estava se defendendo pessoalmente num intervalo de tempo que não permitia o recurso à lei.
           Aqui é o momento de desviar essa trajetória de confronto direto entre Hobbes e Locke.  Por vezes, de modo muito inverso às aparências, há propostas no sentido de  estabelecer uma linha de continuidade entre suas teorias que reproduz de modo preciso a evolução do pensamento humano à modernidade.
          O sucesso do livro de Max Scheler, o lugar do homem no Cosmo, de 1928, está na origem da Antropologia Filosófica contemporânea, que se consagrou na década de vinte do século passado, conforme Rabuske ( Antropologia Filosófica, um estudo sistemático, p. 28). A interrogação fundamental de Scheler se endereça à especificidade do humano. A resposta, se existe, deve compreender algo mais do que qualquer coisa que o ser humano possa ter em comum com os outros seres vivos. Scheler o define a partir do espírito, algo que é mais do que simplesmente a vida. Mas que é que se está entendendo por espírito? Scheler o expressa através do ato de ideação, a faculdade de separar a existência e a essência constituindo a “nota fundamental” do espírito humano.
            A organização racional pode estar submetida ao devir, à história. Permanece constante a razão mesma como faculdade de produzir e configurar formas ideais sempre novas, do pensamento e da intuição, do amor e dos valores desde que o que o espírito faz é pôr em função o conhecimento das essências. O idealismo não pode mais,  portanto, esquivar-se do problema do devir e da história, que é o da antropologia que tampouco desconhece já a irredutibilidade cultural. Ele procura resolver a aporia por meio da redução à  essência do que é posto como cultura.
            Encontramos na época do iluminismo uma generalizada interrogação sobre o espírito. Voltaire se propõe recensear os sentidos desse termo no Dicionário Filosófico e Helvétius escreve uma extensa obra que se intitula do Espírito. Observando esses textos creio podermos constatar que a vivacidade do estilo de Voltaire e seu pendor crítico tendem ao mesmo resultado que o olhar minucioso e descritivo de Helvetius.
             Voltaire se dá o lazer de fazer um torneio na apresentação de seu conceito, através da denegação dos usos correntes não meritórios da palavra, aproveitando para alfinetar o estilo dos que se opõe ao classicismo. Assim “ter espírito” pode significar apenas perder tempo com circunlóquios e superfluidades, como se registra na expressão:”a verdadeira beleza é feita pelo sublime e pelo simples, não pelo ‘espírito’”.
              Mas o que se pode reter de positivo é a atribuição do termo como engenhosidade da alma, isto é, da razão. Nesse caso o termo denota algo como agudeza, que se encontra no sentido do witt inglês, por exemplo, e Voltaire se ocupa em recensear termos correspondentes, em várias línguas.
              Helvetius apresenta uma definição simples, descartando de início as atribuições que se aproveitam do termo para designar algo que não o considera em si próprio. Nessa acepção essencial, o espírito é a faculdade de pensar e suas operações se reduzem a julgar.
              Penso que qualquer que seja a distância entre a posição contemporâneo-fenomenológica de Scheler, relativamente a esse resultado iluminista, temos o seguinte em comum. Para Helvetius trata-se de julgar justamente, o que Voltaire recupera como sendo o bem pensar. Para Scheler trata-se de uma faculdade das essências, ideação na cultura, portanto algo que recobre algo mais que apenas o pensamento especulativo.  Mas se aqui não seria o lugar adequado para averiguar se o “pensar” iluminista é ou não apenas especulativo, quando se trata de “espírito”  o que desejo enfatizar é que em qualquer desses casos não se está de modo algum pensando como se deveria fazer anteriormente à modernidade, isto é, atribuindo o espírito como uma realidade tão substancial quanto a corpórea, isso que Voltaire registra ironicamente sob as designações de pneuma, sopro, respiração, vida, alma. O século XVIII, conforme Bréhier, é o momeneto da rejeição da física de Descartes pelo triunfo da física de Newton, e rejeição da filosofia cartesiana pela universal adoção da filosofia de Locke.
               É interessante observar que um dos efeitos cômicos alcançados por Hobbes no Leviatã decorre justamente do seu acréscimo à lista dos ídolos de Bacon. Hobbes introduz os “ídolos do cérebro”, seres míticos que a imaginação cria e de que a religião se aproveita para jogar com a credulidade e a ignorância alheias, de modo a ameaçar com “espíritos” de toda a espécie aqueles que não aderem às suas pregações.      
                Ora, esses seres, que incluem os demônios e os anjos da imaginação cristã, são designados sob a rubrica de “espírito” nesse sentido antigo, de algo que existe por si. Hobbes intenta mostrar que não existem, mas que derivam da atividade do cérebro ou da inteligência como faculdade de pensar e imaginar. Assim podemos observar que a transposição do sentido do termo espírito já está em curso desde o início do século XVII.
              Aqui é importante reconsiderar as observações de Heidegger sobre a evolução da metafísica até a subjetividade moderna. Lembrando que para ele a oposição de essência e existência é o que determina a eclosão desse movimento de esquecimento do ser designado metafísica que consiste em reduzir a ideia à identidade da coisa, podemos resgatar a seqüência histórica que Heidegger estabelecia desde essa oposição platônica fundamental, a seguir a interpretaçãao aristotélica da essência como ato, para então estabelecer esse ato como sendo o cartesiano pôr da subjetividade frente ao objeto, isto é, essencializadora do objeto.   
              É assim que podemos observar que se por um lado o empirismo rompe com a substancialidade espiritual dos racionalismos no cenário do século XVII, há algo que ambos mantém em comum enquanto filosofias modernas. Independente de concordarmos ou não com a interpretação unificante, condenadora, de Heidegger em relação à história do ser, não se pode afirmar da formação da teoria política empirista que eescapa a esse capítulo da objetivação tornada relativa ao sujeito, como o que permite apreender a época moderna. Sintomaticamente é Hobbes que fornece o percurso exemplar dessa ruptura no âmbito da teoria política.
             Hobbes conduz o Leviatã a uma exposição sobre “o que é a filosofia”, no capítulo 46, após o que  estende um outro capítulo em que há  uma jocosa comparação do papado com o reino das fadas. Ora, o capítulo 46 me parece plasmar o percurso da modernidade de modo que sua compreensão esclarece sobre tudo o que vem a seguir em termos de pensamento político.
            O capítulo se intitula “das trevas resultantes da vã filosofia e das tradições fabulosas”. Hobbes começa por fornecer uma aproximação ao que deve ser a sã filosofia, opondo-a à vã. A filosofia sã ou verdadeira é conhecimento, seu meio é o raciocínio. Ela pode raciocinar da origem da coisa para chegar à suas propriedades ou proceder de modo inverso, das propriedades observadas para uma dedução da origem. Em todo caso, seu objetivo é produzir “aqueles efeitos que a vida exige”, deve  facilitar a existência dos seres humanos.
           A filosofia tem assim sua definição relacionada a uma especificação do conhecimento, pois imediatamente Hobbes enuncia o que ela não é, a saber, a prudência, no sentido de conhecimento como a vivência cotidiana. Assim “conhecimento” está abarcando tudo o que não se põe apenas nesse âmbito de experiência comum. Podem então ser exemplos de filosofia a geometria como a astronomia. Trata-se de conhecimento rigoroso das coisas, de uma produção de saber sobre elas. A palavra filosofia está sendo usada naquele sentido a que hoje aplicamos a palavra ciência especializada. Como é costume registrar quanto a isso, instrumentos científicos como seria um termômetro eram nessa época designados "filosóficos"
            A seguir Hobbes procede a um  hilariante pastiche de história da filosofia. O que há de acusatório e transgressivo no texto depende de uma ruptura fundamental, não expressa, mas plenamente localizável por quem conhece essa história nas suas presentações costumeiras. Podemos resgatar esse passo fundamental através da escolha do termo para designar a experiência vaga, cotidiana, isto é, “prudência”. Ora, prudência é a tradução ususal de phronesis (phrônesis), conceito que na Antigüidade, especialmente no peripatetismo, desempenhou uma função central na ética. Assim ao negar que filosofia seja prudência, ou um caminho para ela, Hobbes está recusando toda a antiga doutrina moral.
              A recusa da doutrina moral tem um alcance maior por se estender à doutrina política, uma vez que ambas apresentam na Antigüidade uma interligação básica. Hobbes está afirmando nada menos que isso, que se apresentou como “a” filosofia até então, na verdade era uma atividade bastante vã, que se havia tornado perniciosa após ter sido aproveitada pela instituição religiosa ávida de assegurar um poder sobre a humanidade que absolutamente não lhe cabia de direito. O talento de Hobbes está em confluir a crítica dessa pretensão da instituição religiosa cristã, em que ele enfeixa não só a igreja e o papado, mas as instituições civis que os servem como as próprias universidades da época, com uma arguta observação da impossibilidade de uma filosofia como teoria política antiga, do ponto de vista da modernidade.
            Aparentemente a sua argumentação vai se basear naquilo que poderíamos, grosso modo, designar  uma ferrenha crítica do particular em prol do geral. Mas a meu ver o que o texto efetivamente realiza é a transposição do pensar ao domínio do particular que caracteriza a entrada no moderno pensamento da subjetividade, como enuncia Heidegger.
           O que Hobbes expressa como crítica ao pensamento antigo nesses domínios moral e político é que nele há uma confusão impossível de desfazer entre o que é particular, idiossincrático, e o que é “geral”, inerente ao Estado. É assim que a política eclesiástica pôde se aproveitar dos escritos antigos, pois a sua pretensão de governar a sociedade civil consiste precisamente na mesma confusão. A religião é algo que inere ao particular, ao sentimento ou preferência de cada um. A lei é atribuição absolutamente geral do Estado, portanto religião e lei civil  nada tem a ver uma com a outra. A lei do Estado pode e deve compelir à obediência, pois ela garante o estado civil pondo fim ao estado de guerra. A adesão ou transgressão de uma regra de religião é algo da alçada de cada um, conforme sua livre escolha.
              Então o que Hobbes põe como objeto de uma teoria política é a sociedade civil cuja extensão formal é a instituição do Estado. Isso que não existe na Antigüidade, onde, conforme a expressão de Hobbes, só o que havia era uma união mais ou menos provisória de particulares onde cada um age conforme seu interesse privado.
              A recusa da moral e da política antigas se relaciona à tarefa de restringir o domínio da lei ao Estado, ao geral. Tudo o mais se torna particular, pessoal, domínio da prudência de cada um. Ora, poderíamos apontar que nesse pastiche de história da filosofia Hobbes confunde tanto a produção filosófica quanto as instituições sociais antiga e feudal.
                  Vimos, bem inversamente ao que ele apresenta, que se pode visar a sociedade antiga justamente pelo que nela havia de irredutível ao particular, erigindo-se como um cosmo totalizante, uma unidade civil-religiosa “ontologizável”, ouso afirmar. O espírito aqui é o ser eterno que integra esse universo ao mesmo tempo cívico e sagrado. Podemos pensar no oportunismo desses antigos ao propor que só eles são “homens”, os outros sendo “bárbaros”, mas o fato é que eles não o propõem como se isso fosse um “princípio” a ser examinado, mas o vivenciavam como uma realidade fundamental, espiritual nesse sentido antigo do termo que se conservou na religião ainda que com propósitos duvidosos, deturpando sua aplicação talvez, mas isso não cabe analisar nesse momento.
              Ora, o sentido dessa inversão de Hobbes se verifica bastante estratégico, pois o que está em marcha é a transformação desse antigo cosmo cívico, que como tal ele ignora tratando como um agregado de vontades isoladas, em uma sociedade civil. É essa sociedade o que  Hobbes realiza separando poder eclesiástico e temporal. Está aí a origem do moderno conceito de Estado.
            Se no mundo antigo a comunidade é o domínio totalizante que, só ele, permite uma autocompreensão do particular, o que a modernidade quer construir, e Hobbes nesse trecho do Leviatã está expressando esse desejo ao mesmo tempo que realizando-o, é a esfera “leiga” da lei civil, de modo que algo como subversão da ordem consiste agora precisamente em contaminar essa esfera com a introdução nesse domínio de todo interesse “particular”, no sentido que se pode atribuir como “idiossincrático”. Esse domínio está assim vindo ao pensável no mesmo lance que o conceito moderno de sociedade como o seu inverso, definido como seu oposto.
             Mas é por isso mesmo que o “absolutismo” ou conservadorismo de Hobbes já contém os princípios do liberalismo que será plenamente expresso em Locke, onde a ênfase do argumento, ao menos nessa fase, está inversamente, no geral que é mal e no particular que é bom.
             Isso porque em Locke esse “idiossincrático” que está ameaçando contaminar o domínio restrito da civilidade, isto é, da lei do Estado, é institucional, tratando-se do poder eclesiástico, ele mesmo um geral que está querendo se impor ao particular. O que de fato resulta numa visão bem mais realista do contexto, com a religião sendo o poder que apoia as monarquias absolutas. Mas qual é a imagem da lei, o que é que fundamenta a sociedade civil? Locke responde em muitos lugares do seu tratado: o que a sociedade civil garante é a propriedade particular.
           Propriedade aqui, surpreendentemente, abrange tanto a própria existência, como a manutenção da saúde, quanto a posse de objetos, de terras, etc. O “geral” que parece estar prevalecendo como domínio da lei, mesmo em Hobbes, é tão somente o particular generalizável, isto é, o ser humano particular despido de tudo o que pode ser matizado na forma de preferência idiossincrática, gosto ou inclinação.
         Com efeito, é em função desse particular, para garantir a sua segurança, leia-se a segurança de sua propriedade, o que inclui a sua vida, que a sociedade civil existe e que a lei tem algum sentido, na formulação de Locke. Pois de outro modo não haveria poder algum que pudesse constranger alguém a obedecer a outrem.
          Que o espírito seja a faculdade de fazer essa separação, no particular, entre o que é generalizável ou não, determina toda uma transformação no estatuto da essência. Essência quer agora denotar: o que é comum, o que é objetivável, expresso na linguagem e regrado pela lei. Não a forma separada ou realidade espiritual, substancial, o Ser. Acidente quer agora denotar: o que podemos conservar como domínio da preferência, do gosto, o que cada um decide quanto a si na existência. A oposição essência – existência recobre a oposição entre o público e o privado, a lei e o indivíduo, mas isso somente enquanto o indivíduo é o generalizável da lei.
         A essência é invariável, apreensível pela generalização do particular, a existência conserva algo do acaso, mas mesmo nesse domínio acidental a razão também se exerce. A religião pertence a esse domínio, é algo absolutamente pessoal, depende da adesão de cada um, portanto o Estado não pode impor ou proibir qualquer crença, desde que seus adeptos não estejam agindo contra as leis do país. Mas aplicando a razão, Hobbes e Locke podem repelir o ateísmo como as religiões não cristãs, enquanto incompatíveis com o bem do ser humano. Ainda assim enunciam a obrigar quem quer que seja a aceitar suas razões quanto a isso.
         A argumentação da Carta sobre a tolerância de Locke é exemplar. Se a religião cristã é o verdadeiro bem do ser humano é precisamente por ser aquela que ensina a tolerância. Um pagão não tem problemas ao aceitar que sua crença deva ser apoiada pela espada do príncipe, mas ao verdadeiro cristão isso deveria repugnar.
        Ademais, quando Jesus afirmou ser “o” caminho, ele certamente não estava propondo que houvesse uma pluralidade de vias espirituais. Mas se cada seita afirma ser esse caminho, e se podemos sem dúvida observar que “cada igreja é ortodoxa para consigo mesma e errônea e herege para as outras”, resta que “nenhum caminho no qual alguém entra contra sua própria vontade jamais o levará para as mansões abençoadas”, conforme o texto do segundo tratado. A conclusão é que a razão de cada um deve resolver o seu caminho, e só Deus se reserva como juiz numa relação estritamente pessoal com quem escolhe.
              A tolerância de Locke se estende mesmo a considerar injusto o confisco da propriedade dos povos pagãos com base numa prerrogativa de povos cristãos. Ela parece limitar-se apenas quando se trata de ateísmo. Mas no panorama geral do texto o que se retém é a mesma rigorosa separação em que Hobbes insistia, de um domínio restrito como sendo o da lei, da regulação da civitas, da sociedade política, do Estado. Oposto a esse domínio encontrando-se toda a gama variada de opções pessoais, incluindo a religião. Mas esse domínio mesmo sendo plasmado como generalização do particular, existindo apenas para e por esse particular.
          E Locke afirmará peremptoriamente, nos escritos sobre o entendimento, que está no âmbito do particular “o tudo e o máximo” do nosso conhecimento enquanto percepção do acordo ou desacordo de nossas idéias particulares, numa inversão exemplar da máxima antiga pela qual só poderia haver conhecimento do universal.
          Assim, do segundo tratado parece ser depreensível que se esse ser humano particular pudesse existir apenas consigo mesmo seria perfeitamente feliz, a sociedade civil existindo para conceder a cada um uma réplica desse estado autárquico que pertence essencialmente à subjetividade que estamos designando concreta, que assim estou designando por oposição àquela que se afirmará positivamente pensada na contemporaneidade em termos de subjetividade histórica ou cultural somente onde se pode afirmar em sentido pleno uma epistemologia da subjetividade ou a realidade pensável para si do sujeito.
         Pois, como deve ter ficado nítido, de fato no período moderno a teoria política limita a lei ao geral para garantir a inviolabilidade do particular, mas a teoria não pode pensar o particular além do seu generalizável na forma do que a teoria não deve abranger enquanto o que se situa além da lei. Além disso, quando se trata do conhecimento, o pensável é relativo ao sujeito concreto, mas ele não se pensa, e sim somente é produtor das ideias representativas do mundo, esse mundo onde não há mudanças senão fortuitas e que não atingem a lógica do todo. Com relação a ele mesmo, limita-se a autoapreender-se enquanto esse generalizável de suas paixões ou esse reprodutor de intelecções puras.



     6 - Berkeley e Hume
       
              O século XVIII é marcado pela conjunção, conforme Bréhier, de dois traços bem nitidamente visíveis no pensamento de Berkeley. A crítica do conhecimento, voltada contra o imediatismo das auto-apreensões cartesianas e a ciência que assim deriva o seu fundamento; e uma forma de espiritualidade que se enuncia como um profundo sentimento da onipresença do espírito enquanto intelecto agente e enquanto faculdade moral de julgar. Esses traços me parecem convergir na sua comum dependência à fórmula empirista que transforma o conceito de objeto. Em vez de uma “coisa”, uma realidade perceptível dotada de um “estofo”, o objeto é limitado pelos empiristas a correlato da consciência. Quanto a isso, Berkeley e Hume comungam o mesmo princípio.
              Mas se ambos devem assim a precedência a Locke, cuja influência vimos preponderante nesse período, é preciso agora deliberadamente observar as diferenças. É interessante sublinhar que também em Locke há uma vinculação da recusa ao inatismo com uma atitude espiritual. O que, no entanto, não permite a conclusão de que esses traços do século XVIII apenas repõem as premissas de Locke é tanto a natureza do exercício crítico quanto a espiritualidade que o embasa.
               A crítica de Locke ao inatismo se faz por meio de uma “história da alma”, ao invés de um romance, como observou Voltaire louvando o realismo característico da obra de Locke - lembrando que "história natural" no período moderno significa estudo da natureza, o que vai ser substituído pela biologia desde o século XIX, porquanto história natural é a natureza fixista ainda que não mais abstraída ao pensar na sua concretude imediata como até o século XVII se fazia, enquanto a biologia nasce com o transformismo e com um novo tipo de ruptura, agora em relação à imediatez do visível "concreto" devido à ampliação dos níveis observáveis a partir do microscópio. Quanto a isso Locke pertence ao seu século, mesmo se não é negável que ele possui um senso de “relatividade sociológica”, conforme a expressão de Vergez-Huismann, incomum em sua época.
           O que desejo enfatizar é que as análises de Locke, desfazendo os mistérios que permitiam postular a autonomia onto-teo-lógica das idéias,  dependem principalmente da ligação de consciência e mundo.
           O fato de que a partir da liquidação do pressuposto de uma impossibilidade de conceber os princípios do intelecto a não ser como auto-suficientes, por sua auto-evidência, segue-se uma transformação correlata na noção de objeto não parece fundamental à compreensão do escopo da crítica de Locke ao inatismo. Assim, ao opor dois tipos de ciência, as ideais e as experimentais, Locke não precisa fundar a oposição a partir de uma decisão clara sobre o objeto dessas ciências, mas sim sobre o modo pelo qual eles se estabelecem.
             As ciências “ideais” são as matemáticas e as que envolvem os fenômenos humanos, como a moral. Elas não são ideais por estarem portando sobre coisas mais reais, e sim porque seu modo de se estabelecer depende de noções constantes, forjadas pelo que então se entende como espírito, o intelecto. Enquanto as ciências experimentais precisam ser reguladas por um confronto constante com o mundo, já que a validez de seus juízos porta sobre a coexistência das idéias por eles afirmadas e as relações que se verificam na realidade.
             A crítica de Locke supõe uma confiança no ser assim das coisas conforme a representação que delas temos, ainda que não dependa exclusivamente da afirmação de que as coisas são efetivamente como temos delas a sensação. As idéias gerais, os universais, seriam obra do ser humano, mas “fundada sobre a natureza das coisas”, conforme a citação de Locke por Bréhier, de modo que as idéias de sensação, aquelas que se reportam diretamente à exterioridade, são ao mesmo tempo representativas do real e elementos irredutíveis da consciência.
            Essa duplicidade se expressa, por exemplo, pelo fato de que se as idéias de sensação captam tanto o essencial das coisas ("qualidades primeiras", como movimento, existência, número) quanto impressões subjetivas ("qualidades segundas", como a cor, o sabor, etc), resta que, um pouco conforme Spinoza, as idéias de substâncias, qüididades ou essências, são sempre incompletas, pois não sabemos jamais que poderes desconhecidos pode revelar a experiência.
           No interior da obra de Locke esses traços não me parecem resultar numa ambivalência especialmente acentuável, pois a motivação da crítica como que une essas sugestões de modo inequívoco. O trabalho de Locke tem um alvo preciso, a doutrina das idéias inatas, nisso pelo que essa doutrina acarreta uma espécie de certeza indesejável que torna estéril o impulso do conhecimento científico por se dotar de um falso critério de validez.
           O idealista, como o platônico Cudworth ou o moderno Descartes, enuncia suas idéias sem perceber que não há nada nelas que assegure sua verdade, pois o que fazem, a partir de noções construídas pelo espírito como as verdades matemáticas, é derivar uma realidade autônoma, auto-evidente, de outros tipos de idéias que apenas para eles, possuem o mesmo grau de clareza e generalidade, como os princípios de religião e de moral.
           É por isso que a crítica ao inatismo está relacionada a uma atitude espiritual bastante nítida. Locke pretende, por um lado, mostrar que a verdade científica precisa ser descoberta e demonstrada pela experiência, não apenas “revelada” a partir de visões interiores. Isso, já que ela porta sobre o que não está, precisamente, nesse interior, mas no mundo sobre o qual o espírito pode, sim, enunciar juízos válidos, já que aquilo que ele conhece, de que não pode duvidar seriamente pois são suas sensações vividas, lhe vem sempre de elementos dessa exterioridade, ainda que ele se sirva desses elementos para construir sistemas abstratos.
              Mas assim, purgando a ciência de um critério falso de segurança, purga-se ao mesmo tempo a moral, já que esses princípios inatos se arrogam a revelação da universalidade de preceitos e crenças que não estão de modo algum garantidos como tais, mas que são impostos aos outros como se fossem uma questão de honestidade aceitá-los. A atitude espiritual de Locke se expressa como uma moralidade, sentimento de legalidade social que deve ser preservada contra as pré-concepções impostas pela parcialidade de interesses não inteiramente expressos, disfarçados por doutrinas que se arrogam uma autoridade que não podem fundar sobre nenhuma ordem demonstrável.
            Não julgando do ponto de vista da obra como um todo, mas de postulados precisos que ela garante, o empirismo posterior à Locke prossegue numa via de continuidade com seus princípios, mas também crítica de suas ambigüidades setorizadas. Assim Berkeley rejeita inteiramente o valor representativo das idéias para conservar apenas a sua natureza de elementos últimos da consciência, o que se mantém como traço comum no empirismo, desde então.
             Ora, a essa restrição se pode relacionar uma mudança de enfoque, pois ao tipo de análise concreta, realista, ancorada na relação da consciência com a exterioridade, que é característica do texto de Locke, se contrastam os diálogos e tratados de Berkeley e Hume, onde predomina um clima sensacionalista de revelação, de reversão dos fundamentos estabelecidos pela convenção na percepção do mundo, ao mesmo tempo em que a atitude espiritual não se prende à simples preocupação com a liberdade de consciência, social e moral, mas se estende a uma concepção do real transmutada a partir dessa reversão que o texto estaria enunciando. 
              No entanto, já se pode apontar um afastamento de Hume a Berkeley, quanto a isso, pois se Berkeley fica fiel a essa espiritualidade legalista de Locke, mas de modo a interpretá-la de modo místico, Hume a utiliza mais como uma catarse, uma liberação, como se maximizasse as premissas de Locke num sentido individualista, e por aí seus escritos jocosos inspirados no ceticismo, em que ele explora a impossibilidade de “provar” doutrinas metafísicas metamorfoseando sua linguagem para apresentar exposições igualmente “coerentes” , mas cada uma de uma tese típica de uma doutrina filosófica, de modo que a coleção desses textos resulta na exposição do sustentado por todos os tipos de “escolas” filosóficas irredutíveis, idealista, estóica, epicurista, etc.
            Contudo, essas démarches se revelam algo paradoxais. Assim, o misticismo de Berkeley, apoiado na redução do real ao imaterial percebido, reverte finalmente numa aproximação à teologia que não permite à sua posterior guinada ao platonismo parecer demasiado surpreendente. Quanto a Hume, na crítica da religião atinge o máximo do humor crítico, cáustico e sarcástico, não sem revelar seu poder de penetração ao submeter o fenômeno religioso ao exame. Mas resta que, como notam Vergez-Huismann, o texto sobre “religião natural” , no qual encena a controvérsia entre três personagens representantes de três vertentes religiosas opostas, permanece complexo, nada fácil de interpretar quanto à posição do autor.
         Assim não se pode derivar sem mais, em Hume, a atitude crítica a uma indiferença espiritual, e cada uma dessas características observáveis no seu tratamento do assunto se relaciona a conseqüências importantes na compreensão de sua obra.
                                                                                                                                 ................


           Algo notável na evolução desse período é uma espécie de reposição de meios, que se reencontram, mas sempre de modo algo deslocado quanto ao uso, na obra de cada filósofo. Assim, o diálogo, que se torna o instrumento da crítica do conhecimento, em Leibniz, Berkeley, Hume, ressurgindo com Fichte. Mas também a contraposição antitética ou dialética de afirmações que o empirismo torna igualmente improváveis.     
           Collier o utiliza, demonstrando igualmente bem a tese e a antítese, seja quanto a existência do mundo exterior, seja quanto à sua infinitude, seja quanto à indivisibilidade da matéria, seja quanto à existência do movimento, procedimento que culmina nas antinomias de Kant, mas envolve também as paródias de discursos filosóficos empreendidas por Hume.
          Assim também Berkeley parece inicialmente apenas repor, ainda que nem sempre no mesmo gênero, aquele consciencioso exame de idéias característico de Locke. Mas sua arte de decomposição parece mais extrema e se estende ao percebido não para determinar como nossas idéias são formadas conforme a modalidade de sua apreensão por nós, mas, quase que inversamente, como o percebido não corresponde à objetividade que nós lhe emprestamos ao apreendê-lo.
         Essa decomposição do percebido deve atomizar o dado em tantas regiões da experiência quanto a imediatez de nossa apreensão determina, em vez de começar pelo pressuposto de sua unidade para nós como sendo um critério válido da sua objetividade em si.
        O exemplo é o do conceito de espaço, que supomos uma unidade ou “sensível comum” às regiões irredutíveis dos sentidos tomados separadamente, como a visão e o tato. Berkeley se empenha na demonstração de que o espaço visual não coincide com o espaço tátil. Aquele se limita a comprimento e largura, não portando a profundidade senão como um cálculo aproximado de luz e sombra que a experiência ensinou a interpretar em termos de distância percorrida, isso que pertence apenas ao tato.
          Assim a correspondência dos dois espaços nada tem de a priorística, mas depende da experiência que ensina a ligação da mudança de claridade com a mudança de distância. Nós devemos aprender essa relação do mesmo modo que aquela que se interpõe entre o signo verbal, isto é, a palavra, e o objeto que ele designa. Aqui a argumentação de Bekeley se mostra bem oportuna à atualidade, pois ela demoliria as análises de Husserl onde se supõe que exatamente devido a essa impossibilidade do percebido corresponder à objetividade de nossas ideias, estas devem ser a prioristicamente "garantidas".
         O “objeto” é construído na experiência como horizonte dessas fontes irredutíveis, para cada qual existe, na realidade revelada pelo exame, um objeto próprio. Mas para Berkeley, a experiência das coisas é ela mesma uma linguagem, e é assim que deduzimos um Espírito Universal que a institui, do mesmo modo que a linguagem verbal supõe um espírito que a constitui. As séries táteis e visuais induzem a afirmar uma correspondência providencial que só pode ser garantida por Deus.
           Em geral. como também em Locke, trata-se de utilizar todos os meios para surpreender a inconsistência das afirmações derivadas do inatismo, considerando-se toda a filosofia cartesiana como uma tautologia. Especialmente Berkeley se exercita na impossibilidade de manter a matemática como um tipo de conhecimento puro ou “espiritual”, não tanto porque, como construção do espírito, ela supõe elementos fornecidos pela experiência, e mais devido a que aquilo que ela constrói como verdade inegável não resiste a uma consideração isenta do pré-conceito dessa inegabilidade, isto é, um exame do dado na realidade de sua vivência pelo ser humano: a linha se move, alterando suas pretensas dimensões estabilizadas quando nos movemos; o tempo é uma sensação e suas flutuações tem a ver com as do espírito, nada tendo de puramente objetivas. Sobretudo, a célebre asserção de Berkeley, pelo que não existe “o” triângulo nem mesmo na mente, que só lida com essa figura aqui, desenhada como isósceles ou escaleno ou eqüilátero.
           Ora, isso torna o mundo material ele mesmo espiritual, no sentido de produzido pelo espírito que o vivencia. Por isso Berkeley rejeita igualmente a diferenciação de Locke acerca das idéias, pois o que poderia distinguir a sensação da reflexão, o branco e a sua percepção? Essa oposição apenas poderia consolidar aquela de matéria, o que é o objeto da sensação, e espírito, que percebe. As coisas, para Berkeley,  são modos da existência das pessoas que as vivenciam, são puramente percepções.
          Se a motivação moral de Locke se relacionava a purgar o conhecer de sua pretensão a priorística, Berkeley mostra que a tarefa crítica deve visar principalmente a linguagem, pois é ela que devemos responsabilizar pela crença aberrante nas abstrações, isso que compromete a ciência mais do que o inatismo, já que o uso comum da linguagem induz a uma confiança na objetividade do dado independente de estar sendo proposto a prioristicamente ou não.
          A crítica de Berkeley abrange assim tanto Descartes quanto Locke, pois o erro fundamental é a crença numa realidade independente do espírito e isso, segundo Berkeley, não parece ter sido especialmente enfatizado por Locke. Este manteve a doutrina das idéias abstratas como fabricadas pelo espírito, independente da questão da correspondência à essência que, se permanece desconhecida, é, no entanto, real. Como vimos, para Berkeley qualquer espécie de abstração não existe, pois o espírito não pode por uma idéia que não manifesta as suas implicações, como um movimento que não é nem lento nem rápido, um triângulo essencial que não determina a relação dos seus lados ou ângulos, etc.  A idéia  abstrata, na concepção de Berkeley, é uma fantasia dos filósofos, um modo de considerar o funcionamento da mente que não corresponde ao real.
            Fantasia cuja fonte é a linguagem ingenuamente utilizada, pois pensa-se que a linguagm não teria significação se cada palavra não correspondesse a uma idéia geral ou abstrata, não redutível a qualquer particular, mas enunciando o que há de mais comum a uma classe de seres. Berkely mostra que, inversamente, o que o nome designa é a quantidade ilimitada dos seres possivelmente classificáveis na abrangência do seu uso. A palavra não tem por correlato um todo, mas uma multiplicidade ou um sentimento, uma posição ou estado do espírito.
         Aqui se insinua o “monstro” na filosofia, pois trata-se de mostrar que a idéia abstrata é um monstro lógico.
         O que se trata de preservar é a indeterminação do signo, mais profundamente a relatividade da experiência ao espírito, mas de modo que a fluidez não deve se estancar tampouco numa concepção rígida acerca da Subjetividade, como o que “põe” à frente algo desde que se pro-põe como realidade irredutível. Visto desse modo, teríamos duas abstrações, a de um ser cuja idéia tem como conteúdo a tese da existência em geral, e aquilo que dele subtraindo-se assegura ao mesmo tempo a sua realidade e a desse ser previamente dado.
           O espírito, em Berkeley, começa por assegurar-se, não por “uma” idéia, mas como um movimento, uma causa motriz do fluxo de idéias, que se sucedem e se combinam de certos modos precisos. Se essas idéias são provocadas, isso só induz à interação entre espíritos, não a uma necessidade de postular “coisas” na exterioridade, que por si deveriam impor a experiência como sendo a de uma objetividade. E se restam idéias que parecem não depender da vontade, de outros espíritos como agentes, podemos postular a existência de Deus como Mente ou Vontade infinita que atua a ordem e a harmonia das coisas naturalmente perceptíveis. Assim, a posição de Berkeley continua imanente à filosofia moderna, numa proximidade a Leibniz: em vez da extensão ou modos, a força ou fluidez do espírito da parte do sujeito, mas o horizonte desse pensamento sendo Deus como harmonia pré-estabelecida que pode ser conceituada como uma Mathesis ainda que essa "característica universal", a linguagem de relações que preside a formação de ideias e sua concatenação numa coerência da experiência,  fosse uma linguagem, não necessariamente a própria ordem das coisas.
            O espírito se auto-apreende como essa causalidade livre, que compreende a interação com outros espíritos, e ele pode generalizar a posição do espírito universal, Deus, agente livre da natureza, dessas idéias que se agrupam, séries regulares de percepções cuja coerência se interpõe, como vimos, pela convergência providencial de regiões irredutíveis de perceptibilidade.
            Sciacca propõe aqui uma convergência de Berkeley e Malebranche. Conforme a tese "ocasionalista" de Malebranche toda postulação de causa compreende a ação de Deus, já que a aceitação do dualismo irredutível entre matéria e espírito deve impossibilitar que se estenda qualquer interferência entre as substâncias, problema que Descartes tentou resolver por meio da glândula que asseguraria a comunicação do ser físico e alma, mas sendo essa solução um dos pontos mais criticados de sua filosofia, até mesmo por aqueles que pretenderam continuar fazendo algum uso dela.
         Conforme Sciacca, a “solução ocasionalista” reverte na produção,  por Deus, das idéias nos espíritos que compreendem assim a linguagem da natureza. A proposição essencial de Malebranche, como destacam ainda Vergez-Huismann, é que a verdade é Deus, e o que vemos não são criações, mas “vemos em Deus”, é nele que atingimos as idéias das coisas, arquétipos ou modelos eternos, sendo o pensamento de Malebranche bastante platonizado.
          Ora, aqui Malebranche como que joga Descartes contra Descartes, pois sua adoção do mecanicismo cartesiano se faz pela contrafação da tese cartesiana pela qual o intelecto de Deus e sua vontade são completamente independentes, o que se opõe à doutrina do agostinismo, que é a de Malebranche, da visão em Deus. Pois essa doutrina depende da vinculação da criação à necessidade racional, restando a vontade de Deus livre apenas no sentido de escolher quais dentre essas coisas serão chamadas a existir. Compreender uma relação necessária no mundo é, portanto, ver no intelecto mesmo de Deus, reconstituir a correlação mesma que aí se institui.
          Descartes se opôs veementemente a essa perspectiva escolástica, consistindo essa oposição, como acentuou Bessayde, na tese inaugural de sua obra. Para Descartes isso equivaleria a submeter Deus ao destino. A razão é constituída por determinadas relações porque Deus quer, não porque sua vontade devesse se subordinar ao seu entendimento. Essa desvinculação de vontade e entendimento em Deus, a meu ver, é o que permite a Descartes lançar a hipótese de um Deus enganador, já que por vontade Deus teria o poder de induzir uma idealidade no intelecto humano que não corresponde ao que Deus efetivamente pensa.
           Na perspectiva de Sciacca, a interconexão espiritual que garante o percebido como natureza, em Berkeley, seria uma reposição do ocasionalismo. Penso que não há dúvida quanto à convergência de intenções teológicas em ambos os pensadores. Mas, não obstante a diversidade de vias, essa intenção, que é a de assegurar o poder absoluto de Deus, é também a de Descartes. Vergez-Huismann acentuam bem mais o que realmente separa e relaciona as perspectivas de Descartes, Malebranche e Berkeley. Em todo caso trata-se de fazer de Deus a causa de nossas idéias, e Berkeley começa por estar de acordo com Descartes. Mas o que opõe Descartes e Malebranche é que desde sempre Malebranche não propõe Deus como causa de nossas idéias sem ao mesmo tempo supor que ele é a morada dessas idéias. Ora, é isso que Berkeley vai sustentar na guinada platônica de sua velhice, após a leitura de escritos neoplatônicos durante sua estada na América.
           Mas é importante enfatizar aquilo que está implicado nessa reversão do postulado cartesiano. Trata-se da noção de idéia como representação. Sciacca sublinha que para Berkeley as idéias são inativas, passivas, como que produzidas, seja pela vontade de outros espíritos, seja pela vontade de Deus, já que nessa perspectiva, como notou Bergson, “a matéria seria uma língua em que Deus nos fala” (Vergez-Huismann, p. 243). Assim elas nem são simples representações subjetivas no sentido de Locke, já que o percebido é real, nem, conseqüentemente, são destituídas de valor ontológico como no sentido de Descartes, pelo qual ela é apenas um ato mental, ainda que representando um real que Deus ou a substância gerou. Berkeley recusa todo ceticismo, aceitando os dados como aparecem. Como não seriam exatamente assim, se não são mais do que o seu ser percebido?
            Contudo, Vergez-Huismann mostram que o que há em comum a Berkeley e Manlebranche se limita ao ocasionalismo, sendo a idéia visível não uma causa real, mas apenas uma “causa ocasional”, isto é, o signo da idéia tangível produzida por Deus no espírito, e à doutrina da visão em Deus. Mas enquanto Malebranche estende o ocasionalismo à própria vontade das criaturas, que seria também uma simples causa ocasional, Berkeley atribui à pessoa humana uma liberdade real, uma ação eficaz. E Malebranche jamais estendeu a sua teoria no sentido do imaterialismo.
              Conforme Bréhier, o imaterialismo de Berkeley se relaciona a uma reversão da espistemologia clássica. Pois nesse período aceita-se geralmente uma oposição, seja no sentido de Locke, entre idéias primárias e secundárias, seja no sentido de Malebranche, entre idéias que têm seu objeto em Deus, e sensações, simples modalidades do espírito, ou mesmo, em Descartes, entre idéias claras e distintas, obscuras e confusas. Essas oposições servem a uma fundamentação da matemática e da física mecânica, pois só essas ciências se justificam ao ser atribuídas como domínio de idéias estáveis, correlatas ao modo de ser indubitável das coisas mesmas.
               Berkeley critica tais oposições, para afirmar que essa atribuição é arbitrária. Como num círculo vicioso, são essas ciências que procuram se justificar, conferindo um valor especial a uma classe de idéias. As matemáticas se formam, na realidade, apenas como uma linguagem arbitrária com a qual podemos expressar o que percebemos.
               Bréhier assinala os limites e o interesse desse empreendimento crítico. Berkeley, movido pelo intuito de somente considerar real o percebido, rejeita nas matemáticas toda criação que não pode ser de algum modo reduzida ao perceptível: tanto a divisibilidade ao infinito quanto o número irracional e a noção de um espaço maior que qualquer espaço dado. Mas rejeita também a noção de causa ou força na física mecânica. Assim, contudo, ele chega a uma concepção de ciência singular e original, pois por essa crítica da causa, postula uma física como ciência de leis, o que antecipa o positivismo, ainda que conserve o finalismo.
              O que Berkeley preserva por esse meio é a impossibilidade de se considerar a causa como uma necessidade, o produto do conhecimento como garantido por um sistema de razões que por si se mantém, quando a “natureza” só se nomeia como providência. O que há de inteiramente ordenado se deve ao conhecimento que recupera a ordem, a beleza, as qualidades inerentes à criação, no sentido forte do termo, isso que se comunica ao espírito que percebe o real. Como em Descartes, o que Deus cria não está na dependência de uma necessidade, mas como em Malebranche, nada há na exterioridade do espírito de Deus.
             A imagem do universo se articula a partir do espírito que se expressa aos outros espíritos, isto é, Deus expressando-se. Essa expressão se faz por meio de uma linguagem organizada, constante, a física sendo a apreensão dos signos dessa linguagem, a metafísica, a compreensão de sua significação. Ora, na obra da velhice, Berkeley enuncia uma concepção algo afastada dessa premissa imaterialista, sustentando o conceito de universo animado, cujos movimentos são regrados por um fogo sutil, ou fluído vital, tornando-os simpáticos, convergentes. O ser supremo que utiliza esse fogo ou fluído é Deus: força, bondade e inteligência.
              Bréhier acentua o que há de singular nessa transformação do pensamento de Berkeley. O platonismo que havia restado a partir do século XVII e na ambientação das luzes, como no exemplo de Cudworth, estava purificado das interpretações místicas da magia do Renascimento. O que se devia evitar eram as conseqüências neoplatônicas do panteísmo ou da negação ao Uno das características de subjetividade, como inteligência ou consciência, que convém à crença em um ser como Deus. Ora, Berkeley interpreta a massa de escritos neoplatônicos e neopitagóricos oriundos da Renascença no sentido de uma filosofia oculta, sabedoria originária pertencente às eras mais antigas do mundo, tipo de mistério transmitido à margem do pensamento oficial. Quanto a isso Berkeley não deixa de antecipar a atitude que vimos emergir no pré-romantismo.
           Assim Berkeley visou o platonismo pelo viés de seu destacamento das coisas sensíveis, por sua limitação ao puramente intelectual. Ora, a crítica das ciências em Berkeley, isso que o faz algo deslocado desse período, abarca precisamente toda dependência teórica de uma realidade material ou sensível. Enquanto o seu platonismo místico, modulado no sentido de um cristianismo avant la lettre, pode sustentar o conceito de um universo inteiramente relacionado à ação de Deus. O fogo sutil não contradiz o imaterialismo, já que atua como força, não desviando a natureza de seu caráter intrínseco que é o de ser percebida.
          O platonismo parece bastante conveniente, então, por permitir contornar o problema do conhecimento nessa ambiência imaterialista, já que estabelece a relação do conhecimento apenas no plano das realidades espirituais, não das coisas sensíveis. Ora, Bréhier mostra que mesmo na obra anterior à guinada platônica, a crítica da religião natural e a defesa da religião revelada, em Berkeley, ilustravam bastante bem o imaterialismo, pois o argumento dessa defesa se baseia na impossibilidade para o senso comum de se servir dos raciocínios sutis dos filósofos que fundamentam a religião natural, enquanto os preceitos e oráculos da religião revelada se acomodam melhor à aptidão do povo e ao bem da sociedade.      
         Ou seja, conforme o imaterialismo, a verdade não imediatamente alcançável só é real pelo concreto, pelo imediatamente percebido, assim como a matemática pela sensação, a razão pela revelação. Já no âmbito do platonismo, Berkeley mantém a inacessibilidade da realidade espiritual na exterioridade da revelação.

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                A importância de David Hume com relação à filosofia se mede pelo fato de que a compreensão do seu pensamento enseja o questionamento do sentido do exercício filosófico. Mas também porque trata-se de uma visão original do pensamento humano, ou como observou Deleuze, “da ciência do homem”, nisso pelo que ela se conceberia pioneiramente com Hume,  ao modo  de “psicossociologia” (Empirismo e Subjetividade, p.43). Assim, se fosse o caso de identificar precursores, para Deleuze seria Hume, não inicialmente Rousseau como para Levi-Strauss, que teria favorecido a formação das ciências humanas.
             Essa originalidade de Hume não se mostra sem, ao mesmo tempo, estar numa relação profunda com aquilo de que se destaca. Com efeito, o que implica a observação de Deleuze é a constatação de que Hume subverte o problema dos vínculos entre natureza e sociedade, mas também aqueles existentes entre necessidades e instituições. A via pelo qual a exposição da filosofia de Hume reencontra a questão atual do sentido da filosofia na concepção de Deleuze,  é a que envolve o tema da Instituição.
             Hume desloca bem mais do que Berkeley, em relação a Locke, a cena da reflexão empirista. O problema do conhecimento e a análise das idéias só aparentemente relançam as classificações já praticadas por Locke a respeito da oposição entre dados provenientes do exterior e afecções devidas à atividade do espírito. Isso se torna claro na perspectiva de Bréhier, que mostra a insuficiência de se situar Hume, por exemplo, como crítico da causalidade, naturalmente após Locke, crítico da noção de substância, e Berkeley, crítico da noção de causalidade física. Nesse aporte inadequado, Hume apenas teria aprofundado a crítica de Berkeley, estendendo-a à causalidade em geral, enquanto aquele havia conservado essa noção no âmbito da interação entre os espíritos.
           Bréhier situa a originalidade de Hume como o mérito de ter transformado a metafísica numa crítica, anteriormente a Kant. Assim, ele ousou a liberação do campo do pensamento humano de duas coerções, da ação e da autoridade, que o haviam mantido como análise, mesmo empirista ao modo dos ideólogos iluministas como Destut de Tracy e Condillac, limitada como tal pela pré-concepção de uma harmonia já estabelecida entre a verdade e as necessidades humanas. Assim o pensamento de Hume não se apresenta como uma genealogia ou composição de idéias, mas se endereça como busca de justificação em nível de princípios.
           O que ocorre como assinala Deleuze, é mais profundamente uma reversão no âmbito da significação do empirismo. A exposição de Bréhier desenvolve esquematicamente as crítica do conhecimento e da religião, mais o pensamento moral, de modo que resulta uma espécie de dependência do conjunto em relação à gnosiologia. A originalidade de Hume está, conforme Bréhier, preferencialmente registrada nessa circunscrição inicial.
         Assim a espontaneidade da crença, base do seu pensamento religioso, deriva dessa concepção da filosofia dogmática como um tipo de superestrutura inútil. Aqui a crítica atinge os dogmatismos mais opostos: tanto de substancialistas como de imaterialistas como Berkeley, no que tange à natureza do espírito; tanto da postulação da identidade subjetiva como realidade permanente independente das impressões, quanto da conceituação dessa identidade como senso íntimo, consciência de si; tanto da prova ontológica da existência de Deus, pois a imaginação permanece livre para negar a pretensa necessidade, como da prova da contingência do mundo, pois as conclusões que se seguem da noção de um universo como artifício, à Voltaire, são espantosas na objeção de Hume: Deus como operador humano, tão imperfeito como qualquer artesão; universo limitado como um relógio, etc.
          É o mesmo quanto à moral, tratando-se, uma vez desqualificadas as pretensões do racionalismo, de estender a desqualificação às teorias que pretendem fundamentar as relações éticas com a mesma objetividade das relações matemáticas, isto é, no domínio da necessidade racional. Ora, tendo-se já mostrado na crítica do conhecimento que esse domínio de necessidade não se justifica por si, resta o apelo à crença e ao sentimento no âmbito da moralidade. Bréhier registra também quanto a esse aspecto algo de original, pois Hume “reverte os termos do problema” ao recusar tanto o liberalismo de Whigs quanto o absolutismo de Tories, lançando o aporte do utilitarismo e constituindo o liame social não na origem da sociedade, mas na conveniência atual da instituição do governo.
             O desenvolvimento da exposição de Bréhier, destacando os aspectos principais das inovações que Hume concretiza, não permite porém observar o alcance do que ele propicia. Os estudos de Deleuze sobre Hume esclarecem bastante nesse sentido, pois me parece que o âmbito utilitário aqui abrange algo mais do que apenas um modo de reverter a conexão particular-geral deslocando o tipo de teoria do contrato, que supõe o interesse particular generalizável, por uma utilidade que desde sempre se estabelece como sendo a do geral, no horizonte de que o interesse particular se acomoda.
           Mas esse geral não sendo o generalizável do particular ao mesmo tempo posto e abstraível da sua particularidade, e sim a heterogeneidade do múltiplo que integra a sociedade como nível público, universalidade da lei. Isso somente pode ser o caso, quando o sujeito se torna pensável em si e para si, como assinalei, ao mesmo tempo que o direito após a Revolução Francesa, de modo geral na Europa vai se concretizar numa transformação pela qual não se reduz mais ao estamento, mas se estende às pessoas que respondem, na sua particularidade, todas à mesma lei.
       Se esse papel de deslocamento do generalizável pertencerá ao utilitarismo desde o século XIX, com Bentham, em Hume trata-se mais de transformar a relação de natureza e humanidade, pelo que os conceitos assim decorrentes apresentam conseqüências relevantes no panorama atual das controvérsias concernentes a essa problemática
          Os dois registros em que se desenvolve a exposição de Deleuze sobre Hume abrangem Empirismo e Subjetividade e o artigo correspondente no volume IV de Chatelet. Nesse artigo Deleuze logra uma visão de conjunto particularmente esclarecedora, de modo que se pode sucintamente estabelecer três domínios conceituados por Hume como articulações que abrangem a relação do ser humano com o mundo, seja no processo de conhecer (mundo natural), seja no processo de se constituir moral e socialmente (mundo cultural). Esses domínios são o do espírito, da natureza humana e da paixão.
          O domínio do espírito subsume a faculdade da imaginação e aquilo com que ela se elabora, a fantasia (ficção). No domínio da natureza humana se localizam os princípios de associação que estabilizam as relações pelas quais a experiência se torna coerente. Essas relações, de causalidade, semelhança e contigüidade, são interpostas entre as sensações e idéias provenientes do mundo, sendo as impressões resultado do contato imediato com as coisas e as idéias essas mesmas impressões, mas como que esmaecidas, recolhidas pela memória após o contato real.
         O espírito se constitui como uma coleção de idéias soltas, sem relação de necessidade umas com as outras porque o essencial aqui, conforme a tese empirista que fará o escândalo de todo idealismo, é que as relações são exteriores a seus termos, sendo esses termos as impressões e idéias. Atomismo significa que as idéias remetem a mínima punctuais, como observa Deleuze, que produzem o espaço e o tempo a partir da sensação. Associacionismo significa que as relações que se estabelecem entre esses termos mínimos são exteriores a eles e dependem de outros princípios.
           Os princípios de que dependem as relações são os da natureza humana. Ora, o espírito não espera os princípios dessa boa natureza – boa porque estabelece o mundo ordenado da experiência – para estabelecer ele mesmo formas de transição entre idéias. O ser humano possui, junto com sua boa natureza formadora de relações lícitas, uma imaginação como faculdade irrefreável de forjar relações ilícitas, propriamente fantasiosas.
         Supõe-se, portanto, que as relações fixadas pelos princípios da natureza humana estão de acordo com o que ocorre na natureza ou mundo físico. Mas aquelas forjadas pela imaginação são como que deslizamentos operados na vizinhança de uma conexão legítima de idéias, induzindo a partir de relações “normais” conseqüências ou relações fictícias, nem sempre do tipo “cavalo alado”, mas também do tipo causalidade física, Alma, Mundo, Deus pessoal, necessário a priori, etc.
           Assim temos uma natureza ou mundo físico, como resultado do ultrapassamento da experiência, mas a partir de princípios conseqüentes que pertencem à natureza humana. Esse ultrapassamento é da experiência enquanto ela subsume a coleção de percepções distintas. O que ele garante é a constituição, ao mesmo tempo, do Mundo como um todo ordenado e do Eu, constituído no dado. Mas temos também uma contra-Natureza ou mundo fictício onde a imaginação assegura a fusão de qualquer coisa, ao invés da fusão apenas do que convém, pelo que se pode afirmar que o fundo do espírito é o delírio.
          Aqui é preciso nos deter um pouco mais, pois é o caso de observar a transposição que Hume operou no campo do ceticismo, pela qual se afirma que ele institui o que se designa ceticismo moderno. O que o opõe ao ceticismo antigo é que a crítica, a ser manejada pela reflexão sobre os conceitos formados a partir da experiência, se endereça às “verdades” do espírito, não se propondo como um ceticismo da razão.
        Ou, como mostra Deleuze, se o ceticismo antigo repousava sobre a variedade das aparências sensíveis e os erros dos sentidos, o ceticismo moderno repousa sobre o estatuto das relações e sua exterioridade, e por isso, seu ato pioneiro consiste em descobrir a crença na base do conhecimento, isto é, em naturalizar a crença, estando assim fundado o positivismo. Aqui parece-me que o humeano ceticismo moderno resulta da continuação do que Descartes havia iniciado, mas por uma atitude fingida, aquele processo da dúvida. Se o ceticismo antigo afirmava que nosso conhecimento é relativo apenas ao modo como é produzido na limitação dos nossos sentidos, o ceticismo moderno afirma que nosso conhecimento é fundado em si mesmo, apenas ele não garante, nem deveria ser preciso garantir, a conformidade das coisas além da experiência que temos delas.
           Ao ceticismo antigo, a dúvida poderia também servir como um percurso de refutação como em Santo Agostinho onde ela conduz apenas à constatação "se erro, sou", consequentemente, se sou há ser. O ceticismo moderno se enuncia quando é o próprio erro que se mostra impossível a uma razão totalizante do seu objeto.
            Veremos que na contemporaneidade o ceticismo não ameaça essa mesma pureza da consciência, nem torna a incidir sobre as coisas. A experiência se torna absolutamente suficiente, e o problema se torna apenas o que ela é - o a priori da consciência ou do signo; ou somente o a posteriori da ciência e da apreensão empírica.
           Por isso, efetivamente o sonho serve mais ao percurso da dúvida moderna do que a loucura. Esta sempre se chocará com a razão - o louco não pode manter-se por si e nós vemos seu impoder. Mas ao sonho nada perturba, nada interfere com a ilusão do que ele representa em termos de realidade ao sujeito onírico. O erro estaria situável nesse percurso, junto à loucura. O erro é aquilo que se auto-refuta e nós também o vemos, não aquilo que, como o sonho, está inviável a qualquer critério extrínseco de verificação.
           Mas a crítica empirista de Hume é de fato mais radical que a de seus predecessores, pois o que ocorre a seu ver, segundo Deleuze, é que não simplesmente se pode manter distintas a natureza humana, de um lado, e a imaginação inconseqüente, por outro.
            Pois em certo nível sempre se pode corrigir a distorção que a imaginação impôs à natureza, mas em certo nível isso não é possível. Assim, podemos, através de um cálculo severo das probabilidades, corrigir a ultrapassagem delirante, ou a relação fingida, no que concerne à causalidade, e compreender que ela se limita a um princípio mental (espiritual) de associação, não pertencendo às coisas dadas na experiência por si mesmas. Mas a ilusão se insinua no âmbito mesmo da natureza humana quando se trata de crenças legítimas inseparáveis de crenças ilegítimas, sendo estas condições de formação daquelas – quando o uso fantasista dos princípios da natureza humana se torna ele mesmo um princípio.
            É esse o caso de idéias como alma, mundo, Deus, existência contínua e distinta dos corpos, e as relações que decorrem dessas idéias, as quais se tornam parte da nossa natureza, como destaca Deleuze, ou como especifica Bréhier, dos três grandes problemas que agitam a filosofia desde o século XVIII: existência do mundo exterior, imaterialidade da alma, identidade pessoal. Hume evidencia o fato de que não se pode atribuir à razão, mas a uma crença anterior a qualquer raciocínio, a postulação da identidade de corpos que são para nós, na realidade, um agregado, série ou coleção de impressões. Trata-se de uma crença produzida pela imaginação, mas é o horizonte de todas as nossas crenças legítimas, conforme observa Deleuze, que se constitui por essas crenças ilegítimas.
         A filosofia dogmática não faz mais do que aderir à espontaneidade da crença, reproduzindo-a como verdade garantida eternamente pela razão, quando o que se precisa é da filosofia crítica para mostrar que “se tudo é crença, até mesmo o conhecimento”, como observou Deleuze, “tudo é uma questão de graus de crença, até mesmo o delírio do não-conhecimento”.
           Seria interessante repor o devir da idéia de paixão no âmbito da filosofia moderna, assim como Alquié o empreendeu com relação à noção de causalidade. Veríamos assim que ela recobre uma certa funcionalidade desconhecida no registro da filosofia antiga e medieval, desde Descartes, para quem a paixão funcionava no interesse da razão, regulando de certo modo as disposições orgânicas, o que se pode verificar também em Spinoza, que mostrava a impossibilidade de se tornar completamente independente da paixão na duração. Agora, com Hume, a paixão recobre efetivamente um domínio ulterior à imaginação e à natureza humana, assegurando uma conexão entre elas.
          Pois mesmo que se estabeleça a imaginação, através da crença, no fundo do saber, como natureza, resta que o exercício crítico da filosofia recupera, ao menos de direito, aquilo que de fato se mostra inseparável, a saber, o que pertence a um e a outro domínio considerado. Resta que o ser humano deveria assim estar sendo caracterizado por uma separação intrínseca, uma irredutibilidade fundamental consigo mesmo, e principalmente, não haveria como distinguir no âmbito do espírito, o que é apenas imaginação e o que se reveste de um interesse não restrito ao conhecimento objetivo da natureza, mas alcança as regulações da própria existência como ser apto a se conceder sentido moral e social.
          O que se trata de mostrar, com Hume, é que a paixão, cujo elemento é o artifício, não tem como correlato o egoísmo, mas a parcialidade, de modo que o que ela assegura é a partição ou fixação do espírito com relação a idéias ou objetos especialmente eleitos.
          O conhecimento, nossa adesão aos seus princípios mais do que ao arbítrio da imaginação, se encontra justificado pela constância daquilo que estabelece como relação legítima, e para corrigir os simulacros de crença estabelecidos pela fantasia precisa utilizar o cálculo, uma seleção. Mas os princípios da paixão não operam do mesmo modo. Eles estabelecem parcialidades, preferências, restringem a adesão do espírito a um círculo sempre limitado de simpatia pessoal. Então o problema não mais pode se “resolver” por um cálculo, mas envolve a invenção, isso que se designa “artifício”.
         O que Hume está deslocando inteiramente assim é a teoria do contrato social, que depende da postulação do ser humano como basicamente egoísta, ou pelo menos visado na simplicidade do indivíduo cujo correlato é a propriedade inalienável. O contrato se destina como limitação dos egoísmos, responde a esse problema apenas. Mas o problema social, conforme Hume, não é o da limitação do egoísmo natural. Já que o “natural” no ser humano não é o egoísmo, mas sua parcialidade, a questão é de como ampliar o círculo, como inventar artifícios que forcem as paixões a ultrapassar a parcialidade, as preferências pessoais, para abranger a sociedade, formar sentimentos de moral, de justiça, de eqüidade. Como se vê, esses sentimentos de âmbito universal nada tem de naturais, eles devem ser produzidos.
           Os artifícios necessários a essa produção se derivam de uma aliança entre a paixão e a imaginação, pois agora o espírito ou a fantasia são solicitados para refletir a paixão, fazê-la ressoar, ultrapassar os seus limites de parcialidade. Esses artifícios são formações culturais, engendram a cultura como o conjunto de instituições sociais aptos a ampliar o jogo da paixão, a fixar o espírito, por meio de seu afeto, numa relação confiável e estabilizada com a sociedade.
          O que torna essas instituições aquilo que são é que essa tarefa da cultura se confronta com dois problemas. Um deles é a indeterminação da imaginação, que pode produzir praticamente qualquer sentido, independente de regras. Mas também o fato de que as paixões ampliadas devem ter o mesmo grau de vivacidade que as paixões naturais – por exemplo, as que existem entre a criança e seus pais, entre os sexos, nas relações familiares, nas amizades.
          Pode-se objetar que não se compreende bem como as paixões que envolvem a sociedade podem conservar a mesma vivacidade que esses exemplos de paixões naturais demonstram. Hume mostra que essa extensão do poder da paixão pode ser assegurado através dos aparelhos de sanção sociais que, pelo manejo da aprovação, confere aos sentimentos ampliados (paixões refletidas) algo como um grau de vivacidade e de crença suplementar. Aqui intervém o governo, mas também instâncias menos localizadas como o costume e o gosto. Assim Hume desloca também o problema do governo, que não se determina como o da representatividade, mas como aquele de ser apto a assegurar a crença na sociedade.
          Quanto à questão da determinação institucional, ela mostra que a paixão assegura a conexão dos outros dois domínios que lhe são irredutíveis, a imaginação e o conhecimento, pois mesmo que a crença se estabeleça no fundo do saber, esses domínios teriam se mantido como independentes, o ser humano sendo pensado a partir de faculdades desconexas, quase conflitantes. Assim, se a paixão deve se refletir na imaginação, a fantasia devendo inventar formas pelas quais a tendência dos afetos ganham expressão ampliada formando o mundo da cultura, essa reflexão não se faz sobre uma imaginação neutra, mas já fixada ou naturalizada pelos princípios de associação, através de suas crenças.
           Os princípios de associação fornecem regras gerais aos princípios da paixão refletidos na imaginação, de modo que é na associação que se podem localizar tanto as fontes dos sentimentos estéticos, como regras de gosto, quanto as paixões de posse, determinando o mundo da jurisprudência e da legislação.
            Mas também assim se compreende que os meios pelos quais há satisfação de tendência não são determinados pela generalidade da própria tendência e sim pela particularidade do modo de sua satisfação.
O que implica tanto o fato de que a instituição não se deriva diretamente da necessidade, ou seja, não pode se compreender pela via objetiva da correlação organismo-meio, mas supõe o círculo compreensivo entre parte e todo conforme o liame de sua mútua dependência, como também, por isso mesmo, a perplexidade do historiador e do antropólogo, frente ao multiformismo da cultura através do tempo e do espaço.
          Ora, o problema aqui é aquele, extremamente importante no cenário atual, da relação entre instinto e instituição. Assim colocado, o problema deixa de constituir o tema passível de se abranger por meio de um discurso explicativo do governo ou do laço de sociedade, como em Rousseau e Locke, para investir tanto a psicossociologia na compreensão da regra geral ou instituição, quanto a antropologia, para compreender a conexão de natureza e cultura no sentido da humanidade, conforme Deleuze interpreta a transposição de Hume.
          A meu ver, porém, não se deveria atribuir a emergência das ciências humanas a algum filósofo, pois não são derivadas de qualquer filosofia, pelo contrário, quando se tornam realidades preponderantes desde os estudos que demarcam metodicamente suas especialidades e  autonomia - a partir do historismo de Herder e da história como ciência social, da ciência da interpretação (hermenêutica) e da crítica estética, da psicologia e das pesquisas no âmbito da linguagem e da sociedade, isto é, na ambiência de inícios de século XIX onde se afirmam as "ciências do espírito" - é a filosofia que se torna anti-metafísica como "pensamento" cujas temáticas foram transmutadas em realidades instauradas por essas pesquisas, deixando de corresponder a generalizações como interpretações possíveis do imediatamente acessível ao pensador privado.
            Assim, a emergência das ciências humanas coloca o problema da sua descontinuidade ao pensamento humano que vinha se desenvolvendo na imanência da filosofia. Esse problema epistemológico se reveste de grande importância, se o visarmos como correlato à transformação que deve ter ocorrido na mentalidade daqueles pesquisadores que se concederam tarefas autônomas em relação à filosofia, ou seja, conteúdos específicos da produção espiritual do homem, como a liratura, a formação das línguas nacionais, os acontecimentos históricos, como legítimos objetos de conhecimento, o que até aqui não era pensável.          
          Como já deve ter ficado claro, a meu ver essa transformação é correlata à de ser humano enquanto sujeito, de concreto a histórico. Ela acompanha o transformismo em biologia porque até aqui o histórico no humano era tão impensável ou exterior ao intelecto como o devir na natureza. Mas também se pode notar que a sociedade mesma pode surgir menos como o que é dado em si, originária ou atualmente, do que como o resultado histórico do que os homens fazem.
           A revolução francesa e os levantes nacionalistas que marcam o cenário mais consoante ao século XIX que à época clássica,  não são apenas mudanças institucionais, mas afetam a concepção do sujeito naquilo em que ele se torna por igual pensável como agente na sociedade e dela termo dos direitos, não o representável da classe de sua origem por nascimento.
           Há certamente avanço na filosofia de Hume em relação a esse cenário contemporâneo, e devemos lembrar que Hume participa do movimento de valorização da história que demarca a irredutibilidade entre as concepções da época moderna e contemporânea, tendo sido historiador e inovado nesse campo por visar o papel das instituições, em vez das batalhas. Mas de fato Hume permanece num âmbito de erudição histórica, não chega a colocar os problemas do seu fazer enquanto ciência - aqueles relativos à decifração do documento na ruptura com a "memória".
           Assim, poderíamos notar que na transformação do sujeito, seria preciso que ele ultrapassassse a parcialidade e fosse pensado como intersubjetivamente constituído. Isso só encontramos no pós-kantismo como um pensamento cujo correlato não é o indivíduo generalizável, mas a formação da subjetividade na história do seu percurso, ele mesmo produzido na historicidade da cultura, ou seja, esse sujeito que só podemos pensar a partir dos sistemas culturais múltiplos e irredutíveis que ele constitui, estudados nas ciências do espírito. Essa autonomia do seu objeto, também Foucault não apreendeu, o que o conduziu a uma condenação de algo que ele designou como ciências humanas mas que na realidade, sendo uma homogeneidade de representação, não tem um correlato naquilo que ressalta da pesquisa epistêmico-histórica a propósito do devir dessas ciências.
              Mas paralelamente, história da filosofia, gnoseologia e epistemologia, ética e teorias gerais de temas humanos quando o conteúdo não precisa ser estudado por si, como na "antropologia filosófica" contrapondo-se metodologicametne à "antropologia social",  não são ciências humanas, e sim ramos da filosofia juntamente com o desenvolvimento de problemáticas do que designamos filosofia perene, as quais se originam na história da filosofia e se desenvolvem na rubrica "ontologia" mas não necessariamente como uma antiga teoria do ser. Essa ordem de estudos, a filosofia, não deixou de ser exercitada e manter sua autonomia em relação às ciências, na contemporaneidade.



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          São três elementos  a considerar na filosofia social de Hume: a utilidade, a regra geral e o liame que as une, como destacou Deleuze. Inicialmente, a utilidade põe a questão do funcionalismo, que mais tarde ressoará na emergência da sociologia estrita. Nesse nível, trata-se da relação da cultura com a natureza, do ser humano com o instinto. A tese funcionalista põe a sociedade como explicável pela utilidade, a instituição, pela tendência ou necessidade. Hume efetivamente propõe que a tendência natural se satisfaz em uma instituição. Mas seu utilitarismo não implica na tese funcionalista exclusivamente sociológica, pois envolve um círculo a partir da crítica da noção de instinto humano.
        Hume se interessa pelo que Deleuze já trata como psicologia animal, e Deleuze mostra que ele pensa que determinados princípios atuam também sobre o animal, mas o efeito decorrente permanece simples. O animal, que possui instinto, o mantém na atualidade, não os fantasia nem procede reflexivamente sobre o artifício, por isso não possui cultura nem história.
          O ser humano não possui instintos, não está submetido à atualidade pura de um presente. Assim as suas tendências se liberam e podem se vincular à imaginação. A satisfação agora só se encontra na tendência refletida pela instituição, nunca na própria tendência “natural”. Ora, o círculo que se verifica aqui é que a reflexão se faz pelo sentimento, não podendo ser se não interessada, mas o sentimento não está, tampouco, diretamente ligado à tendência, é ele, não a tendência, que coloca os fins e reage a todos. Só há sentimento quando os fins da tendência são ao mesmo tempo todos aos quais a sensibilidade reage.
         Como a imaginação já está submetida aos princípios da associação, ela reflete a tendência e seus fins no espírito conforme regras gerais, mas não de modo que essa reflexão exprima diretamente os fins nas regras. A imaginação produz modelos a partir desses todos que são, e/ou que serão, aqueles aos quais a sensibilidade reage. Esse é um parâmetro ante-romântico, institucional e não histórico-constitutivo da intersubjetividade, como devemos assinalar. A cultura é produto da imaginação e da sensibilidade, e assim a instituição, não uma formação que compreenderíamos na sua constitutividade ao longo do tempo.                   
           Entenderíamos, por esse critério, o casamento como regras fortuitas que cada sociedade inventa para satisfazer socialmente, a partir de combinações sensíveis de gestos e rituais, a tendência correlata à sexualidade. Mas não seria por esse meio compreensível o casamento numa cultura como um ritual que traduz numa linguagem aquilo que teve que ser assimilado de outra linguagem - como uma certa tribo de bárbaros traduziu a insituição cristã ou como um ritual politeísta de origem afro foi modulado pelo contato com as cultura aborígine e católica no entorno americano-latino, por exemplo.
          O artifício que favorece a transição da natureza à cultura, conforme Hume,  é ao mesmo tempo fantasia, sendo a fantasia agora reflexão. Mas é preciso novo limiar reflexivo para que a fantasia, produzindo o frívolo, o bizarro, o multiforme que as instituições revelam antropologicamente, se corrija progressivamente formando o mundo sério da cultura, não tanto, creio, no sentido de uma filosofia da história que explicasse teleologicamente o percurso das instituições rumo à estabilização “racional” no mundo ocidental, mas no sentido de que em qualquer cultura trata-se de uma negociação originária, que deve instituir sobre a instituição a sua seriedade.
          No exemplo de Hume, o que basta para se apossar oficialmente de uma cidade vazia: lançar o seu dardo na porta da cidade ou tanger a porta com o dedo? A negociação sobre isso já poderia parecer frívola, mas é precisamente o que transpõe, no domínio institucional, o âmbito do frívolo àquele do sério, do oficial. O frívolo é qualquer dessas alternativas, pois elas são apenas artificiais, fortuitas, inventadas. O sério é que elas se tornam instituições, cultura, modos de sentir ou consoante agir.
        A legislação se torna o grande campo da invenção humana, nessa concepção de Hume, e o que se inventa é o sistema de meios orientados, o conjunto determinado da regra geral, isso que garante a ampliação da simpatia, a estabilização de um ponto de vista comum, firme e calmo, independente da situação presente, pelo que o pensamento de cada um representa o de todos os outros, ou seja, o que garante a existência social.
          Sendo artificial, a obrigação que se produz já como senso do dever não identifica no interesse particular ou natural o móvel da ação, mas se estabelece como âmbito de uma razão prática, que põe seus próprios fins e se constitui como conversação entre possuidores.
           A propriedade é o artifício pelo qual as ações de cada um se relacionam com as dos outros, instaurando-se o esquema ou conjunto simbólico (todo social). A conversação é o exercício da razão prática, pois o interesse comum só se torna eficaz ao se expressar, ao se instituir reflexivamente na forma determinada pela qual a satisfação se pode garantir.
           Assim, compreende-se a necessidade do liame entre o que seria o instinto, isto é, a tendência, e a instituição, já que essa determinação da forma nunca pode ser diretamente ou objetivamente derivada da tendência. Por esse meio Hume pode recusar tanto as teses que atribuem o cultural, mesmo a justiça, à necessidade pura, natureza ou instinto, quanto as teses que tudo atribuem à política e a educação, mesmo a virtude.
          É nesse ponto que incide a sua crítica à teoria do contrato, que supõe a lei como essência do social. Hume mostra que a lei é uma limitação da ação, portanto não pode ser fonte de obrigação. Inversamente, a obrigação já suposta pela lei implica a utilidade, que por sua vez é já social. Com efeito, trata-se de recusar também a noção de estado de natureza, dos direitos naturais, pois a sociedade não pode garantir direitos preexistentes. Se o ser humano entra em sociedade, é porque ele não possui direitos preexistentes. O que é básico na sociedade é a instituição, que pode fornecer o modelo das ações, o sistema de meios de satisfação.
          A utilidade é vínculo entre instituição e necessidade, a regra geral é a instituição que encontra seu princípio na utilidade, mas o liame é o espaço da invenção, as formas  de satisfação social que variam antropologicamente. Em Hume a moral se orienta aos adultos, consistindo na invenção de meios artificiais para que os maus aspectos da natureza humana não possam triunfar. Assim temos séries de regras que se estabelecem por níveis, aquelas que fundam a propriedade e estabilizam a posse, aquelas que avivam o interesse geral transmutando o particular e ampliando o círculo da paixão, e aquelas que transpõe as conseqüências da desigualdade, fundando a economia política, em que Hume também exibe a inovação que será desenvolvida na teoria econômica do utilitarismo, a idéia de que a atividade econômica implica a motivação qualitativa, não se limitando aos efeitos atribuídos normalmente à quantidade da moeda.
           A significação do empirismo se esclarece assim por uma confluência da reversão da filosofia dogmática com a inserção do pensamento humano em vias de especificar suas áreas constitutivas: sociologia, antropologia, economia política, psicologia. No entanto, a transformação da ambição filosófica em exercício crítico não esgota a reflexão na negatividade do momento cético, que, inversamente a Descartes, não se ultrapassa tampouco como numa seqüência destinada a recuperar modos de pensar que já haviam sido postos sob suspeição desde uma crítica orientada como mentalidade capaz de acolher como conhecimento válido, ou em todo caso como o conhecimento a pensar em si, os conteúdos das ciências empíricas.
          Vimos a abrangência do pensamento social de Hume. Ee só se desenvolve no âmbito de uma filosofia que estabelece novo limiar ao pensamento, desde que empreende de outro modo o pensamento humano. O empirismo se reveste dessa significação pela qual, mesmo se o intuito for o de reverter suas premissas, esse intuito está doravante determinado por isso que só se exerce partindo desse limiar. Assim o problema do kantismo, como mostra Deleuze, será o da finalidade, do nexo entre princípios de experiência e objetos da experiência, entre natureza humana e natureza física, postos como independentes pelo empirismo.
          É importante enfatizar a irredutibilidade do pensamento humano de Hume, seja à dedução transcendental, seja a uma gênese psicológica. O sujeito só se constitui “no dado”, porque é preciso recorrer aos princípios para compreender a subjetividade. Esses princípios não supõem, porém, o acordo com o dado, mas correspondem a um uso físico, a uma natureza experimentável, sendo o empirismo humeano algo como um fisicalismo. Mas também a uma natureza humana, como espírito transformado pela ação desses mesmos princípios, espírito passivo em relação aos princípios que o ativam como subjetividade, espírito tornado ativo ao sofrer sua transformação em sujeito social e/ou de conhecimento.
           O associacionismo é utilitarista, já que em vez de definir um sujeito cognoscente, ilumina um sujeito prático cujos objetivos são de ordem passional, moral, política e econômica, a associação de idéias estendendo um conjunto de meios à satisfação desse sujeito.
        É em prol desse mesmo sujeito que se pode propor uma finalidade intencional, como unidade na subjetividade que funciona como um todo, sendo que aqui o essencial é não confundir causalidade com utilidade. Pois o vínculo entre o meio que se estende ao sujeito e os seus objetivos não é uma simples causalidade, mas uma utilidade, o útil sendo a posse de um bem, efeito dos princípios da afetividade, o que desloca a definição do empirismo humeano como psicologia do conhecimento para informá-lo como a filosofia de tudo o que é prático (ação, moral, jurisprudência).
          Mas se o que se compreende na região da subjetividade é a esperança e a crença, mais a invenção, o dado se transforma em Natureza, conforme ao Ser. Conformidade que se denomina finalidade, estabelecida entre Natureza e finalidade intencional, mas também que só pode ser pensada, jamais “comprovada”. O empirismo humeano não institui a filosofia como pensamento do Ser, mas daquilo que se faz.

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                                                                                        Livro II    / Leituras do período moderno

        
       1 )  Heidegger e  Os Tempos Modernos
         Vontade e Saber. Com esse par de termos Heidegger inicia o segundo volume de seus escritos sobre Nietszche.
Vontade e Saber são aí apresentados como a essência da razão, conforme os projetos nomeados como os de Schelling, Hegel e Leibniz, mas de modo a nos fazer compreender que esses projetos podem ser reunidos na rubrica mais geral da tradição metafísica – podendo-se indagar assim das relações reais de Nietzsche com a metafísica, da relação entre os planos manifesto e oculto, internos à démarche de Nietzche e mais propriamente à démarche dessa mesma tra(d)ição, a metafísica segundo Heidegger,  uma vez que ela pode ser rastreada desde os Gregos, como um só projeto de esquecimento do Ser, restando ainda a tarefa de se compreender, quanto à Nietzsche e quanto à metafísica, a relação que o fim mantém com o começo, isto é, desvelar a presença do fim, já naquele começo.
Esses escritos heideggerianos são de incalculável importância quanto à intenção de compreender algo como o pensamento humano, ou conforme uma expressão feliz de Bréhier, estender a imagem do “conhecimento do homem” na pluralidade de seus acontecimentos, assim como pode ter se verificado todas as vezes em que o humano quis e soube enunciar algo sobre ou como seu próprio ser. Esses escritos abrem muitas vias de acesso à questão. Aqui algo que me parece especialmente oportuno se enuncia duplamente.
Há esse modo de enfocar o par de termos, vontade e saber, como nucleares na extensividade da metafísica ocidental. Mas, e muito ligado a isso, há a questão da apresentação do momento que, nessa extensividade, se concebe como sendo o dos “Tempos Modernos” – ponto final da história? – isto é, a interrogação sobre o sentido da metafísica na modernidade.
Há assim, nesse início do texto heideggeriano do “Nietzsche” volume II: a) a idéia de uma tradição estendendo-se desde os Gregos, conforme um projeto único que abarca os momentos modernos conceituais nomeados por este ou aquele filósofo; b) a questão quanto a esse momento moderno no que oferece de particular, desenvolvimento esse que estará ligado mais geralmente à Vontade de Potência como conceito nietzscheano que relança o par nuclear do pensamento metafísico, vontade e saber, ainda que nesse movimento seja preciso também se deter, de modo acurado, sobre o pensamento de Descartes.
Podemos então pressupor que se o projeto metafísico permanece o mesmo, naquilo em que põe esse par como nuclear, depende de estar enunciando algo como a “essência da razão”. O projeto é sempre o mesmo como projeto dessa enunciação mas seus momentos constitutivos podem variar conforme o teor do que ele enuncia. Ora, já à página 91, tratando da “subjetividade na interpretação nietzscheana da história”, Heidegger estabelece justamente uma partição desse tipo entre a metafísica antiga e a moderna.
O que há de comum entre ambas é essa constelação de termos, lá como aqui denominados “categorias”: unidade, totalidade, verdade, fim, ser, por exemplo. Mas apenas quando a designação desses termos se completa como categorias “da razão” podemos sem dúvida afirmar estar se tratando de metafísica moderna. O que supõe esse complemento, permitindo uma expressão tal como “categorias da razão”, é que a razão se compreende só agora “enquanto essência da subjetividade”.
Vontade e saber podem assim se estender como par que desvela a essência da razão no sentido moderno, um vez que esses dois termos se implementam como essência da subjetividade.
Ora, nossos estudos escolásticos mostraram que lá onde começou a se desenvolver uma questão do sujeito, já naquele momento singular em que o apogeu da escolástica, que coroava o estado de coisas feudal, surgia também como complexo sintomático da transição para o não-feudal, essa questão mesma identificada como um traço nesse complexo, ela se manteve de algum modo numa dualidade.
Os representantes antitéticos dessa dualidade, conforme nos devemos recordar, eram então São Tomás e Duns Scott, da maneira que agora podemos enunciar, pela qual São Tomás parecia visar a nova questão através apenas do saber - alma como substância espiritual e/ou intelectual – enquanto Duns Scott a centrava apenas pela vontade – o famoso voluntarismo escotista que também solvia a noção de “ato de ser” aceitando que as essências dos entes são do mesmo modo que Deus é, sem haver necessidade de postular um Ser puro como atribuível unicamente a Deus.
Agora somos informados por Heidegger de que a metafísica moderna converge essas vertentes e que mesmo retrospectivamente se deve visar como em cada caso uma está sempre a subentender de algum modo a outra. Mas como se verificou esse salto à modernidade? O movimento heideggeriano de resposta a essa questão deverá proporcionar uma aproximação necessária ao cartesianismo.
Para conjugar os fatores da trama que conduzem, por exemplo, a Leibniz e Spinoza, poderíamos estabelecer algum entre muitos pontos de vista sobre o conceito, por exemplo, iniciando pelo detalhamento das ontologias desses autores. Mas desse modo, esse traçado não seria apenas uma reminiscência de doutrinas antigas, conforme a expressão de Heidegger ?
Contudo se o nosso intuito tem a ver com o pensamento humano, ele se beneficia também com o modo pelo qual essa aproximação, prevista por Heidegger ao pensamento de Descartes, pode ser acrescida pela apreciação da exposição de Bréhier sobre a doutrina moral do cartesianismo. Convergem aí certo número de motivos.
Com efeito, o cartesianismo tem sido apresentado como a filosofia que dispõe em conjunto, de modo eminente, o pensamento desses filósofos, Malebranche, Spinoza, Leibniz, assim como ocorre na “história dos filósofos” de Huisman-Vergez que os agrupa como “cartesianos”. Já essa apresentação histórico-filosófica de Huisman-Vergez não ocorre sem relação com a observação citada de Paul Valéry pela qual há lugar para “uma infinidade de Descartes plausíveis” , o que vem ao encontro da versão de Jean Laporte de um Descartes empirista, tudo isso caucionado pelo “Larvatus prodeo” – afirmação pela qual Descartes admitia caminhar mascarado.
Mas também, como se verifica em Bréhier, a teoria antropológica cartesiana, o seu “pensamento do homem”, que pôde ser a princípio visado numa base comum com a proposição tomista – o homem como substância pensante e espiritual – se desenvolve de modo estritmente relacionado a esse par essencial, o Saber e a Vontade, assim como expresso por Heidegger como veículo da interpretação moderna da metafísica que propõe no mesmo lance subjetividade e razão. E veremos como esse momento cartesiano articula a compreensão dos Tempos Modernos, conforme Heidegger.
Assim, acercando-nos apenas de algum Descartes plausível, em todo caso não se pode contornar a questão central da metafísica tal como enunciada por Heidegger, pois em Descartes ocorre a fundação mesma do modo de ser moderno da interpretação dessa questão.
Já houve oportunidade para a apreciação do lugar do Cogito nessa fundação metafísica da subjetividade, que no entanto, conforme Foucault, ainda não se lançou nas implicações do postulado antropológico que ele definiu como o a priori histórico da contemporaneidade. O “Ego Cogito” é o “eu” como “o” sujeito, mas não o “eu” transcendental que vai modular posteriormente esse sujeito não mais como indivíduo-generalidade, mas cada vez mais procurando aproximar-se desse eu-aqui, dessa concretude do “agora” – mesmo se esse cumprir-se da metafísica da subjetividade já pudesse ser rastreada desde o início com Descartes.
Ora, interrogando o nexo cartesiano da teoria do homem (antropologia filosófica) com a moral, vemos em Bréhier que Descartes utiliza a teoria como um limiar de separação entre o provisório e o definitivo.
Porque a moral é algo que importa à ação, ela desdobra duas regiões que se precisa separadamente elaborar. Uma é a das regras práticas, a ser aplicadas de imediato devido à necessidade que a existência mesma impõe, de nos conduzir e tomar decisões. Esse é o domínio da moral provisória, derivando-se da contingência de nossas ações precederem o intervalo de nossas reflexões. São regras que primam por um certo conformismo, mas não sem revelar sensatez: a) submeter-se às regras do país; b) antes mudar a si do que pretender mudar o mundo; c) ser firme nas ações de modo a ser preferível qualquer ação, mesmo sem certeza, do que ação nenhuma devido à  hesitação.
Mas tal domínio não pode esgotar o âmbito da moral, pois uma vez tendo-se restringido a esfera contingente do agir, resta o espaço necessário do pensar, em que se deve considerar o sentido da ação. Esse novo domínio não pode ser provisório, mas como aquele da moral definitiva, faz intervir a necessidade da compreensão, conhecimento ou pensamento acerca do ser humano.
Ora, quanto a isso Descartes, como vimos, retém a fórmula do ser humano como ser pensante e espiritual. Essa fórmula já está a caminho da contemporaneidade, no sentido da ocidentalização, por assim expressar, pois como observou também Bréhier, ela se apresenta como uma modulação cristã fundamental do pensamento aristotélico em que, contudo, também o tomismo se baseia. Mas como a Revelação cristã poderia se conciliar com uma doutrina anímica de pluralidade e de finitude, como a do peripatetismo, reservando a eternidade a algo como que um pensamento impessoal?
Assim tratava-se no tomismo de conservar a substância espiritual como unidade, a inteligência sendo a forma do corpo organizado, forma única, o que está mais próximo, a meu ver, da modernidade, do que a doutrina agostiniana da pluralidade de formas pela qual cada faculdade essencial supõe uma alma correspondente numa hierarquia, desde as faculdades mais materiais e inferiores até as mais espirituais e superiores.
Contudo essa substância tomista ainda se reserva ao sentido escolástico por se conservar no âmbito da forma, a ênfase se propondo no ato mesmo de pensar. Assim se transpõe o limiar da modernidade com Descartes, pois a alma pensante agora se aproxima de si pela evidência do “eu” atuante ao invés de se colocar pela necessidade de uma realidade mundana formal pressuposta como existente, isto é, consoante o dogma pré-concebido das escrituras,  mas sem base alguma para caucionar a pressuposição quando se trata da observação não proibida nem negligenciada da extensão material. A unidade da experiência no período moderno, aparece apenas como uma coerência de relato, a razão transportada para a explicação do observável, em termos de leis que no entanto, não devem ultrapassar o nexo das coisas visíveis.
A substância pensante do cartesianismo é uma realidade existencial cuja fundamentação se exerce, se experimenta, como auto-fundamentação, ainda que gerada pela substância Deus. Ora, assim a teoria que garante o definitivo da moral tem que responder à questão de como a vontade está se lançando na realidade do sujeito, se ele é para si pensante, se ele só pode pôr a si como realidade imediatamente evidente, só se pode pôr uma realidade através da evidência, e só pode se pôr uma evidência através de si.
A vontade, não é ela possivelmente proposta como a região de voluntariedade que circunscreve o sujeito, esse eu-aqui, e nisso vemos que Duns Scott já se põe na curva da pós-escolástica, ao invés do indivíduo como correlato da definição da espécie? A voluntariedade do escotismo liberou a fé, o que há de incomensurável em uma vontade implicando o limite de toda predisposição natural de uma razão superordenada como a do tomismo. Contudo, essa liberação da fé era também liberação da razão, que agora podia seguir os seus próprios caminhos na observação científica do mundo, uma vez tendo recebido a incumbência do mundo no ato mesmo pelo qual se lhe subtraíam a competência da fé.
Esse mundo racionalizado, ou em vias de racionalizar-se, com que já lida o cartesianismo, tornou-se  um dado, enquanto tal problemático para a razão que dele faz a experiência. Na Escolástica a fé não era apenas uma competência da razão, servia-lhe também de fundamentação do seu objeto, o dado do mundo. O Renascimento havia sido o intervalo de abertura entre fé e mundo, mas como "magia"  a ciência do Renascimento já comportava na circularidade das semelhanças que fechavam todo o circuito da "natureza", uma pré-leitura, ainda que arbitrária, do mundo. Mas tantas experiências se haviam acumulado e novas circunstâncias exigiam agora da razão que desse a razão de ser razão – para expulsar todas as hipóteses contrárias à sua determinação enquanto “a” razão burguesa, forma de hegemonia até aí inédita, pois se razão e poder já há muito estiveram juntos, o limite do Socius fizera sempre intervir até então uma forma de hegemonia travestida de fé – o domínio do mito – nisso tudo restando ainda a atual incumbência de fundamentar o próprio dado do mundo.
O Sujeito que pensa, a autonomia da razão, a substancialidade do pensar, tudo isso se lança como fundamentação da metafísica moderna, assim como visada por Heidegger na emergência do cartesianismo. Então a vontade já não poderia ser uma instância outra, independente entre corpo e espírito. Assim a moral definitiva repousa nessa “res cogitans”, a “substância pensante” e espiritual, que ao invés de um bloco monolítico se articula conforme seus modos intrínsecos.
Modos de pensamento que podem ser agrupados geralmente em ações e paixões. Conforme Bréhier, em Descartes as paixões recobrem os dados imediatos da alma, suas idéias inatas tanto quanto os efeitos do mecanismo corporal, tudo que lhe é apenas dado. Quanto à ação, ela se relaciona exclusivamente com a vontade que é ação concebida enquanto ato livre do julgamento. A vontade é esse ato de julgar ou se abster de julgar. Todo o domínio da paixão, como dos nossos conhecimentos, é limitado, finito. Já a esfera da nossa vontade é “infinita” pois sempre se é e será livre para recusar ou conceder nossa adesão.
É possível detectar aqui a inflexão do estoicismo, cuja influência tanto parece ter contribuído na ruptura com o pensamento medieval. E de fato o “assentimento” é esse conceito que os estóicos faziam introduzir como caráter próprio da alma racional, entre os dois outros conceitos que enunciavam a sua composição. Mas esses três conceitos, representação, assentimento e inclinação, compõem  o que há de “hegemônico” na alma, isto é, a parte retriz da alma enquanto racional, humana.
  Podemos, a meu ver, considerar o hegemônico como o exercício racional da alma pensante enquanto ação de assentir ou recusar assentir a uma representação, o que permitirá ou impedirá a inclinação que essa representação solicita como ação correspondendo a uma determinada tendência. Conhece-se a esse propósito a estória do filósofo do assentimento a quem, na Antiguidade, foram oferecidas  após um jantar, frutas artificiais que ele aceitou pensando serem naturais. Constatado o engano, lhe fizeram ver que ele havia aderido a algo sem verdadeiro assentimento, a que ele respondeu que assentira à sobremesa, não às frutas.
Mas aqui intervém algumas considerações. Inicialmente o corte moderno sobre o antigo, pois o assentimento estóico se articula ao plano de um racionalismo que é expressão da unidade da natureza (physis) enquanto o racionalismo cartesiano se desenvolve a partir da dualidade fundamental de pensamento e extensão, mais a transcendência de Deus como criador dessas substâncias, o que implica que a influência do estoicismo se verifica mais no amálgama que faz convergir também várias outras influências, inclusive do cristianismo, tudo isso transpondo-se a esse outro plano de pensamento que assinala “metafisicamente” os Tempos Modernos.
Também a observação sobre a maneira pela qual Bréhier assinala a definição cartesiana paixões como “tudo o que é dado ao pensamento sem ação de sua parte” . Quanto a isso, Sciacca e Vergez-Huisman,  já de outro modo,  interpretam a oposição cartesiana entre ação e paixão como reduplicação da oposição fundamental entre alma e corpo.
Assim Vergez-Huisman definem paixão em Descartes apenas como “aquilo que o corpo determina na alma” e Sciacca o entende também desse modo, pois associa paixões ao que é involuntário como resultando das ações mecânicas dos “espíritos vitais” que "agem no corpo", exemplificando essas resultantes em termos de “percepções, emoções”, etc.
Ora, de um modo ou de outro, à física se concede um papel decisivo na moral do cartesianismo, assim como a matemática, conforme irá mostrar Heidegger, é decisiva na compreensão de sua metafísica. Se em geral a física do cartesianismo envolve uma exposição completa da natureza que não nos importa efetivar nesse contexto, o importante é reter que essa física associada à moral está se propondo como explicação do que Descartes supõe ser o funcionamento mecânico do corpo humano. Física é sempre conhecimento da natureza, mas aqui especialmente da natureza do corpo.
Se a moral em Descartes equivale a um domínio de si, que se condiciona pelo conhecimento de uma física do corpo humano , isso não coincide com aquela extensão do racionalismo estóico com a física enquanto conhecimento de uma natureza ela mesma racional. Nessa concepção estóica, poderia ser proposta a finalidade da moral enquanto ação racional que se concebia então como ação conforme à natureza.
Bem inversamente, trata-se no cartesianismo de manter o mais extremo dualismo – natureza sendo o que não pensa, o que não se põe como razão – que permite, em contrapartida, supor a relação entre as duas “res” em termos de absoluta dominação sobre a natureza.
Assim, por exemplo, a recusa moderna desse dualismo-dominação, ainda que mantendo em comum a mesma ambiência de inflexão estóica, mas amalgamada conforme outros pesos e fatores de mistura, surgirá com Spinoza. E esse dualismo estrito, que se desenvolve como filosofia da transcendência, uma vez rejeitado, cederá espaço ao que Deleuze designa “expressionismo”, comum a Leibniz e Spinoza mas também permitindo situar as diferenças entre ambos.
Contudo, na verdade o dualismo não está de todo ausente no período moderno, como me parece ser importante ressaltar. Pode ser que haja recusa explícita das substâncias, ou mesmo dos atributos enquanto substanciais, mas nunca se chega a pensar o intelecto  organicamente informado, o que só ocorre desde a psicologia do Romantismo e em geral com sua concepção de homem duplo, corpo e espírito, não numa dualidade que reduz o corpo a contingência em relação ao ser real do homem, por outro lado, espírito não sendo apenas intelecto (entendimento, matemática, raciocínio objetivo, lógica ) mas também a cultura (arte, espiritualidade como domínio dos valores).
A teoria da loucura em Hobbes é significativa quanto a isso. A loucura é uma afecção do cérebro, portanto, deduz ele bem dentro daquela  circunscrição de época, ela continua não podendo ser uma afecção do intelecto que por definição é a Razão, o oposto da loucura. Se, conforme Hobbes, resta o mistério pelo qual parece ser a intelecção aquilo à que a loucura afeta, na verdade o mistério se desvenda pela explicação de que o intelecto resta inafetado, mas aquilo de que ele depende para se exercer, o mecanismo cerebral, está afetado. Seria a meu ver um raciocínio como do ábaco-corpo para o cálculo-espírito. Se o ábaco não estiver intacto, não podemos executar o cálculo. No entanto, a natureza do cálculo não é a do ábaco, e nenhum dano ao ábaco pode resultar em dano ao cálculo.
Aqui poderíamos arriscar um mapeamento do período moderno. Esse cálculo é em todo caso, o espírito/intelecto. Mas restam as hipóteses quanto ao que ele é: algo que calcula (Descartes, Spinoza); uma linguagem que fala como o cálculo exercido, a qual virtualmente poderia ser recomponível num grafismo que cobriria todas as possibilidades de juízo no mundo (Leibniz, Berkeley); o cálculo apenas, ele mesmo exercendo-se (empirismo).
 Se bem que a exposição de Hobbes quanto a esse ponto seja algo obscura, creio que a exposta interpretação de sua explicação da loucura é correta porque nela, em todo caso, não há aceno a qualquer possibilidade de se qualificar a loucura senão como ausência de razão. Não se poderia, como na contemporaneidade, diagnosticar formas diversas de loucura como perturbações mentais. O que Hobbes parece considerar como seu grande avanço em relação às concepções anteriores é que atribuindo a perturbação unicamente ao corporal, ele impede que se a atribua a ação de demônios ou espíritos na acepção religiosa do termo, o que como vimos ele nega que exista realmente.
Assim, sua explicação da loucura seria apenas mais um meio de negar aplicabilidade à explicação fenomênica, a fatores que julga meramente fantasiosos. Por outro lado, a loucura poderia ter várias causas do ponto de vista de afecções diversas do corpo possivelmente causadoras da loucura (calor excessivo, comoções emotivas, etc.), sem alterar o efeito-loucura como unicamente desrazão, ausência de intelecção.
 Vejamos o papel da física na moral do cartesianismo, que tem a ver com dois itens: o movimento dos "espíritos animais", uma metáfora exclusivamente fisiológica que na época usava-se para designar vapores que se supunha emanar do sangue e provocar disposições emotivas;  e com a explicação acerca da união da alma e do corpo.
Interpretada no sentido de Sciacca, na moral cartesiana tratar-se-ia apenas de libertar-se das paixões e deixar-se conduzir pelo domínio da razão, substituindo a paixão pela razão. Assim as regras da moral provisória são visadas mais amplamente como regras de comportamento no sentido dessa substituição.
Huisman-Vergez já consideram que Descartes pensa a moral em dois níveis, ora visando o ser humano apenas enquanto espírito, ora enquanto unido ao corpo. Apenas enquanto espírito, a questão moral se resume em compreender qual é o valor supremo, resolvendo que ele consiste na generosidade que envolve, ao mesmo tempo, a consciência da liberdade e da vontade, e por aí a auto-estima como a firme resolução, e a consciência da exclusividade de si como vontade, nada mais lhe pertencendo verdadeiramente exceto a vontade.
Considerando agora o ser humano enquanto alma unida ao corpo, a moral faz intervir a física como conhecimento da ação do corpo. Ora, sabendo-se que as disposições subjetivas, como o modo pelo qual se recebem as impressões dos sentido, ou o modo como essas impressões nos afetam emocionalmente, são determinadas pelas peculiaridades do percurso dos "vapores" - que supunha-se circular no sangue como os "espíritos animais" - no organismo, particularmente no cérebro, observa-se como a alma sofre as paixões corporais.
O lugar de junção de corpo e alma sendo a glândula pineal (epífise) para Descartes, graças a essa suposição que tinha como certa, ele pensava poder propor uma ação da alma que, ao invés de passivamente ser inclinada a esta ou àquela disposição conforme o movimento da glândula cerebral lhe informa naturalmente da determinação dos "espíritos animais", controla ela mesma a posição da glândula conforme a sua vontade e firme resolução, controlando assim por sua vez o próprio movimento dos "espíritos animais".
 É interessante registrar que  Canguilhem, ao estudar a formação do conceito atualmente vigente de movimento reflexo desde sua suposta enunciação por Descartes, pôde afirmar que Willis, não Descartes c omo habitualmente se apregoa, se inscreve na origem da definição dessa noção.
   O corte que Canguilhem institui portanto entre Descartes e Willis é rigorosamente “conceitual” , já que Descartes ainda se expressando em termos de “espíritos animais   como causa eficiente do mecanismo de movimentação corporal , só concebe um único sentido de atuação desses “espíritos” , do corpo ao cérebro enquanto puramente reflexo ou movimento, ainda que enquanto ordem da ação o trajeto só possa ser do cérebro ao corpo através da inclinação da glândula pineal.
 Mas Willis propõe o que Canguilhem identifica como o cerne da verdade do conceito tal como a fisiologia o consagrará, isto é, que o movimento é “reflexo” justamente por se fazer em dois sentidos. Ou na expressão de Canguilhem, citado por Roberto Machado: “o essencial do conceito de reflexão não é apenas conter o elemento ou o resumo de uma explicação mecânica do movimento muscular, é admitir que parte da periferia do organismo o abalo, qualquer que seja sua natureza, que, depois de reflexão em um centro, retorna para esta mesma periferia”. Aqui vemos que entre os períodos moderno e contemporâneo em filosofia, o que há é o caminho da ciência empírica desvinculada do compromisso filosófico da explicação ontológica do intelecto.
Já Bréhier vai mostrar como em Descartes essa doutrina dos modos de pensamento como articulação de vontade e saber atua como chave da inteligibilidade de sua filosofia. Pois o cartesianismo só se compreende como complexa relação entre os níveis da física, da antropologia e da metafísica, mais a teoria do conhecimento e a moral.
A própria dúvida metódica, a adesão deliberadamente restrita à pura evidência, decorre da firme resolução da vontade, esse “vivo sentimento” interno que é nossa experiência da liberdade. Mas se essa experiência interna for esclarecida pelo conhecimento da física e da cosmologia, toda teleologia, o humano como finalidade da natureza, se desfaz, abrindo caminho para a independência do homem restrita apenas à sua vontade.
O mundo-máquina tem por fim o ser humano, mas sem implicar  a negação da Providência, algo, como vimos, bastante ligado à separação dos domínios da razão e da fé. Sem ser determinada por causas finais, a natureza não deixa de funcionar mecanicamente, e quanto ao ser humano, sua experiência de liberdade é de tal magnitude que pode abarcar nada menos do que toda a natureza sob o seu domínio.
Esse conhecimento da física do corpo humano permite supor uma cartesiana terapêutica puramente medicinal, envolvendo por exemplo a higiene e a alimentação, como meio de otimização do funcionamento sistemático dos "espíritos animais", assim liberando a alma de más predisposições oriundas de paixões relacionadas com algo que se pode visar ao modo de um mal funcionamento mecânico.
Mas resta ainda a terapêutica propriamente moral, relacionada ao domínio da alma sobre os espíritos, não diretamente, o que se impossibilita pela irredutibilidade entre as “rés” (substâncias), mas indiretamente, já que, mudando o rumo do movimento da epífise, a alma assegura que os "espíritos", cujo percurso corporal se determina pela centralidade da glândula, se conduzam de modo que o resultado desse percurso é conforme à vontade da alma.
A vontade, conforme o cartesianismo interpretado por Bréhier,  é o poder sobre o movimento dos espíritos e  por conseguinte, é poder sobre as paixões que como devemos lembrar, segundo Bréhier em Descartes não são apenas as emoções mas também os pensamentos dados a nós.
Aa unidade da alma e do corpo em Descartes, unidade que sempre se considerou tão criticável, tão problemática, conceitualmente mal situada e vaga, pois ela mesma já demasiado mecanicista, Bréhier a propõe em termos de uma reintrodução da finalidade natural que a física havia rejeitado.
 Pois se a alma pode ignorar completamente a realidade e o movimento dos "espíritos animais", não fazendo mais que experimentar as paixões sem que essa experiência determine por si, na alma, o conhecimento das causas que só a ciência introduz, é justamente pela instituição natural dessas relações de modo finalista, isto é, com vistas à conservação de nosso ser.
Descartes só compreenderia assim as paixões pela união desses conceitos: a) sua natureza derivada dos "espíritos animais"; b) a sua utilidade.
As paixões fortalecem e fazem-se durar em certos pensamentos, conserva-os, fazem ainda advertir dos perigos do corpo. A ligação do movimento dos espíritos com a sensação resultante é geralmente útil, essencial à conservação da vida. Mesmo nos casos em que a ligação se desvia dessa utilidade, por exemplo, quando uma doença produz uma sensação ilusória, podemos observar que a relação movimento-sensação conserva ela mesma sua utilidade, apenas desvia-se pela doença. As paixões não são rejeitadas por Descartes, que resolve o problema do mal explicando-o em termos de desvio, nem sempre imposto por uma causa externa.
Por vezes a ligação resta imperfeita, conduzindo a amar o que não é bom, a detestar o que efetivamente é bom. As circunstâncias do mal como desvio ou imperfeição podem ser físicas ou puramente contingentes. Em todo caso isso não impede a Beatitude. A moral do cartesianismo se designa mesmo, em Huisman-Vergez, como uma “técnica de felicidade”. Bréhier também mostra que no cartesianismo o exercício racional da vontade é o que produz o maior prazer, isto é, aquele que se deriva apenas da alma, alegria e amor puramente anímicos, a “eupateia” dos estóicos, sendo o eu = bem, e o pateia = forma derivada de “pathos”, algo geralmente traduzível por “sentimento” ou “inclinação da alma”.
Aqui algo da conformidade homem-natureza se estaria reintroduzindo, conforme Bréhier pois à Beatitude o cartesianismo associa a consciência de ser parte de um todo providencialmente instituído : família, cidade, nação, planeta, universo. Nasce assim o Amor Intelectual pelo todo, que faz preferir, ao interesse particular, o interesse geral, e nessa avaliação faz intervir a generosidade como virtude da estimação exata de nosso valor, exclusivamente equacionado ao nosso livre arbítrio ou Vontade.
Quanto às paixões, elas podem ser descritas como presentificações dessas cinco virtudes: a admiração, que se deriva da atenção espontânea às coisas do mundo, o amor como tendência ao objeto ou o ódio como repulsa a ele, finalmente a alegria, ou tristeza, derivando-se da satisfação (amor) ou não (ódio) das paixões. Isso que Bréhier vê como uma teoria das qualidades na paixão torna compreensível a utilidade que Descartes lhe atribuiu, como vimos.
O Amor Intelectual racional nasce da capacidade de pensar, é independente da fé ou da graça. O domínio sobre as paixões depende do conhecimento, da física, da medicina, etc, para ser eficaz ou mesmo útil. Assim, como afirma Bréhier, “toda a filosofia cartesiana, apoiada sobre o método, é uma cultura do julgamento, uma vontade permanente de só aderir às idéias em razão de sua clareza e distinção”, ou como afirma a citação do próprio Descartes: “formar idéias distintas das coisas que devemos julgar é principalmente o que me encarrego de ensinar ...” .
Assim Heidegger identifica também o “novo da época moderna, inversamente à época medieval”, nisso pelo que o homem toma a iniciativa, com seus próprios meios, de adquirir, a partir de si mesmo, a certeza e a segurança de sua condição humana no seio do ente em sua totalidade. O problema da salvação se converteu na questão da saúde. Toda certeza concernente ao mundo e à maneira de ser humano deve agora poder se fundar pelo ser humano mesmo, a questão essencial se tornando, pois, o como dessa fundamentação.



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Heidegger mostra que no despontar dos Tempos Modernos há uma transformação epistemológica que desloca o gênero “Suma” e impõe a necessidade do “Método”. A Suma corresponde, com efeito, à acumulação, numa sucessão ordenada, de conhecimentos adquiridos e correntes doutrinais. Mas o Método corresponde inteiramente à questão essencial desses Tempos Modernos, pois ele nomeia agora o pro-ceder assegurante, apto a garantir e conquistar, em relação ao ente, o seu papel de objeto para o sujeito. Frente a essa necessidade do método, todo pensamento medieval aparece como desprovido de método.
Isso na proporção mesma pela qual a questão essencial dos Tempos Modernos transpõe a verdade como Certeza, enquanto o cristianismo – isso que Heidegger pensa ser mais incomensurável com a filosofia do que é um círculo com um quadrado, pois se ao menos esses restam como figuras geométricas, entre aquelas nada subsiste de comum – havia sempre lidado com a verdade como Revelação, transmitida e recebida pela doutrina dos doutores da igreja, daí a conveniência da Suma.
Mas como se posiciona essa verdade-certeza, que faz intervir Vontade e Saber, na história da metafísica? Responder a isso equivale a estar já  (re)constituindo os Tempos Modernos, conforme a visão de Heidegger, mas sem que assim se trate de qualquer constituição derivada e sim somente de sua Re-posição essencial, isto é, metafísica. Porque esses Tempos não são Modernos de modo a produzir, para auto-esclarecimento, uma metafísica que lhe corresponda, mas eles se tornaram algo como “Tempo” apenas na abertura pela qual a metafísica se/o transformou no sentido da modernidade. Seria muito necessário perguntar inicialmente, então, que é isso, a metafísica, para a partir daí poder tratar a questão dos Tempos Modernos.
Ora, que a metafísica não foi desde sempre um antropologismo, que nem sempre ela se propôs como a doutrina pela qual todo ente sempre é o que ele é apenas em virtude de sua humanização pelo homem, e que, portanto, considerar sua história como a reposição cada vez mais acurada dessa mesma questão antropologicamente informada equivale a um falseamento manifesto do seu sentido, eis por onde é preciso começar.
O desenvolvimento dessa proposição, por Heidegger, subentende então uma definição da metafísica tout court. Ela é sempre a interrogação sobre o ente: que é o ente na sua totalidade? Metafísica, pensamento metafísico, consiste nisso: constituir a verdade sobre a totalidade do ente.
Isso corresponde a deslocar o sentido original da questão: “Que é o Ser”? Pois no sentido original pergunta-se apenas que é o ser enquanto ser. Mas a questão se torna metafísica quando só se compreende o sentido dessa pergunta como equivalendo a: que é ou como é ser isto? Ou melhor, a pergunta soa como: como é que isto se pode dizer que é? Ou, em termos heideggerianos, o que é o ente? O que é que faz o ente ser?
A pergunta já está desse modo previamente determinada a ter como resposta algo que seja ele mesmo algum ente. Com a metafísica sempre se está e só se está na região do ente, pois transpor a questão metafisicamente significa já ter esquecido o seu sentido original, que pertence ao âmbito do Ser. Ora, o ser originalmente não é algo dado no sentido de totalizável, sua manifestação implica sempre algo não-manifesto. No entanto, perguntar apenas pelo ente implica em indagar sobre algo que abarca toda a possibilidade de ser do ente. Por isso a questão metafísica se afirma portar sobre a totalidade do ente.
Mas o ser humano está, obviamente, nessa totalidade, sob o modo da pertença. Heidegger empreende então um paralelo entre o Cogito cartesiano e a sentença de Protágoras para mostrar que, ainda assim, esse modo de pertencer o homem à totalidade do ente não foi sempre subsumir todo ente ao modo de ser do homem – isso nesse texto intitulado, precisamente, “Metafísica e Antropomorfia”.
A sentença de Protágoras afirma que o ser humano é o metro – metron – padrão ou medida das coisas. Com isso a sentença salvaguarda, na interpretação de Heidegger, a relação entre os seguintes elementos: o ser humano, as coisas naquilo em que elas se mostram e as coisas naquilo em que elas se ocultam.
Na clareira onde se manifesta o ente, o ser humano se apreende numa relação pela qual ele mede as coisas, conformando-as ao critério do seu próprio comportar-se em meio a elas. Mas este critério só pode se estabelecer porque o ser humano, nesse mundo do pensamento Grego, conserva o saber de que o ser não se esgota naquilo que revela, de que o ente na totalidade conserva o ocultamento essencial que o subtrai ao todo mostrável que ele simula ser. O metron grego é assim a moderação do comportamento, que o ser humano conserva diante do manifesto, a partir do seu saber de que algo está oculto.
Ele sabe que há o ocultar do ente, ele não sabe o que o ser velou para ele nesse ocultar, e assim ele modera o seu comportar. Heidegger procede à partição entre o que é metafísico e o que é tão somente helênico na sentença de Protágoras. A metafísica sempre se estrutura fundamentalmente como articulação, localizada de modo específico a cada vez, de quatro elementos: a autodeterminação para si do ser humano como a “ipseidade do homem”; o projetar do ente sobre o ser como conceito de ser; a delimitação da essência da verdade do ente; e o modo pela qual o homem põe o metro e o propõe como verdade do ente.
Assim, conforme Heidegger, pode-se localizar o que há de metafísico na sentença de Protágoras, pois nela é sempre todo o ente que se relaciona ao homem como Ego, o homem como metro do ente. E por aí se pode compreender ao mesmo tempo a superficialidade e a oportunidade da leitura platônica dessa sentença, pela qual ela encerra o subjetivismo relativista que se associa correntemente à sofística, já que quereria expressar apenas que as coisas aparecem sempre a um “eu” que as toma assim como aparecem, sem que pudesse atribuir-lhes um ser outro que esse, relativo a si, aparecer.
Ora, o que Heidegger quer acentuar é que trata-se sim, de afirmar na sentença que aí onde as coisas se mostram elas já estão sempre sendo mostradas, o que supõe então aquele que as recolhe no testemunho de sua manifestação – nos termos heideggerianos: a pertença assim restrita à ambiência do não-oculto contribui para constituir o ser-si-mesmo do homem, ou seja, “é por essa restrição que o homem se torna Ego”.
Mas conforme Heidegger, o que há de helênico no sentido de ante-platônico e não metafísico nessa sentença é  que não ocorre de modo algum que o Ego ou a representação do ser humano para si como um si-mesmo, tenha previamente às coisas se estabelecido como centro ou metro de todo o representável. Essa afirmação de Heidegger poderia caucionar um empreendimento como o de Foucault quanto à Subjetivação. Pois aqui, entre os Gregos, não se está na presença de algo como uma relação entre o sujeito e o objeto em vias de se lhe tornar acessível, precisamente, enquanto “eu”, ou mesmo que a acessibilidade possa ter a forma do experimentável.
Inversamente, no sentido Grego, a relação fundamental do ser humano com o ente comporta o metro como moderação de si relativamente “à ambiência restrita da não-ocultação”, daquilo apenas que se mostra ao homem, moderação que se torna o traço fundamental de sua essência. Com isso se, por um lado, Heidegger implicitamente se instala numa região de observação dos Gregos que se furta às classificações mais comuns, por exemplo que iria opor metafísica e sofística num sentido tal que somente a metafísica teria pensado a essência e o acesso à essência,  por outro lado  impõe nesse trecho uma reavaliação daquilo que lhe pode ser atribuído como condenação da sofística a partir da leitura do seu texto sobre o humanismo, pois aqui inversamente, ele a insere como interpretação genuinamente helênica, necessariamente ambientada na sofia (Sofia/saberdoria), da verdade enquanto aletheia (não-ocultação, portanto, o que sabe haver previamente uma ocultação).
 Como se sabe, Heidegger está se movendo nesse período contemporâneo em que nós não confundimos pensamento com intelecto puro, e assim, o ser que se mostra subentende ao mesmo tempo um meio de sentido restrito como cultura e o devir do pensar presente nesse meio,  e a  irredutibilidade desse meio ao que ele não é, um outro meio, um outro pensar, no entanto, igualmente pertencentes como possibilidade, ao ser. Assim, o que se mostra está sobre um fundo que o mostrar mesmo oculta, todas as possibilidades que não são as implicadas no mostrar e como manifestação (essência) do que assim se mostra  - ao homem  - ser.
A questão sobre o ser deixou totalmente de ser posta enquanto tal pelo cristianismo, pois tratava-se, conforme Heidegger, agora nessa ambientação romana, nem mesmo de se indagar a respeito do que o ente é, isso que no entanto desde Platão torna a questão do ser metafísica e que lança metafisicamente também a interrogação sobre o ser humano, mas que na ambiência grega, conserva algum sentido do caráter não-totalizável, que nada porta de ocultante, do ser. A questão no cristianismo porta apenas sobre a verdade do ser enquanto salvação, verdade revelada e codificada como “doctrina” pela “schola”, nos termos de Heidegger.
Ora, a modernidade ocorre, na visão de Heidegger, como correlato da liberação pela qual o ser humano se emancipa de toda “doctrina”, de toda dogmática da igreja. Mas como Heidegger observa, toda liberação traz consigo uma determinação própria quanto à essência da liberdade. No tocante à noção moderna de liberação, algo a constatar, já pelo exame da démarche do cristianismo no interior mesmo dos Tempos Modernos, por exemplo, do protestantismo, é que ela sempre está como que a se destacar desse cristianismo como fundo, isto é, está sempre se definindo por oposição à Revelação da Salvação da Alma imortal e pessoal.
E torna-se assim compreensível que ela é liberação no sentido de que o ser humano pode/deve por si mesmo se assegurar de sua destinação e de sua tarefa. Logo, para Heidegger, essa liberação se converte no aguilhão da dominação. A soberania absoluta sobre a natureza torna-se o objetivo, a tarefa ou o assegurar-se de si mesmo do ser humano, torna-se uma obrigação.
A liberação tornada obrigação, isso que funda a modernidade na ruptura com o feudalismo, Heidegger observa através dos muitos sintomas, todos característicos dos Tempos Modernos: humanismo clássico, filosofia das luzes, positivismo, formação do Estado como nação, organização do proletariado pelo marxismo, política de identidades (etnias) ou mesmo a identificação do “tipo” que faz convergir massa ou grupo comunitário e indivíduo.
 Heidegger quanto a isso poderia parecer ambíguo, pois de fato o meio de sentido sendo linguagem, deveria ser uma política étnica o interessante ao seu propósito. Contudo, não há problema aqui, a meu ver, posto que aquilo que ele está condenando é a egoização da cultura, a confusão do ser com o ente índividualizado, não a singularização da cultura como linguagem irredutível ainda que, enquanto estrutura de visão de mundo, generalizável em termos de acesso da consciência ao sentido.
  Desse modo podemos notar que não há nada de antitético entre a filosofia de Heidegger e opção política totalitária, ainda que uma crítica da egoização possa não implicar imediatamente a tese política da subunção do indivíduo ao Estado. Se a questão da adesão de Heidegger ao totalitarismo permanece obscura - se isso refletia sua filosofia ou não, se a adesão foi ao totalitarismo real ou ao ainda idealizável nos inícios -  ao menos a sua teoria da cultura vemos comportar um deslocamento da totalidade, da objetividade à própria cultura como visão de mundo. O ser como meio de sentido é totalizante em termos desse sentido do ser.
 Além disso, não são os homens que produzem ideias ou meios práticos de interação com o mundo. É o Ser, a cultura como visão de mundo, linguagem ou historicidade, portanto "cultura" não no sentido autenticamente romântico de multiplicidade de sistemas formativa da subjetividade, que desvela-se através das ideias expressas pelos homens. Por aí entende-se porque Heidegger  pensava a superioridade das palavras dos pensadores e poetas nos termos de uma docilidade à voz do ser - eles apenas a expressam, nada avançam por si mesmos.
 A crítica dos pós-estruturalistas  à hermenêutica heideggeriana não portou apenas a propósito dessa unicidade do meio de sentido, para reverter a sistemas ou linguagens parciais como texto num sentido puramente significante, mas principalmente sobre a confusão do Homem como dasein, por onde o "em situação"  seria ao mesmo tempo Ser. Mais recentemente, o pós-modernismo em teoria implica uma crítica ou ao menos releitura do pós-estruturalismo como um cenário que talvez não tenha realmente ultrapassado a veleidade da totalização do sentido apenas por ter transportado ao inconsciente a problemática da determinação do poder na cultura para do poder fazer a crítica, em vez de pressupor como ontologia.



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Quanto à  estruturação metafísica da "obrigação" imposta nos termos da "modernidade", Heidegger delimita momentos fundamentais relativamente independentes. O começo decisivo com Descartes, o momento kantiano, em que o estabelecimento do Ego como fundamento se autonomiza definitivamente em relação a qualquer “providência”, o momento nietzscheano que Heidegger vê como fim da metafísica no sentido de sua máxima realização, não de seu ultrapassamento.
Interessa aqui, mais propriamente, a observação de Heidegger sobre a filosofia de Descartes, seja porque envolve aquilo que Heidegger considera o que pode ser conceituado, já a partir do instrumental foucaultiano, na perspectiva da Subjetivação moderna; seja porque, quanto a isso, a visão de Heidegger resta ainda aplicável.
Descartes se encarregou da tarefa dessa nova liberdade. Por esse meio, o que há a transformar é a Verdade. Vemos então, conforme Heidegger, que a liberdade requer que a verdade seja certeza, não mais “doctrina”. Como certeza a verdade não é da ordem do dado, ela é algo inerente ao exercício da razão, portanto algo que pode se relacionar a um método, desde que essa certeza se esteja propondo como aplicação da liberdade apenas enquanto soberania do ser humano sobre as coisas.
Heidegger observa o novo sentido que está subjacente à expressão cartesiana “cogitationes” (meditações). Pois se o “pensamento” é algo a que se relacionam modos, isso se torna exeqüível uma vez tendo se identificado o pensar a um exercício, precisamente o ato de pôr à frente de si, ou a “paixão” de ter algo posto à frente, isto é, sempre pensar como representar – ter diante de.
 Heidegger afirma que pensamento, conforme o uso cartesiano do termo, significa os modos de comportamento do ser humano que são por ele mesmo experimentados na sua execução, como seus próprios modos de pensar: sentir, querer, imaginar, ou mesmo estar certo de. A cada vez que se “pensa”, algo está sendo exercitado pelo sujeito que se representa o pensar e a si mesmo enquanto comportando-se para si no pensar - mas esse para si apenas enquanto a objetividade do seu pensar.
O método se aplica  sobre o já disposto. Mas como é que a totalidade foi assim disposta, ao Ego, sob a forma da certeza como objeto na verdade de seu ser representável para o sujeito?
Tudo depende então de uma certeza básica, a do Cogito (Penso), mas enquanto garantia do ser. Heidegger mostra inicialmente que uma certa crítica de Nietzsche a Descartes, nisso pelo que Nietzsche teria se conformado à interpretação mais comum da sentença cartesiana, se revela inconsistente. Nesse particular, não me parece que Heidegger esteja de todo errado. Conforme Nietzsche, o Cogito ergo Sum, "penso, logo sou", funciona como um silogismo falhado, pois que o sujeito precede o pensar, enquanto existente, é o que está em questão, no entanto dada como resolvida pela proposição que assim o pro-põe. Essa é também, devemos notar, a crítica de Kant a Descartes: não há de fato nexo necessário entre pensar e ser.
Para Heidegger, como também considero o que demarca a atitude filosófica do período moderno enquanto estruturado pelo sujeito concreto, não se trata de modo algum de silogismo, de um raciocínio que se está endereçando apenas como exercício lógico. Heidegger entende que é preciso previamente indagar sobre o modo como Descartes empregou a palavra “cogitare”. Aqui ele se detém no modo pelo qual se instaura o método enquanto correlato da dúvida. Esse “cogitare”, esse pensar, é “escrúpulo”, portanto inseparável da dúvida ou método dubitativo, porque exercendo-se no sentido de percipere (perceber), ele é sempre um dis-por diante de si, re-presentar-se a si daquilo que se percebe, nada mais.
Por isso cogitare é dubitare, por se limitar escrupulosa e deliberadamente à evidência do que é dado a si, mas por aí, no mesmo lance, cogitare é também se conceder algo de indubitável. Cogitar como duvidar significa que o que se põe diante de si se está pondo com toda segurança, é o mesmo que se garantir – verdade podendo ser certeza - e assim cogitar é também calcular. Mas o que escapa à lógica é o nível da manifestação performatizada no Cogito. Todo pôr diante supõe o si que põe. Todo representar do objeto supõe o sujeito que o põe diante de si. A representação objetivante faz a essência da Subjetivação moderna que estende o “eu” como “sujeito” que representa diante de si o objeto nisso mesmo que o cogito cartesiano assegura: a cada representar do objeto, “eu”-mesmo, que me represento o objeto, é representado por acréscimo.
A subjetividade se torna objetividade, ocorre objetificação do sujeito na re-presentação. O “eu” me é representado em cada evidência, independente do modo dessa evidência, como lembrança ou presença ou imaginação, não há portanto como situar o “eu” na exterioridade da re-presentação do objeto que o põe ao ser posto pelo “eu”.
Enquanto produtor de certeza, escrúpulo, cogitar é também calcular. A essência matemática se determina assim, metafisicamente, de modo novo. Se o Cogito transformou o “subjectum”, que até então era tomado só como sujeito da proposição, podendo ser qualquer objeto, agora o subjectum é tão somente o ens certum, indubitável ou verdadeiramente pensado, ao invés de ens creatum. "Subjectum" como o representar que se representa representando, tornado pois, subjetividade, constitui agora o fundamento.
Heidegger observa que esse fundamento se apresenta sob uma forma axiomática, o cogito sum, enquanto proposição, enuncia a verdade básica de toda a verdade como se fosse um axioma. Mas a axiomática moderna muda assim de sentido, pois ela não exerce um papel meramente lógico- geométrico, ela se incumbe da tarefa de fundar a representação. O que o axioma funda não está no exterior como o representado, mas na realidade do seu exercer-se enquanto subjectum, enquanto representação certa naquilo em que é indubitavelmente, a princípio, posta aí diante de nós.
A matemática, como região dessa axiomática, tornou-se a mathesis, o cálculo universal enquanto metafisicamente projetável na representação, mas isso não sem que ao mesmo tempo se lhe concedesse toda a extensão como domínio do unicamente calculável: instauração dos Tempos Modernos como sendo a era da energia mecânica, do corpo-máquina, da economia planificadora do Estado absolutista e dessa humanidade que se concebe na mais absoluta soberania sobre o planeta, humanidade introduzida, conforme Heidegger, pelo Cogito.
 Podemos compreender agora, o paradoxo histórico com que nos defrontamos ao acercarmo-nos do período moderno. Por um lado, ele se estrutura por uma subjetivação do exercício conceitual, que não corresponde, porém, à subjetividade contemporânea. Por outro lado, ele é oponível a todo cenário pré-moderno onde não há subjetivação qualquer pensável, portanto, ele não é formalmente, de todo, oponível ao cenário contemporâneo. Além disso, transpondo o exercício à subjetivação concreta, esse exercício não se pensou senão como metafísico e conceitual, isto é, não se pensou como uma ruptura de natureza com toda filosofia anterior, mas inversamente, como resposta às mesmas questões que ela havia colocado, e que se consideravam agora apenas dever serem instauradas como relativas ao sujeito pensante.
Observando esse paradoxo histórico da "modernidade", podemos afirmar que não há uma solução única, mas que situar-se contemporaneamente no pensamento subentende que o pensador optou de certo modo entre esses caminhos possíveis, não sem que essa escolha lhe permita situar as demais possibilidades. Ao acercamo-nos da contemporaneidade na figura de qualquer dos seus pensadores, há nele uma imagem do período moderno formadora da sua concebida originalidade quer por total oposição que então esclarece o sentido da sua ruptura, quer por crer-se numa continuidade que deve manifestar apenas o seu desdobramento.
  Ou seja, explica-se também assim a atualidade da influência de Descartes no pensamento, não obstante a impossibilidade das suas teorias científicas em física e fisiologia, a despeito da sua contribuição perene em matemáticas  - por exemplo, como alguns designam a arte abstrata modernista uma estética "cartesiana" por ser racional-geometrizante; ou como vimos, como a fenomenologia de Husserl pode ser considerda um neocartesianismo; e sempre que se fala em "dualismo" na psicologia, isto é, onde se constata a premissa de que a consciência não pode ser tratada numa mesma disciplina que a fisiologia, então classifica-se isso um método "cartesiano".
A meu ver, é contraditório afirmar que há um princípío comum, o sujeito, entre os períodos moderno e contemporâneo, e se em todo caso, há algo impensável antes do primeiro, então seria também contraditório afirmar que se trata da mesma "tradição" perpetuando-se desde os gregos. Mas de fato, conservando um ponto de vista estrutural ou intrínseco, não se tem como postular de direito as rupturas num nivel tão profundo. Somente se pudermos localizar mais algum elemento que seria esencial ao pensamento, o qual viesse portar a ruptura, torna-se ultrapassável esse paradoxo. Creio que esse elemento existe como o situamento do para si do conceieto, isto é, o seu situamento em relação a si mesmo.
Na metafísica antiga e medieval, a cultura não põe senão o seu em si porque nela nada há de outro pensável - pelo menos é assim a partir de Platão, onde a questão política da heterogenidade posta pela democracia e pela sofística, deixou de ser posta, com essa recusa encontrando ressonância nos acontecimentos históricos da consolidação dos impérios.
No período moderno, há esse outro pensável e a cultura tem que pensar o seu ato de ser pensada, esse outro sendo a natureza como o que coage a ser visto a partir do alteridade colonial - seres que não são nem loucos, nem se pode a priori demonstrar seu erro, mas que são irredutíveis aos princípios da racionalidade até então sem mais a síntese da humanidade em si. Mas nesse período, a alteridade é subsumível à natureza, o que já não será o caso na contemporaneidade, quando as margens pós-coloniais coagirão a serem pensadas como alteridade da cultura. Assim, entre os períodos moderno e contemporâneo há efetivamente ruptura estruturante do que vem a ser pensável, e o que se retematiza da história da filosofia não se efetua sob um mesmo exercício crítico.
Aqui não seria o caso de desenvolver todas as implicações dessa tese, o que elaboro em estudos ulteriores, mas apenas de situar o período moderno naquilo que poderia ser o seu real contexto formativo. Seria o caso apenas de notar que essas mudanças de estruturação impelem a mudanças no regime da inteligibilidade mesma, isto é, implicam condições de possibilidade do exercício do que se considera ciência.     
Na metafísica antiga, não pode haver ciência empírica ou puramente observacional. Com o período moderno, há essa ciência, mas ela precisa ainda ser fundamentada na sua validez, pela filosofia, então há ciência experimental, mas não ciências humanas. É só no período contemporâneo que há ciências humanas e em que a filosofia pensa o dado inteiramente validado por si das ciências empíricas. Mesmo a fenomenologia só põe a questão da experiência em geral - que não é uma questão científica, e o que ela reclama à ciência é o ocultamento dessa questão. Ela não põe em questão o dado objetivo da ciência.



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Heidegger não deixa de situar o pensamento cartesiano na sua relação com a tradição, isto é, com o pensamento pré-moderno que podemos até designar mais geralmente pré-cartesiano.
 Pois, segundo Heidegger, se Descartes já está lidando plenamente com o Ens certum, ele se expressa ainda em termos de Ens creatum. Assim se constitui a partição cartesiana das “res”: Deus, substância infinita (creatur). Substâncias finitas (creatum) irredutíveis sendo a res extensa e a res cogitans, extensão e pensamento.
Como extenso é o mesmo que espaço, ele se concebe como domínio do representado, da natureza, do dominável enquanto o calculável. Já a certeza do cogito determina a essência do saber, tudo o que pode ser conhecido, como pertencendo à esfera da mathesis univesalis ou linguagem universal lógica e matemática. A essência metafísico-axiomática transpõe à mathesis o domínio do Ser que agora está inteiro no pensar enquanto totalmente acessível ao re-presentar.
Heidegger critica assim certo uso do epíteto “racionalismo”, aplicado a Descartes a partir da pressuposição simplista de que o cartesianismo interpreta todos os modos de comportamento humano em termos de modos de pensar. A questão prévia a propor aqui deveria no entanto consistir em indagar sobre o que se está entendendo no cartesianismo por Ratio ou por Cogitatio e sobre como uma coisa está se relacionando com a outra.
Vimos que Descartes instaura a revolução moderna propondo a representação pela intromissão do “Moi”, o “Eu” ou a “Subjetividade”. Ora, aquela double-face da mathesis se relança aqui, pois o que esse uso pioneiro e mais básico do axioma-cogito instaura, sendo tão somente metafisicamente apreensível como fundamento do sujeito na representação, estende ao mesmo tempo toda veiculação do pensável ao representável na forma da adequação-calculação. Heidegger mostra assim a vacuidade de se propor uma fórmula como Veritas est adequatio intelectus et rei ( a verdade é adequação à coisa), como comum a vários autores que a professam, quando a questão essencial é ver como é que cada um deles está utilizando essa noção de adequação.
Assim Descartes instaura a verdade como o calculável do representado, o Saber como domínio da razão, mas tudo isso pressupondo a Vontade como posição do “eu” que se representa como objetivante do conhecimento que é cálculo. A verdade se tornou um resultado certo, uma operação do Cogito caucionada pela certeza. A transformação da questão “o que é o ente” em uma questão que agora concerne ao fundamentum absolutum inconcussum veritatis, eis a mutação que inicia o novo-pensar, ou a época constitutiva dos Tempos Modernos enquanto proposição desse sujeito incondicionado no pensar como fundamento da certeza.


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Esse plural dos Tempos modernos é muito significativo. Pois a junção de que resulta a mutação, encontro daquela liberação frente à Revelação e à toda destinação sobrenaural do ser humano, com a problemática da verdade a tornar-se certeza, determina-se, conforme Heidegger, como multiplicidade imanente à essência da história dos Tempos Modernos enquanto aplicação dos múltiplos modos da liberdade nova.
Tempos Modernos é algo, portanto, que não se pluraliza apenas na diacronia dos seus momentos sucessivos, mas que só se compreende abarcando também, nessa pluralidade, a sincronia através da apreensão da multiplicidade de domínios que o ser humano estende a cada vez a essa liberdade nova pela qual o ser humano instaura sua soberania sobre as coisas mas, ao mesmo tempo e no mesmo lance, se torna “senhor” para determinar ele mesmo a essência do que é humano.
Liberdade como "aguilhão" lança assim a garantia do desenvolvimento “supremo e absoluto” de todas as aptidões do ser humano até a absoluta soberania como domínio completo sobre todo o planeta. Aguilhão que conduz, conforme Heidegger, o ser humano dos Tempos Modernos através de todas as suas insurreições, sem cessar renovadas, a fim de se assegurar de seus objetivos. Todos os momentos constitutivos são estágios desse processo impulsionado por esse aguilhão do ser humano, de ser livre em relação a tudo o que não for ele mesmo.
A razão como fundamento só pode ser agora o ser humano mesmo, pois o sentido dessa liberdade o proíbe de se propor qualquer laço ou obrigação que não resulta de suas posições as mais particulares – e vimos como a moral do cartesianismo se libera do dogma, só supondo a subjetividade como critério infinito da vontade, de todo o modo de proceder.
Enunciando-se assim o essencial quanto aos Tempos Modernos a partir da ambiência do cartesianismo, conforme Heidegger, tudo o que se põe de ulterior pode ser considerado relativamente ao essencial seja quanto ao mesmo ou quanto à diferença, isto é, a partir de sua relação própria com a essência.
Se esse ulterior terá que ser progressivamente detalhado, aqui me parece ainda situável a questão da real oposição entre Descartes e Locke, pois o empirismo justamente parece não precisar acarretar o processo de Subjetivação a partir de uma totalização do “Moi” prévia a toda possibilidade de acesso ao ente o que poderia, em contrapartida, ser atribuído como projeto mais essencial do racionalismo moderno, naquilo que restasse ainda de utilizável nesses rótulos.
O “eu” do empirismo se compõe reflexivamente, como momento posterior ao experimentar do percipere, ele se (re)encontra nas operações que efetua sobre o percebido, logo, ele supõe o pensar não sendo pressuposto como fundado previamente pelo “eu”. Mas essa questão agora não pode mais ser proposta sem estar relacionada àquela da inserção do empirismo na modernidade, como é visada na ambiência do heideggerianismo.
Algo que não se pode deixar de observar aqui, em favor de Heidegger, que não vê Locke e Hume senão como versões grosseiras do cartesianismo, é o seguinte. Toda “noção”, para Heidegger, só se apresenta ou é apropriada como tal no conteúdo do fio condutor do pensamento e da enunciação. Propriedade do ser significa, em termos cartesianos, represent-ação, e a verdade como certeza é o mesmo que: estabelecer-se no/através do representar. Assim o percebido, enquanto idealmente representado, não pode deixar de supor o eu que se põe o representar.
E aqui reside a intenção profunda da crítica de Heidegger a Nietzsche. O esquema seria o seguinte. Nietzsche pensa estar criticando Descartes, em nome dos empiristas, afirmando que inversamente ao que o Cogito ergo sum propõe, o pensar é prévio a qualquer categoria, portanto, prévio ao “sujeito” e mesmo ao “ser”. Mas Heidegger pretende mostrar que é isso mesmo que Descartes está afirmando no Cogito, ainda que Nietzsche não o tenha percebido.
O que, conforme Heidegger, permanece comum a Descartes, aos empiristas e a Nietzsche, o que funciona como o moderno a priori metafísico, é que sempre o “pensar” está sendo proposto como a represent-atividade pela qual algo é posto diante de, e por esse meio, a verdade significa agora “certeza”.
Por a frente de supõe isso que está sendo posto mas, mais fundamentalmente, o subjectum deslocado – desde o sujeito qualquer da proposição ao sujeito humano, o Ego. O Ego se torna assim absolutamente o fundamento da essência do pensar, isto é, em todos esses autores o fundamento é o mesmo pois pensar significa representar e é o pensar que é o mais essencial. Só o que muda é que Descartes supõe esse eu de modo metafísico como unidade enquanto que Nietzsche, como os empiristas, dele fornece uma explicação psicológica.
Assim, conforme Heidegger, que subsiste o fundamento comum já se vê nisso: se Nietzsche vai identificar a dúvida cartesiana como “vontade de verdade”, vontade de não se deixar enganar, ele já está subescrevendo a igualdade verdade/certeza como se fosse um dado em si, quando está se tratando efetivamente de uma fabricação moderno-metafísica do conceito de verdade – que não coincide com o conceito grego de alethéia, por exemplo.
Mais geralmente penso que a crítica de Heidegger desemboca assim numa inserção do pragmatismo, não apenas do empirismo, nessa metafísica moderna, e aqui reside o aspecto mais fundamental de sua crítica a Nietzsche. Pois o pragmatismo, como ocorre em Nietzsche, desloca o critério para o âmbito do valor, perguntando por exemplo, não o que é que esse pensador está dizendo, para assim comparar esse teor com alguma outra verdade, mas sim o que ele está querendo, que valor está subjacente àquilo que ele está afirmando.
          Isso para Heidegger, ao invés do fim da metafísica no sentido do seu ultrapassamento, como pensa ter realizado Nietzsche precisamente pelo pragmatismo, é a sua máxima realização, pois corresponde exatamente `a operação metafísica moderna uma vez que o pensar está assim previamente sendo concebido como uma atividade de se por algo como tal à frente de si, tal valor, tal representação, assegurando ainda de modo mais extremo do que tudo o que se fez anteriormente que o fundamento dessa represent-ação é o sujeito, nada de outro -  que poderia figurar como o Ser ou mesmo o ente como subjectum (sujeito-qualquer da proposição)  -  mas tão somente esse ente, o ser humano, que se tornou “o” subjectum (Sujeito) no sentido de fundamento.
Penso que Heidegger chegou mesmo a visar os Tempos Modernos em termos de algo como um a priori histórico aproximado ao sentido de Foucault, mas isso paradoxalmente, de forma que de modo inverso a Foucault, não se trata de uma descontinuidade histórica fundamental, e inversamente trata-se do modo pelo qual a metafísica platônica pode continuar vigente na modernidade. Em todo caso, os termos fundamentais desse a priori da Modernidade, que se poderia designar antropo-metafísico, seriam: a essência do pensar como Represent-ação, logo tendo como fundamento o Sujeito; a verdade como certeza; e a relação da subjetividade com a totalidade do ente como dominação (“técnica”).
Seria esse, a meu ver, o sentido do termo heideggeriano “história do ser” . Fornecendo sentido ao ser, ou esquivando-se dele para constituir metafisicamente o sentido desse esquecimento, a cada vez que algo como esse Tempo – a Grécia ou a Modernidade, por exemplo – se instala, pode-se a partir do fio condutor dessa interrogação fundamental sobre como ao Ser está sendo fornecido o sentido do esquecimento ( nas metafísicas) , ou da proximidade (na origem ou no fim da “história” , na palavra dos poetas e pensadores), estabelecer algo como o campo a priori de todo pensar desse Tempo. Aqui o paradoxo, pois enquanto o tempo da represet-ação antropocêntrica a modernidade é una em si, mas enquanto o tempo da metafísica ela é apenas a continuidade do platonismo.
           Todas as macro-oposições filosófico-conceituais da modernidade são assim relançadas por Heidegger no âmbito de um Mesmo a priori que seria antropo-metafísico. Contudo, especialmente quanto à crítica de Heidegger a Nietzsche, não há ainda base para estendermos devidamente a questão, pois ela requer a compreensão do cenário filosófico contemporâneo.
          Aqui , contudo, seria importante apenas registrar que a interpretação da Vontade de Potência em termos de subjetividade permanece bastante questionável. Kelkel-Scherer , em seu livro sobre Heidegger, consideram que não se destitui a importância do pensamento heideggeriano mesmo aceitando que quanto a Nietzsche a interpretação de Deleuze é mais satisfatória. Nessa interpretação Deleuze visa a Vontade de Potência justamente como conceito que não só “critica” a noção de subjetividade mas efetivamente se movimenta no âmbito de um pensamento não subsumível ao critério da represent-ação. Mas a ação da Vontade de Potência subentende, conforme Deleuze, uma noção de “relação” que teria a ver com o cálculo diferencial, a vontade sendo o diferencial que assegura o devir regulado entre as determinadas variações derivadas da articulação autônoma dos valores.
         A inserção dessa noção aqui é oportuna porque Deleuze estende uma compreensão “nomadológica” da modernidade a partir dela, localizando, por exemplo em Spinoza, um pensamento essencialmente não-metafisico, não-cartesiano. Não haveria uma ontologia, nos sentido de uma pré-compreensão do Ser, mas as variações situadas no devir, desde que, no entanto, uma vontade já está selecionando os valores como pertinentes ao que é esse devir como sua seleção.
Se efetivamente, para além da questão da diferença das imagens de linguagem entre Heidegger e Deleuze, este "escapa" à crítica da modernidade heideggeriana,  ou não, em todo caso o heideggerianismo se interpõe na constituição da questão Nietzsche, posto que é no seu estudo desse filósofo que Heidegger expõe a sua história do ser nele situando o cumprimento ou acabamento historial. Isso  que torna a  prévia apreciação da questão assim como posta por Heidegger,  necessária a qualquer intenção de compreender a filosofia, tanto moderna quanto contemporânea, uma vez que estamos situados na contemporaneidade.

                              

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                A sublevação do ente contra o nada, decisão que vem do ser, é o acontecimento decisivo que convida o ente a se encontrar no ser enquanto, no mesmo lance, o ente já está informando algo sobre o ser.        
                A sublevação é algo metafisicamente inaugural, desde a Antigüidade, pois a partir dela o que o há a ensinar sobre o ser é que o Ser é o que é, esse “que” , conforme Heidegger, sendo a enunciação da sublevação.
              Leio aqui o termo francês “soulèvement”, que Klossovski utitilizou em sua tradução do Nietzsche II de Heidegger, como “sublevação”. O termo equivale normalmente a “soerguer, levantar, agitar”, mas penso que “sublevar” está mais próximo do sentido heideggeriano nesse contexto, já que conserva a implicação de irromper contra, assim como em “se soulever”, isto é, “revoltar-se”.
O ente é real, sua realidade é ser. Enquanto real o ente é efetuação de realidade, ele torna a realidade eficaz por sua capacidade de agir. O ente age (real), o ser se mostra (realidade). A partir dessa informação fundamental se desenvolve a História do Ser enquanto metafísica.
Heidegger estende o conjunto de palavras-guia, quanto ao ser: realidade = existência = ser-aí. Metafisicamente a palavra que concentra a tríade dessa pretensa equivalência conceitual é existência, proposta como realidade de todo ser-aí ou como exprimindo a subsunção de todo ser-aí como Realidade, isto é, efetuação eficaz do agir do Ente.
A existência traduz assim o sentido corrente da realidade enquanto efetiva, isto é, a pergunta sobre a existência traduz a questão sobre o ser. Esse sentido de “existência” se pode resgatar plenamente, por exemplo, na enunciação da questão da existência de Deus, ou mesmo da existência do mundo. Já na modernidade essas questões se expressam através, respectivamente, de Kant e de Leibniz, neste como questão envolvendo o melhor dos mundos enquanto existente.
            Contudo, que esses três termos não formam uma igualdade no sentido de uma significação unívoca, se relaciona a que subsiste um intervalo de não-correspondência entre, por um lado, a eficácia do agir e da obra e por outro, a determinação do ser.
           Ora, a intenção metafísica de afirmar a identidade ser = existência se vê confrontada pelo fato de que o ser, por tal meio, não está plenamente nomeado. Assim a metafísica precisou instituir a tradução desse intervalo a partir daquilo que já vimos ser nomeado como oposição entre essência e existência – em grego, entre o ti estin e o oti estin, e na linguagem escolástica, entre o quid e o quod. A oposição metafísica porta então sobre o que é o ente, por exemplo, essa árvore, ou em que o ente é, se existe ou não. Logo, ela porta sobre a posibilidade de ser e o fato de ser.
Mas se a estrutura do pensamento metafísico, ainda no momento helênico inaugural, recobre o que possa ter restado como conexão entre a partição originária (Ser-Entes) e a partição derivada (oti estin, ti estin ), de modo que ora a conexão permanece obscura, ora se pode reencontrar o elo, essa obscuridade se torna mais determinante a partir da interpretação que a romanidade/cristandade faz portar sobre o termo grego Energeia, aquilo que em Aristóteles é o existente por oposição à Idea (essência).
            A oposição entre essência e existência inaugura a história do ser, como metafísica. Essa distinção surge como uma mera aparência se a pergunta se deslocar, desde o interior daquilo que ela funda, isto é, da metafísica, àquilo mesmo pelo que ela o pôde fundar, isto é, o ser. Se ao invés de aceitar o dado da distinção e indagar que é essência, que é existência, como se funda a existência na essência ou vice-versa, indagamos sim, mas sobre como é que essa distinção pôde alguma vez ser atribuída ao ser, o que se mostra é que a metafísica nunca procedeu um tal deslocamento, logo, que a metafísica, como a distinção, não possui realmente fundamento.
A oposição apenas insiste sobre modos de posibilidade e gêneros de realidade, questões que conforme a expressão de Heidegger, assim como a distinção na qual se baseiam, se evaporam no indeterminado.
          Mas a oposição permanece como o acontecimento da história do ser que o pensamento sobre o ser precisa se dar a pensar. Quanto a isso, o que se torna culminante enquanto acontecimento dessa história é a transposição, pela romanidade, da energeia como actualitas. Assim essa culminância se porta sobre o deslocamento da questão do ser no sentido metafísico helênico genuíno que, com Aristóteles, (re)-inicia a história do ser.
             Vimos que o sentido grego autêntico do aristotelismo conserva no pensamento da Ousia como Energeia, o relançar daquilo que é originalmente o sentido do ser na sua irredutibilidade ao ente e na sua relação com o ente. Heidegger traduz a Ousia, que normalmente se lê como Substância, em termos de “Presença”. Essa tradução lhe permite pôr a hipótese de que a partição que Aristóteles afirmou entre presença como existência (presença em sentido eminente) e essência (presença ou ser presente em segundo sentido), repousa sobre a partição não-metafísica originária entre o “presente” e o “presentificar”.
Assim a partição conserva a “existência” como correspondendo ao demorar na “presença”, a “essência” estando como o subsistir da manifestação do “aspecto”, mas ambas sendo modos de se presentificar, isto é, de estar no ser, daquilo que se presenta, isto é, o ente.
Mas na transposição implementada pela romanidade, Energeia sendo agora lida em termos de “ato”, “ser em ato”, existência equivale exclusivamente a Realidade enquanto distinta da essência, Realidade que nesse sentido romano de actualitas traduz plenamente existência como eficaz efetivação a partir dos entes, isto é, como sendo tornada eficaz pela ação do ente.
          Aqui Heidegger assimila expressamente existência, no sentido romano de actualitas, a “realidade eficaz”. A transposição de energeia como “ser em ato” (atualidade), anuncia que existência se está propondo como Opus, Factum, a obra do obrar, o feito do fazer. O que ilumina aquilo que se afirmou então, inicialmente, isto é, que “existência”, entre realidade (Wirklichkeit) e Dasein (ser-aí) corresponde à tradução metafísica da questão sobre o ser que assim se transpõe em termos da pergunta sobre os entes.
         Essa transposição acarreta um outro sentido também para a noção de causa. Pois ela não teria sido possível se a operação metafísica inaugural grega não houvesse já determinado a conversão da Arché pré-socrática, pré-metafísica, em Aitia, isto é, se não houvesse assimilado origem como causação, e isso precisamente por estar já visando o ser no sentido de presença constante e estável, o que pôde ser lido pela romanidade como “ser em ato”.
         É assim que se está agora compreendendo a partição entre realidade como atualidade e real como causalidade, aquilo que através de um agir ou fazer impõe a realidade como real. O que se opõe então não é a dualidade real-realidade, ente e ser, que se está propondo num mesmo operar como processo causal instaurador da presença, mas sim entre a essência, idéia, representação, por um lado, e a atualidade, ato, realização, por outro. O que pode restar, como conexão entre esses duas tríades é a compreensão do ser como realidade efetivada ao modo de ser inteligível, a realidade do ato que é real, e a compreensão do ente como real efetivada como ente verdadeiro.
           O ente se torna exclusivamente o pensável como ser, na metafísica, desde esse acontecimento fundamental da romanidade que introduz a energeia como ser em ato. Mas se o ser é essa realidade enquanto causalidade, o ente pode ser pensável teologicamente, como criador, como Deus, o ente que é o ser do qual todos os outros entes derivam, sendo pensado como supremo (Summum Ens) porque equalizado ao ser, isto é, ente que não pode não ser, ente necessário que não estabelece por si nenhuma relação com o possível, sendo apenas possibilitante já que é pura realização, ato puro (São Tomás).
          A oposição entre a essência e a realização opera também a transformação da verdade que agora se endereça no sentido de um saber, de um estar consciente de. Ocorre então a fluidez entre a escolástica e a modernidade, pois se a modernidade instala a "consciência de" alguma coisa x, a partir do ser humano, como “certeza” (Descartes) dessa coisa estar dada à consciência, a escolástica havia já pensado a verdade na abrangência da “certitude”, mas assimilando-a dentro da oposição entre o saber realativo do homem e a onisciência de Deus, o que também permitia propor o homem como telos (finalidade) da natureza enquanto criação de Deus.
           O que asinala a concreção moderna, conforme Heidegger, é a substituição da igreja pela cultura como instrumento pelo qual a humanidade pode asceder à certeza. Isso se verifica também como tendo tornado sem precisão a localização da certitude como onisciência para fazê-la equivaler tão somente à "consciência de", enquanto tal, isto é, à Evidência expressa já pelo Cogito. Aqui se inauguram os Tempos Modernos como a mutação pela qual a humanidade pôde se pôr em segurança através da certeza do saber.
           Contudo, se esses tempos são “modernos”, isso se relaciona com o o fato de que essa segurança só pode se garantir pelo contínuo renovar do saber. Mas paradoxalmente a modernidade não deixa de conservar a relação profunda com aquilo que serviu de conexão à transposição da verdade em certitude, isto é, com a romanidade-cristandade.
           A cultura permanece cristã, o cristianismo moderno se esforça por se tornar apto à cultura, esse cristianismo tão afastado daquele do feudalismo. O verdadeiro, em todo caso, é agora o certo como o real. A independência entre fé e razão levou a que não se precisasse mais da fé (crença) para que o ser humano se comportasse frente ao real: Deus e o mundo que Deus criou. Agora a razão, já se concebe em termos de “luz natural”, isto é, a conscernência da razão do ser humano, como criatura, a toda criação, como natureza.
           Desde a configuração inaugural da metafísica, a transposição do Ser como presença ou constância da presença, acarreta a compreensão do Logos como enunciado, abrangência que é razão pois o que o enunciado enuncia é a essência ou a forma inteligível. Heidegger assinala, concomitantemente à mutação da energeia como ser em ato, a compreensão da ousia como substância, e de Ypokeimenon (substrato) como subjectum.
            Vimos que a modernidade transpõe subjectum como sujeito (egoidade). Mas o que se anuncia com Descartes, no rumo dessa transposição, deve liberar progressivamente a razão, de modo que o momento cartesiano apenas introduz o que só se revela como desenvolvimento ao longo dos tempos modernos.                
            Assim, o que o cartesianismo libera é a fundação moderna da representação pela qual o sujeito se estabelece fundando, ele mesmo, o certo dos entes objetivamente presentes na evidência.
           A represent-atividade garante a efetuação dos entes frente à subjetividade que se comporta no Cogito de modo a estar se pro-pondo como o real no seio da realidade. Contudo, o que Descartes deixa sem esclarecer é o modo pelo qual o estar-frente-a, do sujeito com relação aos objetos, no percipere, se deve garantir enquanto o se pôr, por si mesmo, que é o efetuar da realidade pelo real, o agir eficaz do ente cujo efeito é realidade. Heidegger vai localizar então a tarefa de lidar com esse problema como tendo sido proposta pela filosofia de Leibniz.
            A questão se enuncia a partir da identificação entre a substancialidade da substância, ou a propriedade de ser do ente, e a re-presentação. Essa identidade deve estar caucionada por alguma determinação fundamental do ente, a saber, a unidade pela qual, metafisicamente, tanto o ente é, na sua determinação enquanto isso ou aquilo, quanto ele é consistindo apenas nele mesmo, pois enquanto substistente é uno.
           Ora, a mônada, conforme conceituada por Leibniz, é essa unidade que deve por sua plenitude garantir o unívoco da Ousia. Pois Leibniz pretende instituir como o mesmo o fato de ser um ente e o fato absoluto de ser. Esse mesmo já está garantido e fundado no re-presentar. Agora o caráter do re-presentar, que ao mesmo tempo implica (perceptio: recolhe e simplifica), e explica (expressio: põe à frente, des-simplifica), é aquele portado pela unificação.
           A unificação do re-presentar pela mônada é percepção. A percepção para Leibniz, conforme Heidegger, é algo que comporta a transição. Cada estado da mônada constitui uma transição para outro estado, sendo sempre estabelecido pelo representar.
            Mas se a perceptio é expressão do múltiplo no simples (uno), expressio sendo re-presentação como des-simplificar do uno, que se desdobra no recolhimento como um, isso se desenvolve apenas enquanto unificação a partir de si da mônada que enquanto “o” uno é unificante. Em outros termos, o que a mônada se põe à frente, que em si é múltiplo, a mônada o põe como uno, isto é, re-presenta. Mas isso que é unificante é a própria existência da mônada enquanto Realidade de sua unidade.
          A mônada é autômato espiritual, substância simples, Enteléquia, essas expressões que Leibniz utiliza para aquilo que Heidegger designa integralidade, atualidade (realidade). A mônada é o espelho vivo que agindo, isto é, representando, expressa o universo múltiplo como algo que nela e por ela aparece como uno (formação do  mundo dado). Conforme Heidegger, vale plenamente para Leibniz a equivalência da metafísica moderna: subjectum = percepção = represent-ação = actualitas.
           Ora, o que faz a percepão transitória é o fato de que o mais íntimo à mônada é a apetição. Percepção-apetição é o agir eficaz da mônada unificando o mundo como Realidade na representação. Assim a representação também inclui o próprio agir unificante da mônada como apetite. O presente cambiante da substância ou mônada expressa sua unidade sendo ao mesmo tempo expressão do mundo. A força (vis) é o princípio interno da substância, aquilo que lhe confere unidade, essência original da propriedade que pertence ao ente como seu ser.
          Força ativa originária (vis primitiva activa) que é a do ser vivo, puro agir eficaz do ente real que re-presenta unificando a realidade enquanto mundo, mas essa unificação correspondendo ao incessante transigir da apetição. A representação é agir eficaz mas essa ação deve ser pensada como progressão contínua, expressão, não como simples reflexo. A força unificante que corresponde ao ser da mônada age, incessantemente, ela mesma unificando o mundo, e daí a necessidade de Leibniz afirmar o infinito, o imperceptível, no âmbito mesmo da percepção.
          A afirmação de dados inconscientes presentes na alma, relacionada estreitamente à concepção de infinito, desempenha um papel relevante em vários pontos de argumentação do leibnizianismo, aqui sendo importante realçar aqueles referentes ao inatismo e à teoria da percepção.
          As idéias inatas estão na alma como verdades necessárias. A alma é fonte dessas verdades, como as idéias do ser, de possível e de mesmo. Ora, na confrontação com o empirismo de Locke, Leibniz vai afirmar que a alma pode ter idéias de que não se dá conta, esse o sentido restrito de "inconsciente" quanto a isso, o seu conhecimento estando envolvido no auto-conhecimento, como é o caso quanto ao ser e à substância, noções que se apresentam na idéia que fazemos de nós mesmos. Como se sabe, Locke escarnecia dessa suposição inatista por que por ela seria preciso afirmar que temos ideias não atuais ao pensamento: seria afirmável que as temos quando adormecidos? Os loucos e as crianças tem essas mesmas ideias que os adultos e os matemáticos?
          Aqui a argumentação de Leibniz  na defesa do inatismo me parece portar ainda, como no cartesianismo, sobre a evidência, pois a análise da idéia consciente que envolve noções inatas sempre se faz no âmbito da clarificação.
           Mas não que o argumento dependa da evidência, pois trata-se sempre, para Leibniz, de modo não idêntico a Descartes, de postular a evidência mesma na relação com o infinito, logo com o imperceptível. Assim quanto se trata de compreender a percepção, Leibniz utiliza a noção de limiar. O exemplo é o som das ondas do mar. Na realidade ouvimos o som de cada minúscula onda, mas só temos consciência do som do conjunto. As mínimas percepções não conscientes (imperceptíveis), que vão ao infinito, se acumulam formando a memória. O próprio indivíduo é pensado como conjunto de estados anteriores em conexão com o estado atual de modo que Deus poderia ler na mônada a seqüência de todos os estados registrados na sua memória.
            Heidegger observa então a novidade do leibnizianismo, em relação a Descartes, mas de modo que Leibniz como que completa os alicerces cartesianos na fundamentação dos tempos modernos. Pois ao invés de uma extensão a que o pensamento se aplica do irredutível exterior, a vis ativa  ( a força ) é plenamente passível de abarcar tanto o sujeito quanto o objeto, no mesmo processo expressivo pelo qual ocorre algo assim como o mundo.
           A apetição representante, conforme Heidegger, torna-se a causa enquanto agir eficaz da substância que efetua a realidade no sentido da atualidade. Mas isso de modo gradual, transitivo, conforme a tendência apetitiva. Ora, as substâncias vêm no plural, cada mônada expressando o mundo conforme o seu ponto de vista que ilumina o universo no intervalo de sua amplitude variável. Não obstante a pluralidade ou gradação, mesmo da infinitude, com que a mônada tende para o mundo da multiplicidade, Heidegger localiza o que há no pensamento leibniziano de autenticamente metafísico.
             A mônada ou substância se estabelece, enquanto ente, no persistir da presença, a força – ser dos entes que persistem em si. O fato desse quod antepondo-se ao nada se precisa enunciar como Razão: por que há algo, não simplesmente o nada? A pergunta já supõe que o que quer que esteja havendo, está ao mesmo tempo insurgindo-se contra o nada. Heidegger localiza a Razão Suficiente como resposta de Leibniz à indagação sobre o haver, de modo que a fundamenteção da sublevação contra o nada se estabelece pelo grande princípio de razão, metafísico-moderno.
              O ser é o unificante efetuar do que se tem em si mesmo, é a apetição desse si mesmo produzindo-se por si mesmo. Todo o possível se relaciona à existência mas toda existência, enquanto subjectum – fundamento é a mônada (ego) que envolve a razão suficiente de todo existir. A apetição, que distingue seu ser como vis, é potência, já assim coextensiva à existência. Mas o ser necessário, o ente supremo, Deus, é concebido nesse esquema de modo ontológico, como causa de todos os outros entes.
           O exame das filosofias de Descartes e Leibniz, conforme Heidegger, mostra que se não são, evidentemente, redutíveis um ao outro, ambas se movimentam no mesmo campo antropo-metafísico moderno. Ora, o que distingue a filosofia de Leibniz, quanto a isso, é ter tornado o papel da subjetividade bem mais necessário na relação da representação. Isto é, de algum modo, como se Leibniz houvesse resolvido de maneira mais abrangente a irredutibilidade que restava em Descartes entre as substâncias (“res”).
            Ora, aqui se coloca a questão fundamental da leitura histórico-filosófica de Heidegger, a saber, o problema da articulação do que há de irredutível no múltiplo com o que permanece o Mesmo no uno. Assim, se a produção filosófica moderna não se deixa reduzir à unidade, não deixa de apresentar esse a priori como o mesmo visível, por exemplo, entre Leibniz e Descartes, enquanto o postulado metafísico moderno que veio a ser a Subjetividade. Heidegger vai opor, para tornar isso mais explícito, os dois conceitos de "subjetividade" e "subjetidade" – subjectivité e subjectité, conforme a tradução de Klossowski.
          Não creio que a partição de Foucault entre subjetividade e subjetivação se reduza a essa oposição lançada por Heidegger. O que permanece em comum nessas duas vias é que a subjetividade se situa apenas como um modo, seja da subjetidade de Heidegger ou da subjetivação de Foucault. Contudo, há importantes contrastes a enfatizar entre ambos.
           Inicialmente a questão periodológica. A subjetividade é o modo exclusivamente moderno da subjetidade, e o que é moderno para Heidegger abrange, desde Descartes, o destino metafísico da história do ser que inclui Nietzsche. Já a subjetividade de Foucault é a dobra de subjetivação que constitui a forma-homem da contemporaneidade, pós-revolução francesa, impondo, por exemplo, no campo do saber, o postulado antropológico. Segundo Foucault, só há subjetividade na plena vigência disso que se convencionou designar "ciências humanas", como o produto que elas postulam real, sendo, porém, o que não havia antes no pensável ocidental, não obstante elas não se darem conta disso no seu discurso. 
           Mais fundamentalmente a questão conceitual. A subjetidade do heideggerianismo é a constituição do subjectum, no sentido de ypokeimenon ou substrato, mas não implicando que essa determinação do Ser a partir do subjectum seja por um ego. A subjetividade ocorre como preenchimento moderno do subjectum enquanto sujeito ou egoidade. Quanto a Foucault, penso que se pode afirmar ser a subjetivação a dobra que constitui o si sempre numa relação constitutiva com o desejo assim como ele é disposto numa determinada sociedade, de modo que se pode compreender a subjetividade como esse modo específico de “dobrar” o inconsciente privado pelo dever ser social. A subjetividade constituir a sexualidade que veio a ser a contemporânea, a partir das ciências humanas.
           Retornando a Heidegger, o ponto importante a destacar é que ele situa em Leibniz o momento em que a metafísica moderna logra fazer o termo subjetividade expressar a essência do ser em sua plenitude, pois com Leibniz não se trata apenas de “penso” mas do appetitus como traço fundamental do caráter representativo do ser. Mas como creio, o que se dá como apetite à mônada é o mesmo que o dado ao penso, isto é, evidência, facticidade. Para Heidegger, na apetição há preponderância da vontade no fundamento metafísico da modernidade. Assim a subjetividade unifica o campo da metafísica moderna, esse lugar do Mesmo como história unitária do Ser: Antropomorfia.


             
  2 ) O Lire le capital e A transição manufatureira
 


A história enquanto ciência parece ter se definido, para nós, desde Marx, conforme o Lire Le Capital (Althusser, L. et alii).  Trata-se de uma problemática, sendo que os problemas se propõem em torno de certos conceitos, isto é, de certas definições. O Lire le capital oferece assim, de modo eminente, um aporte epistemológico inseparável da  instituição dessa ciência da história. O objeto de uma ciência se põe a partir da definição do objeto. Logo, uma revolução científica é o mesmo que uma transformação conceitual.
         Um conceito novo, um objeto novo, acarretam ao mesmo tempo uma problemática e uma terminologia que lhe correspondem. Ora, esse aporte epistemológico pode nos fazer lembrar o racionalismo aplicado de Bachelard, aquilo que Foucault designava história epistemológica, buscando a linha quebrada (descontínua) da  formação dos conceitos.
Mas o texto inaugural quanto a isso, como pode mostrar um exame do Lire le capital, era  já a apreciação de Engels sobre a revolução epistemológica devida a Marx, que põe o paralelo com a superação da teoria do flogístico na química.
           O oxigênio não foi a descoberta de Lavoisier. Priestley e Scheele o haviam encontrado antes. Mas sempre tentando inseri-lo na coerência de uma explicação da combustão pelo escape do flogístico, não conseguiam compreender o alcance da descoberta. Lavoisier, a quem Priestley comunicou a existência desse “mistério”, no entanto, compreendeu que era toda a teoria química que precisava ser transformada a partir desse novo elemento, como chave da explicação da combustão por sua combinação com o corpo.
           Algo semelhante ocorre com Marx. Pois só ele compreendeu a mais-valia como chave da economia, ao invés de, como os economistas clássicos e os socialistas, seus predecessores, apenas  algo relativo à repartição, que uns consideravam natural e outros injusta, do produto do trabalho.
         Mas era a própria compreensão do trabalho que a mais-valia devia deslocar, já que ela não incide sobre qualquer trabalho, mas apenas sobre o que se pode designar sobre-trabalho, de modo que por aí também se descobre que a teoria não lida com o trabalho tomado empiricamente, mas com o conceito de força de trabalho.
          Nesses dois casos, da química e da economia, um conceito que não se pode considerar novo desloca uma teoria prévia apenas quando se aceita que o que nele se revela inexplicável só se deve às insuficiências daquela teoria. Essa insuficiência se mede pela incapacidade de uma definição do objeto novo, por parte dos que o descobrem, no sentido preciso de que ela impede essa definição. Encontrando o real papel que o objeto desempenha, ele se torna realmente “novo”, agora enquanto objeto científico.
           O que Althusser ressalta a partir desse texto é que essa “teoria geral da história das ciências(2), compreensão das mutações realizadas por obras fundadoras como as de Lavoisier e Marx, que só o são por exibirem uma ruptura com seus necessariamente existentes predecessores, não apenas encerra um projeto mas é essencial à inteligibilidade, estudo ou leitura de Marx. Isso por que essa teoria é a via, designada por Engels, que conduz à filosofia “fundada por Marx no ato mesmo de fundação da ciência da história”.          
         Althusser nesse ponto não questiona que a história fosse fundada só aí - quando sabemos que ela já está em marcha como ciência desde o Romantismo. Mas justamente, ele manejou o a priori epistemológico do objeto para desfazer a pretensão de qualquer outro sentido da história como ciência, que não esse, o marxista. Até aqui, nessa argumentação, encontramos um heteróclito de ideologia e factualidade, chamado história. Só com Marx a história foi reduzida ao estatuto de definições ou objeto conceituado. Como se sabe, Althusser na verdade nega o marxismo como um historicismo. A ciência da história é a ciência que permite discernir o real e o ideológico na história, não a história ela mesma como um discurso autônomo que ainda fosse científico.
           Mas esse é também o originário situar da cientificidade em geral. O marxismo fornece antes de tudo, uma epistemologia, ele se exerece como crítica epistemológica do que é pseudo-científico, por um lado, enquanto produz um objeto até aí inconceituado, a mais-valia e o sobre-trabalho. Ao mesmo tempo ele o faz como aquilo que ele enuncia que a ciência é, revolução teórica, transformação em nível de objeto. Ou seja, a revolução científica e a crítica epistemológica marxistas não são empiristas, conforme Althusser, não resultam apenas do seu feito, são estruturais como esclarecimento do que está implicado em seu fazer.  
             Aquilo que funciona no interior da teoria de Marx como reversão, por exemplo da dialética idealista de Hegel, se reflete no exterior da teoria como acontecimento fornecendo-se assim como condição da história teórica, isto é, da historicidade da teoria, doravante a se compreender por conceitos como fato ou acontecimento ou revolução teóricos.
              É interessante notar que não obstante o mundo que separa Marx de Heidegger, ambos tem uma relação com o conceito de história que poderia ser interpretada estruturada de um mesmo modo. A história é um trompe l'oeil - metafísica ou ideologia. É aquilo que ela oculta, mais precisamente o que se oculta no seu desenrolar, ou seja, o pensamento originário não-metafísico para Heidegger ou a luta de classes para Marx, o que permite lê-la naquilo que ela na realidade desvela tanto mais os acontecimentos que a constroem são o ocultamento dessa realidade subjacente.
            Além disso, Heidegger afirma efetivamente a ligação da dominação/alienação do homem com a história do ser, enquanto é isso a metafísica, a coisificação das relações humanas que, grosso modo, também define a ideologia em Max. Mas para este, o decisivo ocultado estruturante da história mas que não é narrado em nada do que a história conta, é a luta de classes, o determinismo econômico, que para Heidegger seria mais uma figura da metafísica, já que pretendendo-se a objetividade em si do ser do homem.      
               Assim, para Marx, o fim da história é pensável como derivado de um fazer humano, a sociedade sem classes a ser concretizada pelo proletariado, ainda que tal futuro seja dialeticamente disposto pelo determinismo da produção, não pelo desejo subjetivo. Para Heidegger, o destino da história do ser já está cumprido formalmente como realização total da objetividade na subjetividade desde Nietzsche, mas factualmente isso só instaurou o aval do infindável ao ocultamento cujo efeito é a onipotência da sociedade técnica - industrial capitalista -  e se irá ou não haver ainda uma reversão hístórica tal que do ocultamento do ser se retorne à origem da sua livre expressão, logo, fim da história do ser,  isso não pode ser decidido pelo homem, nem pode ser afirmado pelo fato de haver pensadores privados e poetas que o compreendam e o desejem.
              Essa coincidência, a meu ver, não é fortuita, mas deriva como efeito da mutação sociológica das ciências humanas que tem lugar como pós-romantismo, desde o positivismo, quando a história deixa de ser o que explica o fenômeno social como formação das culturas singulares, para ser o que precisa ser explicado por um parâmetro universal do seu desenvolvimento no tempo através de todas as singularidades. Somente na pós-modernidade essa universalidade - funcional ou estruturalista - está  novamente sendo questionada e é por isso que a releitura do romantismo na atualidade se mostra tão oportuna.
          Essa releitura do romantismo seria bem inserível nas propostas recorrentes de releitura crítica da própria história das ideias entre modernidade e contemporaneidade, focalizando o  vínculo de modernidade e  dominação: por exemplo, releituras feministas, ou étnicas, de minorias culturais  e pós-coloniais, etc.. Mas o paradoxo é que tanto Marx quanto Heidegger estavam justamente procedendo releituras críticas dessa história oficial da modernidade como emancipação.
         O que torna o paradoxo apenas aparente é que a crítica deles continha um parâmetro universal que - aí, sim, o paradoxo real - como crítica do idealismo do universal não podia deixar de estar recirculando o axioma do Saber Ocidental como locus da enunciação do universal quanto ao Ser, sua história metafísica ou ideologia. Esse resultado não é evitável, como aquele que se segue de qualquer "meta-relato" pois, na verdade, nada garante a originareidade dessa origem posta como tal apenas como parece situável fora da história e em relação a que a história tem o seu começo ao recalcar. O platonismo pode não ser uma mutação na história do mundo, mas apenas a repetição da dominação de classe - aristocracia ou império. Por outro lado, a dominação de classe pode não ser a estruturação única de algo sequer pensável como história do mundo.
          Justamente é o resultado que se está recusando na pós-modernidade, enquanto o pós-estruturalismo, entre ambos os aportes, parece pender para uma insuficiência da sua ruptura uma vez que não chegou a recuperar a autonomia da história como aquilo que não se confunde com a narrativização oficial do progresso, e reconstitui, inversamente, o que foi calado pelo imperativo homogeneizante da narratividade fenomenicamente redutora da história como ciência ocidental, desde o positivismo como recusa do Romantismo, mas de fato, antes do Romantismo, não há a problemática da história.
            Aqui, no entanto, a crítica  pós-colonial  é o que se mostra proeminente, porque a homogeneização/narrativização da história só decorre como uma forma de resolução do ocidente em termos de centro geopolítico da dominação internacional do capitalismo. Se a alteridade da cultura de margens precipita o cenário contemporâneo e as ciências do humano, desde o positivismo essa alteridade se reduziu como objeto da dominação cultural ocidental definido como o lugar da enunciação do destino - ou verdade - do ser.


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            Conforme Althusser, a mais-valia é a chave do “conjunto da produção capitalista, não se reduzindo à simples constatação de um fato econômico”. Mas por aí, novamente, a história se revoluciona já que algo como “conjunto da produção”, nesse ponto apenas considerado no sentido da economia capitalista, vai desdobrar o conceito mais geral de "modo de produção" a comandar toda a inteligibilidade do social.
Fornecendo-se um objeto novo à economia política, ao mesmo tempo se transformou a história e a epistemologia, de modo que me parece se delinear no lire le capital seções, níveis de uma problemática relativa à episteme, no sentido de Foucault, pois não é apenas uma troca entre dados que se equivalem, o que está em jogo entre o antigo e o novo, e sim um novo regime do objeto. A crítica da Economia Política pré-Marx envolve sua pretensão a existir como função de algo dado no real enquanto “domínio dos fatos econômicos” quando se trata de denunciar o dado como sendo relativo ao primeiro gênero de conhecimento assim como conceituado por Spinoza, o que pertence à imaginação, à ideologia, não à ciência.
Aqui o sentido de primeiro - que é o mesmo das primeiras intuições criticadas em Canguilherm - não é ser o mais básico ou o mais simples, e sim o de ser o que se atém somente à sua primeiridade, nunca é, por que recusa ser, o que deve submeter-se à prova, à inquirição e à demonstação de sua validez. A crítica do conhecimento muito tem conceituado essa primeiridade na sua determinação pré-(não)-científica, mas aqui cabe registrar a definição de Spinoza pelo que tratam-se de impressões que recebemos do mundo mediadas apenas pelo que parece a nós como conveniente ou inconveniente somente em relação a nós mesmos.
  Há, portanto, um nível de nossa interação de sentido com o real, em que é inevitável o primeiro gênero de conhecimento, mas a sobrevivência da humanidade depende de se elevar ao segundo gênero, onde se trata do conhecimento científico que reporta a conveniência ou inconveniência das coisas entre elas mesmas, enquanto o conhecimento real torna-se uma via de acese espiritual, como o nível da visão das essências cuja informação enquanto algo existente só nos é apresentada pela sã filosofia.
  Já o que não se confunde com esse "primeiro", com o dado apenas por si, em Marx, é a concepção de ciência, e Economia Política enquanto ciência, como construção “do conceito verdadeiro do objeto” , conforme o lire le capital. A mais-valia, como conceito, objeto da Economia Política, atua como definição de condições e limites que permitem obter fenômenos homogêneos e mensuráveis – lucro, renda, interesse – que se tornam assim mensuráveis como formas derivadas da mais-valia, ela mesma não mensurável.
             Se a economia clássica, isto é, nesse sentido, burguesa, não põe o conceito como diferencial dos fenômenos, ela não os toma como fatos sem reportá-los, contudo, também, a um plano, aquele da “esfera das coisas”, conforme a expressão ingênua de Hegel, a produção e distribuição de objetos destinados a satisfazer necessidades materiais, logo, isto que Althusser relaciona a um princípio antropo-ideológico, o ser humano como homo oeconomicus, como sujeito de necessidades.
            Princípio sempre permeável ao investimento de atributos da moral ou da religião que normalizam o plano neutralizando as contradições, pois tudo se pode explicar pela harmonia, pela providência, sendo o “tudo” que se trata de descrever, e tratado justamente como esses dados que, na prática, funcionam.
           Althusser estende as conseqüências epistemológicas dessa compreensão do processo científico. Engels, que tão bem soube ver o alcance da revolução epistêmica de Marx, permaneceu “empirista”, ou seja, identificando na prática “objeto de conhecimento” e “objeto real”. Althusser se coloca assim mais próximo de Lênin, do materialismo e do empiriocriticismo, que prevê o “aprofundamento incessante do conhecimento do objeto rel pela transformação incessante do objeto de conhecimento”.
O estabelecimento de uma ciência não pode mais ser visada como a instituição de um conjunto de dogmas acerca de um objeto real. Ele se relaciona, sim, de modo necessário, com a “forma contínua e progressiva” da transformação do objeto “de conhecimento”. Mas tampouco a história pode ainda se propor como narrativa de fatos puros, ao sabor da contingência. Pois ela deve supor a posição do conceito que permitirá inserir – ou mais precisamente avaliar – os fenômenos na inteligibilidade já proposta assim como científica, não ideológica.
Essas observações de Althusser no texto “O objeto do Capital” precedem a reflexão de Balibar sobre o conceito de modo de produção. Antes de examinar esse conceito, considero interessante comparar esse princípio antropo-ideológico althusseriano com o postulado antropológico foucaultiano. O que está no foco do paralelo é a relação que cada um circunscreve entre o seu princípio ou postulado, seja com a história, seja com a economia.
Como já vimos, após o período  moderno Foucault designou instalar-se  o que chamou duplo empírico-transcendental, instituindo ao mesmo tempo o postulado antropológico que definiria a epistemê moderna. Aqui o antropológico não se refere, como em Althusser, ao plano extra-teórico, ingênuo, das coisas, sem ao mesmo tempo lançar o humano como posição fundante de sua própria finitude ao modo do suposto objeto privilegiado do seu discurso assim chamado científico-humano (ciências do homem). Por outro lado, isso é decorrente da emergência das ciências reais, estruturais: linguística, economia política e biologia.
Na espessura histórica, em que se desenvolve o transitório da existência, consiste ao mesmo tempo um razão de ser que é de tipo não transitório, o transcendental que ordena o espaço dessas novas empiricidades, precisamente o espaço em que a Economia tem por objeto o trabalho, e só o tem por deslocar o sentido prévio que o caracterizava, por posiciona-lo como objeto novo, também para Foucault.
Mas  Economia "clássica" para Althusser é pré-Max, portanto incluindo Ricardo. Para Foucault ela é pré-Ricardo, não sendo rigorosamente Economia, mas análise das riquezas. A Economia "política", que Foucault vê surgir com Ricardo, se instala por essa causalidade linear relacionada às condições de produção, em que o trabalho surge como determinante enquanto fator de custo.
Se o homo oeconomicus se constitui pela necessidade, sua razão de ser é agora finitude – o trabalho como enfrentamento da ameaça representada pela escassez. Mas então a produção não se propõe mais como um quadro harmônico onde todos os elementos estão desde sempre dispostos. Inversamente, ela é sempre o retomar do mesmo enfrentamento da natureza ou meio escasso. Uma historicidade se introduz na economia, como causalidade linear, enquanto horizonte de anulação da diferença entre a produção e a escassez, de modo que no final, ou só haverá trabalho que a supre pela eliminação progressiva de todo excesso populacional relativamente à oferta de produtividade do meio natural (Ricardo), ou esse  fim da história se cumprirá quando o princípio de inteligibilidade que a conduz se vir revertida pela evolução instauradora das novas leis de uma economia finalmente comunizada (Marx).
              Em todo caso a episteme moderna põe uma relação fundadora entre antropologia, história e economia, por aí esta é política, segundo Foucault, no mesmo passo em que ele empurra a história como ciência autônoma para um estatuto vago no quadro de todas as ciências, e o que não é economia política, como a antropologia, para aquele estatuto simetricamente oposto ao da ciência real, o das pseudo-ciências humanas. Entre as três posições, paira o postulado antropológico como a priori histórico derivado da incapacidade de explicação totalizante das ciências reais e dação dessa tarefa às ciências humanas que surgem somente para cumpri-la não obstante isso ser inexequível, apenas derivado da miragem antropológica que corresponde à exigência da explicação de mundo.
            Mas para Althusser o princípio antropológico não atua como postulado epistêmico, e sim como correlato idealista de uma Economia clássica no sentido de não-crítica, ante-marxista, e nesse sentido idealismo e realismo ingênuo como que se equivalem na consideração do fato como dado.
              Assim quanto à produção, trata-se em Althusser de mostrar que Marx não a põe numa relação direta com a necessidade, mas de um lado, as necessidades mesmas se determinam pelas formas de produção e de outro, a produção não se faz só pelas necessidades mas principalmente pela reprodução das condições de produção.
             À antropologia não se reserva a consideração das necessidades, ela se põe pela economia e só nesse sentido caberia uma análise antropológica que teria que se determinar ela mesma estruturalmente, não antropologicamente.Pois se a causalidade se desloca, também aqui, ela atua agora como causalidade estrutural.
              Foucault situa o pensamento de Marx no elemento mesmo dessa episteme moderna comandada pelo postulado antropológico (duplo empírico-transcendental, analítica da finitude). Assim Foucault recusa que o marxismo tenha sido epistemologicamente revolucionário, ainda que a Economia política não seja ciência humana, e sim estrutural, pois, como vimos, para ele a Economia Política começa com Ricardo, havendo ainda a figura transcicional de Adam Smith. Já Althusser propõe o marxismo como uma revolução epistemológica na ruptura com o princípio antropo-ideológico que ligava essa economia de Smith e Ricardo à subjetividade e seus correlatos como finitude ou necessidade, mas ruptura que só se institui no movimento pelo qual o marxismo de instura como transformação propriamente epistemológica.
           A meu ver, Foucault é aí de fato muito ambíguo, pois sua definição do marxismo como dentro da economia política, reserva a esta a posição de ciência, não de representação, mas se há uma crítica do marxismo na sua obra, ela repõe o caráter antropológico das premissas de Marx.
            Althusser argumenta que, em Marx, são as relações de produção que permitem compreender as posições do sujeito, não o inverso. Mas permitem também colocar o problema não visto até então, por exemplo por Ricardo, das condições do trabalho, ao invés de considerá-lo geralmente como fonte de toda riqueza.
              O que se põe nessas relações não são seres humanos puros, nem sua finitude nem sua contingência, mas agentes de produção. Finalmente, o que faz desdobrar a produção em sociedade, a produção em modo de produção é a Combinação, “Verbindung” nos termos de Marx, entre “um certo número de elementos pertencentes seja aos meios de produção, seja aos agentes de produção”, já na expressão de Althusser.
         A Verbindung, combinação de elementos ou estrutura da produção, efetuando-se sempre conforme modalidades definidas, Marx poderá fornecer a inteligibilidade histórica a partir da maneira especial de operá-la em cada época econômica da estrutura social – ou conforme o texto do lire le capital, “a forma econômica específica pela qual o sobre-trabalho não pago é extorquido aos produtores imediatos, determina a relação de dominação e de servidão tal como decorrem imediatamente da produção mesma, e reagem ao mesmo tempo sobre ela de maneira determinante”.
A forma de estruturação da obtenção de mais-valia  permite compreender a história. Quanto a isso é interessante reter a expressão de Marx. Pois se ele afirma no Capital VI, 38 que a estrutura social “passa” por épocas econômicas distintas, o que se depreenderia mais propriamente do lire le capital é que as estruturas sociais se determinam elas mesmas irredutivelmente enquanto modos de produções irredutíveis. E já em Capital VIII, 170-3, se é sobre a produção “que se funda inteiramente a estruturação da comunidade econômica”, é na “relação dos proprietários dos meios de produção com os produtores imediatos” que se encontra o fundamento oculto da construção social – logo, da forma política da soberania.
Poder-se-ia assim autorizar uma leitura das estruturas sociais irredutíveis, enquanto modos de produção, ou inversamente, os modos de produção são as variáveis de uma só estrutura que é a sociedade em geral?
Seria então oportuno checar o texto de Balibar “Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico”. É interessante notar que essa questão está de certo modo implícita no modo como Balibar inicia o texto. Assim de imediato a resposta seria negativa para a redução da estrutura social à combinação específica de  um modo de produção, pois o modo de produção é apenas “aquele que define, no seio do todo social complexo, o objeto parcial da economia política, isto é, no sentido da prática econômica da produção”.
Mas desse modo não se pode evitar o problema da articulação sobre outras práticas. E se nesse início a questão não se enuncia por Balibar de modo explícito, sente-se que ela é de modo eminente uma questão histórica, “a” questão da história. Ora, posteriormente Balibar a enunciará explicitamente, no contexto da indagação sobre o objeto construído da história pelo marxismo.
  Examinaremos então como ele propõe o encaminhamento da questão. Em todo caso, essa questão permanece como fio condutor do texto, já nesse início tratando-se de refletir sobre a “teoria abstrata da história em Marx”, sublinhando a dificuldade do tema.
O que Balibar afirma é que Marx começa por transformar a história em ciência introduzindo as duas formas de contradição entre classes, isto é, produzindo as noções de luta e de antagonismo. Os termos da luta são todos redutíveis à opressão (opressores e oprimidos), logo possivelmente distribuídos pela sociedade. Os termos do antagonismo, funcionando como essência da luta, não são dados no sentido individual mas exercem-se apenas no interior da base econômica, ao nível das forças produtivas e das relações de produção.
         A ciência da história incide sobre a sociedade pensada como estrutura, logo articulando-se tanto na diacronia das épocas sucessivas quanto na sincronia das práticas sociais. Sincronicamente toda estrutura social é uma articulação de três níveis: base econômica, superestruturas jurídica e política e formas de consciência social. Assim se o antagonismo atua na base econômica, a diacronia vai estender a história conforme as épocas “da estrutura econômica”, isto é, conforme o antagonismo que provoca a mutação, o qual se institui estruturalmente como invariante.
O que se verifica descontínuo são os estados da estrutura conforme a ordenação de sua invariância. Mas esses estados são os modos de produção. Assim temos que a sociedade é o modo de sua estruturação, entre os três níveis, conceitualmente; mas efetivamente ela se presentifica na irredutibilidade da produção como invariância de um certo estado atual, logo determinando-se a história “da” sociedade como sucessão descontínua de modos de produção.
Creio que na efetividade se pode assim supor uma história “das” sociedades, mais do que a de uma sociedade que simplesmente muda através das épocas. Mas isso é o que está formalmente negado na formulação de uma estrutura social dotada de invariância tal que subsume todas as decorrência de suas mudanças possíveis. O que se está delienando, a meu ver, é  uma teoria em que se precisa compreender a delimitação de dois aportes, o virtual (social) e o atual (modo de produção), derivados de uma mesma causalidade que é a estrutura.
O que mais se deve enfatizar aqui é que a natureza invariante do atual, determinando-se pela forma do antagonismo, permite ao mesmo tempo pensar a história como luta de classes, isto é, permite à história ser ciência no mesmo lance em que põe a inevitabilidade do virtual – termo que em Marx se traduz por “Möglichkeit”, o estado “virtual” dos elementos tomados na exterioridade do modo de produção em que eles se determinam como fatores. Ao mesmo tempo, a história foi de fato reduzida à estrutura. Não há história contínua, o que é estranho, porque uma história contínua deveria pertencer ao virtual. Mas compreendemos que não ocorre isso, já que o virtual é apenas causado na sua dualidade ao atual onde o histórico como o que se subtrai aos relatos circunstanciais ideológicos da´"história" suposta contínua, é apenas o atinente à descontinuidade dos modos.
O atual da combinação supõe esse virtual dos fatores dispersos, tomados “fora” dessa atualidade. É exatamente o sentido que Balibar confere a este texto em que Marx utiliza o termo (Capital VI, 38-9). Balibar atribui a essa posição do virtual o sentido de um “estruturalismo perfeitamente insólito” depreensível diretamente dos escritos de Marx.
Sendo os fatores da combinação o trabalhador, os meios de produção (objeto e meio de trabalho) e o não-trabalhador (capitalista) que se apropria dos meios de produção e do produto do trabalho, duas relações devem constituir a Verbindung: a separação entre meios de produção e trabalhador, que subentende a propriedade desses meios pelo capitalista; e a apropriação da natureza pelo homem, relação mais básica, consistindo na apropriação dos meios de produção pelo produtor no processo do trabalho. Enquanto aquela relação se designa como pressuposto do modo de produção capitalista, esta é constitutiva de todo modo de produção.
É o trabalho mesmo que por seu meio institui uma relação de apropriação dos recursos naturais. Na medida em que o capitalismo organiza a produção, ele se torna tão fundamental a essa relação de apropriação sobre a natureza quanto é o fator que determina a relação de propriedade sobre os meios de trabalho dos quais separa o trabalhador. Essa sobrefunção do capital impõe a divisão do trabalho em duas frentes: divisão ao mesmo tempo técnica e social.
Por esse meio se entrelaçam as relações que compõem a Verbindung como a estrutura de um modo de produção enquanto combinação específica dos seus elementos. Ao invés da totalidade ser simples, como todo linear de suas partes conforme a concepção de Hegel, ela é complexa, estruturação de vários níveis autônomos conforme a visão de Marx.
A combinação da estrutura como Verbindung, pressupõe assim as duas relações – de propriedade e de apropriação – que se exercem sobre o fator do não-trabalhador (capitalista) na sua relação com os outros fatores (trabalhador e meios de produção). Resta o que não pertence à Combinação ou Modo de Produção, como aquilo que se mantém numa autonomia relativa, isto é, as superestruturas jurídica e política e as formas de consciência social. Assim a questão do direito, sempre desviado em relação ao costume, só se põe corretamente para Marx pela contradição instaurada na sua não-correspondência relativamente à produção.
A consideração da estrutura desempenha um papel gerativo pelo qual daí se derivam todas as formas possíveis de combinação, como quadro comparativo das formas dos vários modos de produção que combinam todos os mesmos fatores. E dentre todos estes se deve distinguir os que exibiram alguma vez a efetividade histórica, assim como se pode prever o modo de produção socialista.
Na efetividade os fatores não aparecem como tais, pertencentes a uma estrutura, aos próprios agentes. Os modos pelos quais eles se fetichizam varia conforme o modo de produção considerado. Só no capitalismo, devido à posição da mercadorias, o fetichismo se produz pelo mascaramento da forma da relação social entre classes – extorsão do sobretrabalho sobre o qual incide a mais-valia – que é tomada sob a forma de uma relação entre as coisas mesmas.
Em outros modos de produção, uma instância da estrutura social se determina como ocupando o lugar da base econômica. Assim uma mesma instância representativa-deslocada do lugar da base, para os agentes, determina os mesmo fenômenos de fetichização, onde quer que ocorra.
Marx supõe um estado inaugural da história que seria o da comunidade natural. Aqui as duas relações, de propriedade e de apropriação, estão unidas. Aqueles que se apropriam dos meios naturais são eles mesmos donos dos meios de produção – propriedade coletiva da terra, meios de trabalho agrícola.
O Modo de Produção Asiático (MPA) já institui uma “unidade” como proprietário supremo, o Estado, unidade superior que organiza a apropriação – irrigação, grandes trabalhos, etc. e assim legitimiza de certo modo a propriedade como apropriação do sobreproduto do trabalho. Essa legitimação é o traço comum entre o regime despótico do MPA e o Capitalismo.
No caso do despotismo, a propriedade sendo já concebida como função de uma unidade superior cuja transcendência se traduz pela ordem que institui como sendo imanente ao próprio fazer das instâncias locais ou comunidades particulares, o sobreproduto parece pertencer por natureza a essa unidade que reúne todas as instâncias comunitárias.
O Capitalismo apenas desloca a unidade despótica pelos donos dos meios de produção, assim como as comunidades locais pelos trabalhadores livres. Mas se ocorre esse traço comum básico, tudo o mais não permanece na mesma combinação de fatores. O que se mantém, mesmo assim, como analogia, está se exercendo pela ligação entre as duas relações de propriedade e de apropriação, o que determina um efeito semelhante de fetichização pelo qual o trabalho aparece naturalmente como faculdade do capital ou as condições coletivas de apropriação como obra da unidade superior.
Já o modo de produção feudal, inversamente, supõe relações extrínsecas , a violência ou o direito, para que o sobreproduto tenha que pertencer aos representantes da classe dominante. Pode-se compreender que o modo pelo qual se estabelece a relação de extorsão de uma classe sobre os produtos do trabalho, determina também a forma de mascaramento ou deslocamento da base – a forma política que reveste o Estado como instância de normalização da relação de soberania e de dependência entre as classes. Determina assim a causalidade estrutural
Em todas as estruturas a Economia é determinante nisso pelo que ela determina também qual das instâncias da estrutura social deve ocupar o lugar de determinante na representação para os agentes. No feudalismo essa instância é política. Já no capitalismo ocorre peculiaridade pela qual são as formas econômicas mesmas (interesse, renda, salário) que se representam como transformadas ou fetichizadas de modo que o Estado não precisa intervir nesse sentido, isto é, ele não precisa representar esse papel. O liberalismo é precisamente o deixar fazer do capital pelo Estado que apenas proteja a manutenção das formas dessa relação de base entre as classes.
Após essas considerações, Balibar estabelece um paralelo entre Marx e Freud, de modo algum como correspondência entre os conceitos propostos por ambos, mas como um mesmo tipo de análise – haveria a identidade da função que esses conceitos, em cada caso especificados, desempenham no interior do método. Sem nos deter nos detalhes dessa aproximação, dela retendo apenas o mais relevante para nossos propósitos, torna-se preponderante o trecho sobre “As Formas da Individualidade Histórica” em que Balibar enfrenta explicitamente a questão que propomos no início.
Nos termos de Balibar ela se põe como a da possibilidade de “uma história”, o que só pode ser resolvido pela possibilidade ou não de designar o seu objeto. Mas lembrando que esse objeto não deve ser concebido no exterior de sua formação conceitual e científica, trata-se então de indagar sobre as condições de sua construção.
O termo “análise” aparece como tendo o mesmo papel, tanto em Marx quanto em Freud. Trata-se assim em Marx das forças produtivas mas no sentido de sua variação, do mesmo modo que a psicanálise se constitui reconstituindo a variação das formações de seu objeto produzido, a libido, a sexualidade. Trata-se então, sempre, de uma história das formas sucessivas, da sexualidade ou das forças produtivas.
Mas assim toda “história” seria parcial, pois não ocorre o subsistir do objeto geral, fora de sua atualidade irredutível. Ora, a tarefa histórica da compreensão da Combinação envolve o entralaçamento dos níveis, isto é, envolve não só a compreensão da articulação das relações da base econômica e o modo de deslocamento fetichizante, mas também as séries adjacentes necessariamente limitadas pelo modo de produção. Isto é, histórias que têm seus objetos localizados em instâncias autônomas da formação social, como a história das ciências ou da filosofia.
Ora, nem todas as histórias são possíveis, pois as efetivas dependem, assim como a história dos modos de produção, de que seus objetos sejam constituídos no interior de um combinação estruturada, e Balibar cita aqui o exemplo de Foucault como produtor de “histórias” possíveis, nesse sentido.
Especialmente quanto à história da filosofia, ao invés de uma história dos sistemas, que se concede os fatos das produções dos filósofos como dados, Balibar propõe que ela deveria implementar-se como uma história de conceitos organizados em problemáticas possíveis de se reconstituir numa combinação sincrônica.
Assim creio que os termos utilizados por Balibar – formas diferenciais de individualidade histórica – confirmam a minha concepção enunciada sobre a relação entre a atualidade das efetividades históricas na diacronia, e a virtualidade sincrônica da estrutura. A conceituação de Balibar sobre isso que estabeleço como relação de virtual e atual se expressa pela citação de Spinoza, particularmente a noção de relação entre atributos e modos ou coisas singulares.
          Cabe enfatizar que Marx localiza a atualização do capitalismo na transformação do trabalho que se transfere da mão-de-obra (manufatura) à mecanização (indústria). Assim, o limite da Idade Clássica ainda manufatureira seria, para Marx, a Revolução Industrial.
          Nesse  período moderno que estamos estudando,  teria se produzido a extrema radicalização do método artesanal – unidade entre força e meio de trabalho – sob a forma manufatureira, de modo que até o século XVIII ainda se designava uma “mesma” obra, fosse o produto constituído pela divisão de tarefas como repartição de operações complexas de um mesmo trabalho entre várias pessoas, ou o produto constituído pela reunião de vários trabalhos especializados.
Mas tal designação não se poderia conservar a partir da Revolução Industrial, quando intervém a máquina-instrumento, que transforma a relação produtiva em trabalho socializado onde concorrem a tecnologia e a organização da produção, por exemplo. Poderíamos assim conceituar a era manufatureira como uma transição entre o feudalismo e o capitalismo?
Mais essencialmente essa questão se relaciona com o estatuto das transições em Marx. Ocorre que a transição não pode ser pensada como hiato desestruturado, isto é, não deve ser posta como impensável. Assim as transições são elas mesmas modos de produção, mas em que sentido, se continuam a ser “transições”, se poderia compreender essa afirmação de Balibar?
Nas teorias burguesas aquilo a que se designa acumulação primitiva antecessora e produtora do capitalismo se estenderia como processo natural de sedimentação de recursos concomitante à evolução da consciência social, no sentido da constituição de um direito, correlato à ascensão da burguesia.
Marx considera essa teoria como um mito, memória recuada da forma da propriedade como direito fundando “indefinidamente a apropriação do produto do trabalho sobre a propriedade anterior dos meios de produção” . A questão seria de como se preenchem historicamente as condições de atualização da Estrutura, como se efetiva a atualidade do modo de produção.  A acumulação primitiva precisa ser analisada genealogicamente, de modo a se ver surgirem os fatores que constituem a estrutura do capitalismo.
Não ocorre uma simples acumulação no tempo, mas uma transformação estrutural: trata-se de esboçar primeiro a pré-história do capitalismo, ou seja, as estruturas que lhe são prévias e irredutíveis. Em seguida devem-se localizar os elementos principais da estrutura capitalista, o trabalhador e o capital. Esses elementos não surgem ao mesmo tempo. Eles devém no movimento de evolução da estrutura prévia irredutível, movimento esse que acarreta a obsolescência daquela estrutura, no caso, a feudal.
           Enquanto o trabalhador livre, separado dos meios de produção, surge sob a forma das transformações que afetam as estruturas do trabalho agrícola, como da posse de terras, que se poderia localizar já no “pós-feudalismo” da Renascença, o capital acumulado vai surgir só no período  moderno, em que se desenvolve o capital financeiro sobre o comercial, no interregno entre Renascença e Revolução Industrial.
O encontro desses elementos, o trabalhador e o capital, põe em marcha a estrutura capitalista enquanto modo de produção sem que aquilo que lhe é anterior possa ser visado como redutível a ele, ou retrospectivamente projetado por ele.
A pré-história do capitalismo subentende outros mundos, outros modos de Verbindung. No processo de evolução desse modo anterior preciso que foi o feudalismo, o desenvolvimento pleno das forças produtivas devia conduzir às contradições que se relacionam ao surgimento desses elementos marginais cujo encontro provoca a eclosão do novo modo de produção, a transformação da estrutura. Nesse modo novo esses elementos, ao invés de marginais, são determinantes, mas só o são por estar na dependência da estrutura como seus efeitos, estrutura que esvazia os sistemas que se instituíram no modo prévio e que funciona como conjugação desses elementos, esvaziamento que se produz como esquecimento – ausência de memória que se torna assim constitutiva da história descontínua dos modos de produção.
 Aqui parece-me importante enfatizar que seria precipitado supor que história contínua da sociedade virtual à mudança dos modos, é um sinônimo válido para a história descontínua dos modos, porque se um futuro se prevê como um modo historico por vir, o ideal como socialismo real, este é também um modo, não a sociedade em si. Mas como descontinuidade o que se está construindo não é propriamente a história, e sim o que ambiguamente permite a narratividade como sucessão de modos e destitui a história de validez por não ser essa narrativa a propósito de um objeto, e sim do como do ocultamento daquilo que realmente se descontinua, a forma do antagonismo. Inversamente a afirmar que a Cei implica o fim da história devido à supressão da ameaça do marxismo ao capitalismo, seria mais afirmável um retorno da história como aquilo que no marxismo não existe.
Tornando à questão da caracterização do período moderno em Marx, Balibar nota que a  Manufatura se propõe como forma de transição na qual se verifica a subsunção formal do trabalho ao capital. Só com a indústria ocorrerá subsunção real. O que se relaciona com o fato de que no estudo da estrutura do modo de produção, a decalagem cronológica observada na constituição da produção capitalista não entra, não é importante. Já quanto à essência da manufatura, ela se constitui nessa decalagem mesma.
Na subsunção formal manufatureira, que se instituiu desde a forma do trabalho domiciliar contratada por um “capitalista”, apenas a não-propriedade dos meios de produção determina a pertença do produto do trabalho ao capital. Há assim não-correspondência entre forças produtivas e relações de produção, aquelas já se constituindo como elementos livres a comprar, estas ainda organizadas sob o princípio do trabalho como “obra” , conjunção de contributos individuais.
O que parece  permitir definir períodos transicionais é precisamente esse tipo de não-correspondência entre as duas relações, a das forças produtivas e as de produção, de modo que a articulação entre os níveis, que se assegura em períodos estáveis como correspondência entre essas relações, não se completa, apresentando apenas um varição de formas.
Ora, a transição se deixa observar também por esse ângulo diferencial de intervenção do Estado, isto é, as formas do direito e da política. Na “acumulação primitiva”, o período moderno, trata-se de uma legislação brutal que o capitalismo tout court deverá substituir pela legislação de fábrica já relacionada ao ambiente da luta de classes como conjunto complexo de intervenções do direito na economia e vice-versa, em que as movimentações localizadas dos trabalhadores desempenham papel importante.
Na era da manufatura ocorre, ao invés, a utilização do Estado pela burguesia nascente, como um meio de abreviar as fases transicionais do declínio do feudalismo. As formas do direito e da política são deslocadas em relação à estrutura econômica, pois ao mesmo tempo em que a força dessas instâncias sociais se põe como agente econômico, há precessão do direito e das formas do Estado sobre as formas da estrutura econômica.
O que Balibar evidencia então é que o deslocamento de relações e instâncias em períodos de transição reflete a coexistência, característica desses períodos, de vários modos de produção, com dominação de algum deles sobre os demais . O que Marx mostra considerando que os elementos de certo modo de produção que se forma posteriormente, já estando presentes no modo prévio, se localizam nos seus interstícios, nos seus “poros”, até que se efetivem os meios de autonomizar-se no modo posterior.
O que também Lênin exemplifica ao afirmar que na Rússia à época de transição ao socialismo coexistiam cinco modos de produção desigualmente desenvolvidos e organizados conforme uma hierarquia com dominância.
Balibar apresenta  a manufatura como unidade de coexistência entre dois modos de produção, que parecem poder ser conceituados como o feudalismo e o capitlismo, com a dominância das relações de produção do artesanato feudal (a obra como conjunção de contributos individuais) sobre formas produtivas que já são capitalistas (o trabalhador livre e o capitalista que compra a força de trabalho).
           Se pode parecer assim que se conserva a oscilação entre esses conceitos – a transição é uma coexistência de modos ou uma problemática em nível de elementos ? – Balibar contorna a questão argumentando que o irresolvido de certos problemas pela teoria marxista só deve repor o fato principal de que ela não se propôs como um pacote de respostas dogmáticas, mas como um campo novo de pesquisa.
Na verdade a exposição sobre a manufatura se desenvolve no interior de uma reflexão mais geral sobre o que seria a teoria da transição entre os modos, em Marx, onde Balibar assinala a dificuldade de descrevê-la, pois os próprios escritos de Marx parecem ser quanto a isso muito mais fragmentários e ambíguos do que aqueles em que se trata da teoria dos modos de produção estabilizados. Mas seria esse o ponto importante na demonstração de que não há de fato uma história pensável em si pelo marxismo.
Se houvesse, em vez de "transição" pensaríamos em processos formativos, mas então não poderia haver uma causalidade estruturante e se trataria de pesquisar os processos neles mesmos. Por outro lado, a estrutura justamente não resolve o problema do que ela põe como descontínuo e com isso suscita pela palavra sem consistência designada "transição". Por outro lado, segundo o lire le capital, há uma positividade do período moderno, uma forma de trabalho livre específica, já como o capital manufatureiro.
Esse estatuto positivo do irresolvido no interior de um campo científico novo de pesquisa me faz pensar em uma expressão de Monod sobre o evolucionismo em biologia. Ele comenta que a controvérsia dos criacionistas é ilusória, pois não se trata de evolucionismo como uma teoria a que se poderia opor uma outra teoria criacionista. A evolução é uma pesquisa, não uma teoria, o que não se pode afirmar com relação ao criacionismo.
Assim o essencial da pesquisa científica, que poderia ser proposto como algo comum entre as observações de Monod e de Balibar, é esse caráter lacunar pelo qual o que se institui como espaço em branco não está apenas como falta, mas como lugar preciso em que se deve prosseguir o questionamento. Oportunamente isso é enfatizado por Linda Nicholson, ao observar que é  precisamente uma certa "inconsistência" que "torna Marx uma figura crucial para a teoria feminista". 
A ambiguidade que o artigo trata de elucidar e relacionar à problemática feminista, parece-me poder ser vantajosamente conceituada como um questionamento do histórico em Marx.


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 É por ter projetado componentes teóricos que se pretendiam totalmente integrados à efetividade social, mas deslocado a noção de um real social natural por uma realidade social histórica, que Marx se torna um pensador utilizável pela teoria feminista. Assim, dos "trabalhos históricos de Marx e de muitos marxistas", podemos estabelecer segundo Linda Nicholson que " a separação da família, do Estado e da economia " é algo histórico, não natural.
Mas Marx se torna ambíguo devido às consequências que supôs conceituáveis daquilo  que por outro lado, consistiu no cerne da sua teoria que afirmou o "pressuposto comum a muita teoria econômica de que há através das culturas um componente econômico da existência humana que pode ser estudado independente de outros aspectos da vida humana".
A partir da projeção desse nível do econômico, estruturalmente independente, Marx quereria estudar e tratar toda "a história da humanidade" numa "relação com a história da produção e troca" - nas suas palavras, que Nicholson cita. Mas segundo ela, o que se segue daí é uma "antropologia filosófica" marxista, em vez de uma história, a qual ressoa positivamente com as teorias mesmas que Marx estaria criticando enquanto pensador histórico, motivo pelo qual ele se torna um sério obstáculo à própria teoria feminista.
Aqui é importante lembrarmos que esse caráter do social elevado ao histórico em Marx, na verdade consiste basicamente no seguinte. O que a ideologia ensina é que há um espaço social onde as relações são distribuídas naturalmente. Ora conforme a natureza dos vínculos entre as diferentes pessoas, que são tais que uma hierarquia dos papeis sociais apenas reflete o que é naturalmente conveniente: assim a obediência dos filhos aos pais, a autoridade do marido sobre a esposa e a família. Ora conforme a disposição das engrenagens da produção de bens industrial e comercial. Por um lado, liberdade de iniciativa onde todos são naturalmente dotados das mesmas possibilidades. Por outro lado, hierarquia de aptidões de modo que alguns se tornam patrões, outros apenas trabalhadores assalariados.
O que Marx mostrou, inversamente, foi que esse espaço da produção não é naturalmente disposto, e sim o que ocorre é que já está compartimentado estruturalmente de modo que há uma classe de proprietários que se mantém nesse status de posse por uma série de mecanismos que impedem a socialização dos meios de produção que eles detém. O excedente do contingenge populacional na exterioridade do grupo de proprietários dos meios de produção, está desde o berço constrangida por esses mecanismos, a jamais asceder ao estatuto de capitalista, não obstante o discurso de mobilidade social na sociedade burguesa.
As posições de empregado e patrão são distribuídas antes do preenchimento delas pelas pessoas físicas, por que essas pessoas não tem os mesmos caminhos possibilitados dentro da sociedade conforme estejam posicionadas. . Essa desigualdade é "histórica" mas num sentido pelo qual ela foi construída através dos atos pelos quais a burguesia assegurou as condições de mantê-la, assegurou um poder sobre os mecanismos e instituições de que dependem a prática das relações sociais. Particularmente Althusser estudou, na sua teorização dos aparelhos ideológicos de Estado, a função de reprodução da desigualdade das posições (capitalismo) assim como a função é preenchida nas instituições sociais correntes. Mais propriamente, já em Marx  essa desigualdadeé sociológica.
 É isso que  impede, a meu ver, que Marx seja arrolável apenas como mais um economista clássico - isto é, um economista cuja única tarefa é definir a relação direta entre o preço e o valor. O que ele descreve revolucionariamente é o próprio cenário a que se designa "economia", o seu a priori não sendo o liberalismo, e sim a apodítica desigualdade  das posições possivelmente ocupáveis nesse cenário.
Não obstante as diferenças de terminologia, o Lire le capital enfatizou exatamente isso, ao defender a novidade epistemológica de Marx a partir da sua compreensão da mais-valia, enquanto Foucault abstrai o que seria puramente o imperativo da fórmula econômica em Marx. Essa "ciência" depurada de todo outro desenvolvimento que possa constar nos escritos marxistas, parece a Foucault uma relaidade em si que pode ser analisada quanto à suas premissas epistemológicas. Inclusive numa entrevista, ele chegou a afirmar que Marx é extremamente importante para as teorias sociais, mas que sua diferença de opinião com Althusser porta apenas sobre a questão epistemológica. Ora, a própria opinião já depende de se admitir ou não essa partição do social e do econômico em Marx.
Por outro lado, entre Althusser e Foucault, a positividade de suas próprias teorias além da simples interpretação de Marx, implica uma importante decisão a propósito de como é que - já instalando-se a afirmação plena da sociedade como espaço de dominação - ocorre o que Nietzsche chamaria a má consciência. Ou seja, aquele fenômeno pelo qual é óbvio que a burguesia ou a classe dos capitalistas sabe muito bem que discrimina, que pré-posiciona, que destina, que explora, etc. Ao menos, é o que ela faz - do contrário, não haveria dominação, se ela é o seu sujeito, seu agente.
Numa enformação  marxista, como ainda a de Althusser, decide-se resolver essa questão por meio da teoria da ideologia. Desde Foucault houve outro modo de conduzir a questão, por meio do desejo que não significa dizer que a burguesia age assim porque quer, não devido ao que pensa, mas sim explicar como é que no seu querer da desigualdade está ao mesmo tempo e com a mesma intensidade o seu querer que isso não seja pensável como desigualdade, mas como liberalismo econômico, lei de mercado, espaço de jogo do mérito pessoal, etc. Pode-se afirmar que Althusse já havia tentado exatamente essa transposição ao localizar a ideologia em ato nas instituições correntes - da família à escola, dos clubes da esquina à igreja e à fábrica. Mas enquanto ideologia, não pode haver ultrapassagem da premissa pela qual representa-se - pensa-se - como tal, aquilo que não existe como se existisse: a igualdade de oportunidades e de iniciativas, consequentemente a inferioridade dos que resultam nas posições subalternas. Ora, a questão fica intacta, pois é de um modo inverso à existência dessa igualade que desde o início se está agindo. Porque se quer as duas coisas, a supremacia de fato e a igualdade no plano meramente abstrato do "direito"?
 É esse querer que é histórico, não natural, no sentido de ser unicamente o da burguesia. Nos países subdesenvolvidos, por exemplo, não há o sujeito desse querer, estudou-se já a série de carcterísticas da classe dominante que mostram que, inversamente, ela quer aquilo que classes dominantes ante-burguesas quereriam, a saber, expressar no plano do direito a sua supremacia que corre no âmbito prático das instituições, isto é, ela quer ainda sobredeterminar expressamente aquele plano civil da autoridade. Por isso se pensa que nesses países não há um nível público nitidamente independente do privado. Já no cenário da escola de Durkheim, Bastide registrou um estudo que demonstrou que nesses países, como o Brasil, há uma criminologia típica, contra a pessoa, diferente das fraudes típicas da Europa, contra a propriedade. Assim, compreende-se as máfias como inerentes a contextos sub-desenvolvidos ou culturalmente marcados pela mentalidade ante-liberal. Como o plano do direito está sobredeterminado por uma autoridade de classe sem legitimação estruturalmente alicerçada no capitalismo que no entanto é o regime atual, usa-se a máfia contra os abusos da classe dominante - paga-se pela retaliação ou pela proteção pessoal, contrata-se o profissional que fará a vingança na convicção de que o castigo coibirá o intuito de se cometer novas injustiças - numa premissa behaviorista de que a manutenção de um comportamento é determinada pelo reforçamento do meio.
Ora, é exatamente sobre isso que se expressa Hegel, ao notar que o confronto na base da força nunca chegará a uma solução definitiva, ao menos naquele plano ulterior à satisfação pessoal e contingente do vingado. Essa solução como uma efetiva transformação das  vontades só ocorre por uma revolução social que elimine definitivamente o abuso porque se transformam as relações políticas  - ou seja, só ocorre com a formação do Estado contemporâneo e liberal. Hegel aqui não está sendo hipócrita, se lembrarmos que liberalismos econômico e político não são conceitualmente a mesma coisa - se quisermos fazer a redução de um a outro temos que contruir teoricamente a redução a fim de justificar a pretensão de fazê-lo. Mas quanto ao liberalismo político como definindo a sociedade contemporânea, ele consiste na supressão da noção de lei natural como generalização do status de particulares, consequentemente consiste na autonomia do legislativo onde os ajustes entre os grupos sociais heterogêneos e a mudança social estão sempre ocorrendo e refletindo a normalidade e legitimidade das relações sociais de um momento dado. É por isso que na sua forma o pensamento de  Hegel, não obstante o conteúdo anacrônico da sua filosofia da história, é autenticamente histórico.
Na Europa, o período moderno é a época ambígua onde os dois desejos, ou ideologias como se queira, estão pioneiramente se defrontando, isto é, onde está nascendo a forma contraditória (liberal) da desigualdade burguesa, sobre e contra um regime típico da desigualdade aristocrática a qual é incompatível com o capitalismo na sua forma típica dos países centrais. O período contemporâneo, portanto, é de exclusiva hegemonia do liberalismo burguês, ao menos nos países centrais. Se a hegemonia do liberalismo mudar, tratar-se-á de outro período histórico, subsequente a esse atual  capitalista-burguês.
O neoliberalismo, obviamente, não é condição suficiente para afirmar-se uma mudança assim, sendo apenas o acirramento da desigualdade mas não a ruptura para com o Estado constituído de direitos. Mas há proposições no sentido de que houve transformações históricas importantes no interior do regime burguês, tais que se poderia falar de pós-modernidade, porquanto se trataria agora de uma dominação cultural que se expressa como tal na forma da inviabilização da lingaugem contestadora. Qualquer decisão nesse nível é algo de extrema complexidade teórica, como se pode compreender.
Sempre se tem tratado os dois contextos de países, desenvolvido e subdesenvolvido, como realidades que se sabem interdependentes, mas conceituando-se como realidades intrinsecamente distintas. Essa contradição da teoria social nunca se auto-tematiza - de  um modo, portanto, mais aberrantemente sintomático do que a contradição do desejo da burguesia no centro. O teórico discorre sobre a interdependência num pequeno trecho, para continuar todo o seu livro descrevendo realidades intrinsecamente distintas, sem qualquer aceno, quanto às causas estruturais dos contrastes, à interdependência entre centro e margens.
A meu ver, parte da teoria social na Europa tem sido o discurso do apagamento da interdependência, na medida que é um discurso que se arroga o poder de enunciar a universalidade dos fenômenos sociais e humanos. A classe dominante que se comporta de forma não totalmente burguesa nesses países de margens, na verdade só está instalada pelo controle que sobre o país é exercido - pela força até - pelos países desenvolvidos. Essas classes não expressam o pensamento político do país, assim como impedem que a heterogeneidade da cultura do país, enquanto de margem, seja pensável em si num nível oficial da produção teórica, se todo o espaço da cultura oficial está dominado pelo preconceito do ocidente como único produtor de saber válido, e o que ele produz, circularmente, são tais discursos de universalidade do social e do humano.
A manutenção de uma linguagem de universalidade teórica é ao mesmo tempo o desejo de haver um centro como sujeito da civilização e da industrialização do mundo, o ocidente - assim essa linguagem emerge, junto com as ciências humanas, quando há necessidade de posicionar um centro pela existência independente da margem. O desejo desse sujeito centrado é pensar-se como centro-identitário-unitário em relação a todos os outros, portanto, seu desejo é marginalizante do outro.
Retornando ao tema das relações entre Marx e a teoria feminista, Nicholson demonstra que o oportuno na teoria marxista para os teóricos feministas é ter afirmado que  a demarcação rígida entre esfera dos negócios identificando exclusivamente o econômico e as demais esferas da vida humana  não corresponde a um padrão natural e objetivo do ser assim das coisas,  mas a um resultado histórico da exploração dessa sociedade capitalista que pelo contrário procura inculcar essa oposição do trabalho e da família como natural, de acordo com a natureza da produção.
Marx está sendo útil à causa feminista que é revelar nessa oposição entre o econômico e o familiar, enquanto  politicamente construída em vez de natural,  um tipo de exploração do trabalho feminino no interior da família que se baseia numa estruturação inversa à dos trabalhadores, mas que é histórica do mesmo modo que a exploração destes.
Mas os trabalhadores são explorados naquele nível explicitamente econômico, então eles podem se organizar como classe, enquanto as mulheres são exploradas por um recalque do que fazem no lar como trabalho, o que é negado porque o trabalho é definido como atividade econômica exclusivamente de tipo capitalista, devido àquela demarcação. mas o que elas fazem é trabalho, na concepção de Nicholson, se este não for definido como produção de mercadorias, e sim somente como esforço aplicado a atividades cujo resultado é socialmente relevante - como a manutenção do serviço da casa, ou a reprodução mais amamentação e cuidado de filhos, etc.
A exploração, contudo, em todos os casos sempre se travestindo de naturalidade e objetividade das coisas como são, no discurso de classe capitalista, Marx se torna ambíguo porque na sua teoria econômica redobrada por sua  antropologia social , ele vai justificar a demarcação definindo a produção como esfera exclusiva do econômico assim como o define o capitalismo - o oposto do familiar, como produção de mercadorias, não como trabalho qualquer. Assim ele reduz a polissemia do termo "trabalho", excluindo o sentido que Nicholson mostrou ser essencial à extensão do termo ao que as mulheres fazem como responsáveis pela família. Mas desse modo, Marx está apenas repetindo a demarcação prescrita pela teoria liberal a que, naquele outro plano, ele está se opondo.
Sendo meu interesse especificamente a relação de História e marxismo, isso pode ser interpretado como se Marx houvesse deliberadametne mantido no âmbito histórico somente o que cabia na sua teoria da produção - assim para Mary O'brien, Marx "nega a sociabilidade e historicidade de atividades reprodutivas", aqui designando exclusivamente as familiares em que as mulheres são geralmente sujeitos, para "ver essas atividades como naturais e pois a-históricas".
Nicholson e O'Brien interpretam assim que a família está sendo classificada como super-estrutura, uma vez que Marx declarou que dos "estágios do desenvolvimento da produção, comércio e consumo" automaticamente decorrem "uma constituição social, uma correspondente organização da família, de ordens e classes", e portanto uma  "sociedade civil". Como ensinaria a sociedade industrial ela mesma no seu "discurso" ou na sua "ideologia", conforme se o decida, os aspectos naturais da reprodução são encarados pelo próprio Marx como não-históricos e sub-produtos da economia, na dedução de Nicholson.
Mas isso, segundo ela,  impede ver que as mulheres e os homens estão cooptados em posições diferentes por essa mesma estrutura econômica, em relação às atividades de produção. Posições que implicam diferentes acessos ao controle das atividades, e a diferença de posição estando conectada às regras de casamento, parentesco e sexualidade. Assim, as relações de gênero deveriam necessariamente ser conceituáveis como relações de classe, ainda que numa extratificação não redutível à de trabalhadores e empregadores, mas isso é impossibilitado no discurso marxista, do mesmo modo e pelo mesmo motivo que naquele da sociedade industrial.
A meu ver, o que Marx efetivamente expressou naquela afirmação de um automático vínculo entre produção e instituições sociais, é a visão da antropologia positivista que se resolvia como história progressiva das técnicas, de modo que a descrição de tipos de família era fantasiosamente adscrito ao que se considerava um estágio técnico, porém, naquele momento isso era suposto procedimento científico.
 Essa antropologia positivista que se expressa em muitos autores da época, como Frazer por exemplo, na versão creditada a Morgan é dotada no livro de Engels a propósito da origem suposta  estruturalmente conjunta da família e da propriedade privada. Aqui é importante notar que essa antropologia era sócio-evolucionista de um modo que desde os inícios do século XX já não pode ser atuado. Partindo de um pressuposto hoje sem fundamento da promiscuidade primitiva, as famílias vão se setorizando por regras de casamento, entre grupos cada vez mais restritos, e relatos etnográficos eram utilizados de forma descontrolada em relação aos nossos critérios, a fim de ilustrar cada "estágio" com uma sociedade primitiva conhecida, ainda coincidindo o seu estágio técnico com um tipo de família, só não havendo amostragem para o período originário, o da promiscuidade.
Assim, evidentemente, entre o primitivo e o civilizado ocidental burguês, havia uma evolução claramente narrativizável. Se pudéssemos esperar que o marxismo fosse apenas uma utilização dessa antropologia para fins não sócio-darwinistas, na verdade Marx, como Engels, não propunham o retorno do primitivo, nem sua igualdade de mentalidade ao ocidental contemporâneo. Era necessário, para Marx, a evolução social a fim de que a liberdade e igualdade das origens não mais fosse devida ao acaso da situação no natureza, e sim refletido pela consciência esclarecida do homem universal, cientista, ou seja, o proletariado após sua dialética assimilação e superação da burguesia como sujeito da iniciativa industrial.
 A guerra dos sexos ou apropriação das mulheres num papel doméstico de propriedade do pai da família ocorre, naquela narrativa,  quando um excedente da produção acumulado passa ao estatuto de propriedade privada, a subjugação sexual tendo por objetivo garantir o patrimônio numa mesma família pela paternidade verificada em relação aos herdeiros. Assim, consequentemente, surge aí a família monogâmica, limitação máxima do número de cônjuges permitido pelas regras de sexualidade e casamento.
Engels estende nesse ponto, ampla consideração a propósito da inferiorização do status feminino devido a esse acontecimento, quando antes o regime da família implicava igualdade de posições sociais entre homens e mulheres  - por exemplo, antes ambos eram livres quanto à sua sexualidade, depois só o homem permaneneceu livre nesse aspecto, segundo os conhecidos preconceitos do machismo patriarcal. Engels deplora especialmente a ambiguidade do tratamento das prostitutas na sociedade de dominação masculina:, elas são usadas/mercatorizadas para o prazer masculino, mas ao mesmo tempo tratadas como se o que fizessem fosse algo de mal.
Se Marx usou esse mesmo esquema utilizado por Engels, ou não, em todo caso é esse tipo de correlação determinista global  entre técnicas e instituições sociais o que se constituía numa sociologia positivista, em que me parece realmente inserível a sua produção teórica. De fato ela não se baseava numa divisão do natural e do histórico, no sentido de social, econômico e político, mas numa explicação da estrita e automática junção de ambos no que seria a realidade da espécie social evoluindo através das totalidades sociais correspondentes àquela junção.
Marx poderia ter sido um dos primeiros funcionalistas, ainda que ele não tenha, como Durkheim, concebido as funções na sua independência formal, conceituando-as num parâmetro autônomo em relação à tarefa de definir a coesão social em si - por isso, ele é somente um sociólogo positivista ao mesmo título sócio-evolucionista de Comte. Atualmente, definir a coesão social não é também um objetivo muito recorrente, ainda que o tipo de pesquisa setorizada que se associa à escola de Durkheim continue tendo trânsito. A sociedade é hoje mais pensada em termos de mudanças e conflitos, que não são algo que meramente por vezes ocorre, mas aquilo que está socialmente sendo.  Isto é, a sociologia lida com o termo "sociedade" de forma relativa, não totalizante do que ela "é", por que a variável das sociedades e grupos de margens tem sido sempre menos negligenciável.
Mas isso coloca ainda uma questão sobre o marxismo, se ele é ou não um modelo de conflito, pois de fato, o conflito nele é estruturante de uma totalidade, não o que impede teoricamente que totalidade seja um termo válido ao pensamento social.
Mas o curioso é que se não está esclarecido a princípio que Marx, independente do devir do marxismo após o abandono da antropo-sociologia positivista, considerou gênero e classe como essencialmente opostos, aquilo que Nicholson objeta a isso, em termos da necessidade da pesquisa empírica, ou seja, histórica, para poder responder à questão - no entanto, que deve ser sempre posta, não recalcada como irrelevante - de "se o gênero é ou não um importante indicador de classe", é que só podemos tratar a questão examinando instâncias determinadas, caso a caso, respeitando a heterogeneidade das sociedades e grupos sociais. Como vimos, é o caráter histórico nesse sentido de contingente, que o marxismo desloca por uma causalidade estruturante que desloca o caráter autônomo dos fenômenos históricos. Ou seja, o importante é notar que na teoria feminista não se está propondo um estado de natureza que seria desejável contra o que é produzido na cultura. E, sim, que todas as questões de gênero são históricas e culturais, de modo que nossas concepções a propósito do que queremos também são culturalmente relacionadas.
  Assim, considerar o socialismo como uma contribuição marxista, não impede que hoje já se tenha a estimativa de estarmos num cenário pós-marxista do socialismo, onde não obstante, continua sendo importante compreender a teoria de Marx sobre a exploração e as razões de suas limitações teóricas como aquilo que precisamos evitar, ainda que a princípio sejam decorrentes de pressupostos muito arraigados na estruturação do saber ocidental que reduz o heterogêneo ao universal humano. Isso não é fácil, pelo que se pode deduzir da extremamente multifacetada recepção de Marx.
É interessante registrar um desses casos em que o contraste na sua recepçãoo se torna notável. Pierre Daix, enaltecendo a leitura estruturalista de Marx, feita por Althusser, comentava que o estalinismo como a terrível dominação que foi, na verdade significava apenas uma incompreensão do Marx estrutural. Enquanto o próprio Althusser, escrevendo sobre as relações Hegel-Marx, sublinhava a justeza de certas interpretações de Stalin a propósito da teoria marxista.
O socialismo é a aspiração da sociedade boa que historicamente nós viemos a postular almejável no desenvolvimento das potencialidades emancipatórias da sociedade contemporânea e sob o impulso do nosso conhecimento de outras sociedades. Se nós sempre mais nos conscientizamos dos obstáculos a esse propósito, oriundos da própria organização da produção,  isso implica apenas a necessidade de fazer frente aos obstáculos, não na dedução da impossibilidade do objetivo.

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Em seu escrito sobre a Revolução de 1789,  Tocqueville observou que “não há exemplo mais perigoso que o da violência exercida pelo bem e por pessoas de bem”. Isso foi observado na tentativa de compreender os excessos cometidos pelos revolucionários. Eles teriam sido antecedidos pelos abusos espantosos do Antigo Regime, aquele vigente ao longo do período moderno.
Mas ao observarmos a história da Europa na transição do feudalismo à modernidade, não é só na França do assim chamado “Antigo Regime”, o absolutismo, que se encontra esse triste exemplo. O povo, no campo e na cidade, se encontra no meio do antagonismo das forças da nobreza e da centralização, que a literatura do iluminismo designou o “despotismo”, historicamente personificado pelo  monarca absoluto com sua côrte de aristocratas de quem havia sido tirada a autonomia da época feudal e agora estava agrupada exclusivamente em torno do rei, sem outra função social que ser satélite desse centro do poder financiado por uma classe trabalhadora/burguesa, porém sem legitimação social.
Entende-se assim que esse despotismo, ou absolutismo, se achou ligado a uma doutrina de igualdade que pareceu tão injusta quanto a da desigualdade. Todos são iguais perante o imperador que, não obstante, pode assim prejudicar uns e outros. Tocqueville revela com abundância de detalhes o como: impostos exorbitantes e mesmos puramente circunstanciais no campo, venda de empregos, o mais das vezes ocupações inúteis, nas cidades, negociação de títulos nobiliárquicos, expropriação de terras, de todo tipo de corrupção o absolutismo francês apresentou exemplos.
Mas no resto da Europa as coisas não pareciam tão melhores quanto os escritores dessa época tendem a fazer crer por seu paralelo inevitável entre França e Inglaterra. É certo que o acordo inglês poupou inúmeras vidas, evitando as conseqüências do que ocorreu na França. Mas esse acordo favoreceu as forças do capitalismo. A nobreza e a burguesia se aliaram ali, às expensas do rei, enquanto no continente o rei se mantinha pelo suporte do capital burguês, mantendo a nobreza num papel acessório do seu poder. Na França, onde o rei parecia cortar de um lado tanto quanto de outro, as coisas escaparam ao controle.             
Assim, descrevendo os começos da burguesia, M. Dobb ( a evolução do capitalismo) se espanta com “a presteza” com que essa classe entrou em acordo com a sociedade feudal, somente por esse meio tendo sido conquistados os seus privilégios, não obstante o seu descontentamento com a superioridade social de uma nobreza cada vez mais ociosa.
Mas em todos os lugares o descontentamento existiu. Na Inglaterra, por exemplo, os camponeses eram expulsos pela política dos cercamentos dos campos para favorecer a indústria têxtil. A cidade do período moderno era o refúgio desse êxodo.
Havia sido ideologicamente propagado pela religião e como princípio dos bons costumes que uns poucos felizes fossem os senhores a quem se devia pagar a talha até o ponto em que o trabalho excedente era suportável, e a proteção dos campos o compensava de certo modo, ao passo que o universo cultural cristão só devia ensinar que os pobres devem servir na terra para alcançar a bênção dos céus.
Mas quando esses poucos não se mostram felizem com seu “muito”, estão querendo sempre mais, até o limite insuportável, ocorre uma inversão entre o que a religião ensina e o que o camponês experimenta. Em geral o camponês, servo ligado ao feudo do senhor ou mesmo “livre”, ali prestando serviços sem estar preso ao lugar, era considerado apenas como “criatura a ser explorada no país”, dado à destruição no caso de guerra. Mas já à época de São Tomás, na Inglaterra, registrando-se entre os nobres os gastos com as cruzadas e um novo culto à magnificência favorecido pelo crescimento do comércio com a atração de artigos exóticos, se observa um “aumento na obrigação do trabalho nas maiores propriedades do país, especialmente nas terras do clero”, conforme  Dobb.
A sobrecarga de tributos era exigida pela força e opressão. As deserções dos camponeses, por vezes em massa como na Ile de Ré no século XII, provocaram associações entre senhores para recapturar os fugitivos. Essas associações se converteram em motivos de contenda pois alguns senhores descobriram que poderiam repovoar suas terras, desertas devido à fuga dos seus servos provocada pelo excesso de tributos, por meio de acordo com os servos fugidos de outros senhores, acolhidos por eles.
Esses acordos baseavam-se em imunidades e várias comunidades rurais se desenvolveram assim, como reporta Dobb. Já na época do absolutismo francês, Tocqueville observa que o aumento abusivo de impostos no campo foi cuidadosamente planejado para não prejudicar os nobres, devendo incidir o aumento sobre a talha, obrigação devida apenas aos servos.
Mas a cidade pareceu o pólo de atração preferível e se comportou mesmo como agente de cooptação, tornando livre qualquer habitante que ali se mantivesse por mais que um ano, mesmo que houvesse sido anteriormente servo ligado a algum feudo. Na cidade o mercado de trabalho estava organizado em associações de ofícios que regulavam as atividades desde a aprendizagem até o desempenho pleno da profissão. Percebe-se assim a preponderância dos mestres de ofícios, que tinham a seu encargo não só os aprendizes mas também os “companheiros” já formados que com ele compartilhavam a produção. 
Com o tempo esses mestres tornaram-se uma espécie de casta, limitando o acesso à profissão. Não somente através de imposições ao aprendizado mas principalmente por dificultar enormemente a transformação de um companheiro em mestre – geralmente só os filhos ou parentes dos mestres eram beneficiados.
Os refugiados nas cidades se tornaram mendigos. Na década de trinta do século XVII, como reporta Huberman, um quarto da população de Paris era constituído de mendigos, sendo que nas outras cidades francesas, assim como na Holanda e na Inglaterra, a situação era semelhante. As guerras, como a de Trinta Anos na Alemanha, podem ser um fator dessa miserável situação, mas o que mais se costuma apontar como decisivo é a famosa alta generalizada de preços na Europa, devida ao influxo do ouro e da prata americanos.
Assim os descontestes tornam-se uma classe considerável por seu número desde o declínio do feudalismo. Creio que no século XVII pode-se falar deles como de uma classe, ainda que a mistura seja muito grande, abrangendo os camponeses explorados fugitivos ou expulsos, os mendigos, os habitantes das cidades explorados nas corporações, o novo setor de assalariados, desde que as corporações começam a ser substituídas por capitães de indústria atuando como intermediários (capitalista-mercador-intermediário-empreendedor, na expressão de Huberman), e esses novos beneficiários da crise, igualmente muito misturados: camponeses que não obstante toda a exploração conseguiram se enriquecer e agora compravam as terras da nobreza, a elite das corporações de ofício, esses mercadores e empreendedores urbanos e trans-urbanos, a alta burguesia que participava dos lucros coloniais. Beneficiários que tem a propriedade mas não o status social a que almejam.
Entre a Renascença e a o século XVIII esses descontentamento foi utilizado pelo absolutismo, de modo que enquanto a alta burguesia financiava os exércitos do rei, a doutrina da igualdade perante a coroa nacional favorecia um pensamento social que precisava se assegurar desse domínio, fornecendo ao mesmo tempo a ideologia do despotismo. O direito divino dos reis passava a ser fundamental nessa tarefa, de Maquiavel a Hobbes. Se Maquiavel observava o príncipe como aquele que merece o seu pequeno reino, “merecer” significando “ter feito por obter”, não tanto “ter direito a”, Hobbes vê no rei aquele que exerce uma função prescrita pela própria natureza – mas agora natureza dos seres humanos em sociedade, não a physis ou o eterno ser assim do universo compreendendo matéria e espírito. Esse período se associa ao mercantilismo, à dominação colonial, de modo tão estreito, que a posição humanitária de Locke excede o comum mesmo entre os que condenavam a barbárie dos colonizadores, porque Locke pensava as margens em termos de grupamentos socializados, o habitual sendo considerar os aborígines  seres cerebrados, mas não espirituais.
 A alta de preços e a situação generalizada do descontentamento mostra que o período aparentemente estabilizado das monarquias europeias à época da exploração colonial, na verdade exibia contradições que excedem o antagonismo de classes. Dobb permite exemplificar isso que alguns, mais tarde, propuseram como o que realmente implicou a transição da sociedade moderna à contemporãnea em termos de revolução social. Não uma luta da burguesia contra a nobreza, mas da burguesia liberal contra a monopolista.
A ideologia da época aparece “sob o disfarce do princípio de que o comércio deve subordinar-se aos interesses gerais do Estado”. Ora, como o poder soberano se personalizava na Coroa,  nada mais razoável que aplicar às transações econômicas do Soberano a analogia do comerciante individual cujo lucro se media pelo saldo em dinheiro restante após completas as operações de compra e venda.
A conclusão de Dobb é que “quanto mais realista seu pensamento, tanto mais o autor percebia que não era esse o objetivo real da política”. Mas desde que tal suposição estava suficientemente enraizada na tradição, somente mudanças muito profundas poderiam provocar uma ruptura no interior mesmo da teoria. O caminho do compromisso era até aqui, “natural”, o que só vai conduzir ao enfrentamento revolucionário após o acirramento da exploração ao longo do século XVIII, com políticas especialmente voltadas à produção de uma mão de obra disponível à indústria por meio de leis que impedem a fixação do camponês no campo.
Como Dobb registra, o cercamento inglês, na curva dos séculos XVIII e XIX, se acompanha desse tipo de sistema legislativo. Há leis que limitam o número de ocupantes dos casebres, enquanto outras incidem sobre a liberdade de trânsito ou a entrada de elementos novos em lugarejos. Assim, se os pobres lavradores expulsos pelos cercamentos, que não foram incorporados como mão de obra na grande propriedade assim resultante, tentam escapar para uma localidade vizinha, aquela lei impede sua entrada lá, mas se tenta se agrupar num sistema de moradia comunal, a lei proíbe esse tipo de agremiação habitacional, de modo que o único escoamento fica sendo o trabalho na cidade.
Na França a situação é mais complicada. Não ocorre o mesmo quadro de cercamentos ou de concentração fundiária. A nobreza vende suas terras por faixas e o pequeno lavrador ainda se beneficia, conforme Dobb, enquanto Foucault na História da Loucura, se vota a fornecer o capítulo dessa produção da figura social do pobre, que transforma o quadro tipificado pela mendicância assim canalizada ao proletariado super-explorado, na França.



 3 ) Foucault e a época clássica


                                                                                                      A Sociedade de Exclusão



Examinando o texto “O que está em jogo”  ( A vontade de saber/ VS), observa-se que Foucault opõe a sua concepção de poder àquela que designa “jurídico-discursiva”. Enquanto essa concepção lida com uma oposição simplista entre poder e desejo, conceituada ao modo de interdição, para Foucault isso só revela que o poder assim se mascara para tornar-se aceitável, mesmo em sua forma negativa.
A tese de Foucault, contudo, não se inclina para o diretamente oposto a isso, que seria a hipótese de que a lei é constitutiva do desejo. A questão é então liberar a concepção que se possa ter do poder, ao termo de uma analítica, do seu laço conceitual com a lei, com o direito.
Esse laço tem sua justificativa histórica na imagem que se implantou do poder, assim como exercido na monarquia. Quanto a isso pode-se estabelecer uma continuidade entre esse trecho da VS e a série de conferências na Puc (A verdade e as formas jurídicas - VFJ).
Tratava-se, nessas conferências, após a introdução do conceito nietzscheano de genealogia, de mostrar como a técnica de inquérito, como forma jurídica, surge na Pólis grega. Foucult empreende aí uma leitura do Édipo em termos de uma transposição literária das modalidades discursivas associadas a essa nova técnica, o teatro grego registrando as inovações práticas e discursivas surgindo no social. Isso se relaciona, isto é, ao deslocamento das formas arcaicas do exercício de poder, que constituíam o domínio mágico-religioso, pelo conjunto de instituições características das sociedades políticas.
Foucault mostra então que após o recuo das sociedades políticas da Antigüidade, à era feudal, as formas de inquérito, o exercício do direito instituído por leis civis de cuja manutenção se encarrega o Estado, não são observadas. Praticam-se formas ordálicas, ou puramente simbólicas, de julgamento, sem relaciona-las a qualquer concepção jurídico-estatal, assim como se os litígios fossem concebidos como problemas entre particulares, problemas estritamente locais que no máximo deveriam fazer intervir a comunidade para solvê-los. Somente por volta do século XII ressurgem na Europa as técnicas de inquérito que sempre estão associadas a uma concepção de direito como atribuição do exercício de soberania. Essa época recuada já é a que Pirenne localizava como inicio do capitalismo que é mais habitual encontrar situado com a sociedade industrial.
O importante a reter aí é que essa concepção alicerça, vice-versa, o poder no exercício do direito, como se o poder fosse a competência desse exercício, logo, algo estatal, a essência ou a razão de ser do funcionamento do Estado.
Fazer crer que o negativo do direito é a interdição, no sentido de que é o que o poder pune ou evita, eis o correlato dessa concepção do poder como exercício judiciário-legal do Estado, monárquico ou democrático, sendo que para nós, conforme Foucault, a justificação histórica dessa concepção devém da memória conservada da monarquia, desde esse período tardo-feudal no século XII, quando estão ressurgindo as monarquias nacionais e lentamente sobrepondo-se ao poder papal, como já examinamos anteriormente.
Assim o sexo, em sua relação com o poder, se implementa na mesma concepção que toma essa relação como exercício de soberania, como imposição do exterior, ou interiorizada, da lei. A Vontade de Saber (VS) ressoa assim com VFJ, pois se lá trata-se de compreender as tecnologias do sexo, isto é, do controle da sexualidade por parte da sociedade, e isso implica uma teoria do poder a ultrapassar e uma a construir, é exatamente esse o percurso do VFJ, construir ou reconstituir as transformações históricas que deslocaram essas formas puramente jurídico -exteriores do exercício do poder.
Assim VFJ põe em evidência a impossibilidade de interpretar as transformações ocorridas na formação da sociedade burguesa, desde o pós-feudalismo até a atualidade, e mais especialmente, desde a época clássica que é sua expressão para o período moderno,  nos moldes de uma teoria jurídica do poder como soberania. Trata-se então não mais de interrogar o Estado, os mecanismos de sua constituição e funcionamento, mas o “Método” , como prescrito pelo texto assim intitulado em VS, envolve a compreensão do poder como “multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização” ( VS, 88).
Ora, na Introdução ao Uso dos Prazeres (UP), o volume dois de História da Sexualidade (HS), Foucault discorre sobre o que determinou a necessidade de um terceiro “deslocamento”. O primeiro havia sido constituído sobre as práticas discursivas que o articulavam como tal, por relação à algo como a descrição do progresso dos conhecimentos. A seguir, o deslocamento do âmbito jurídico por uma analítica das relações múltiplas, estratégicas e técnicas, de articulação do poder. Mas HS não poderia evitar que à formação dos saberes sobre a sexualidade e os sistemas de poder que regulam suas práticas, sobreviesse a necessidade de interrogar as formas pelas quais os indivíduos “podem e devem se reconhecer como sujeitos dessa sexualidade” ( UP, 10).
O termo “sujeito” não deve induzir a erro. Pois se o deslocamento a operar agora se relaciona com a pesquisa das formas e modalidades da relação consigo mesmo, é no sentido de compreende-las como aquilo através de que o indivíduo se constitui como sujeito, isto é, como ele sobrepõe a sua realidade desejante enquanto fator de sua identidade mesma.
O domínio é portanto o da subjetivação, o deslocamento refere-se a recusar contar a história das figuras de subjetividade que se sucedem, relativas ao seu meio de repressão-condicionamento, para procurar entrever os processos pelos quais os indivíduos são levados a constituir pela sexualidade a sua dobra existencial, sua auto-hermenêutica, pois são eles que não apenas investem os papéis que desempenham nos jogos de verdade do desejo, mas que constituem os jogos nos quais se reconhecem como seres desejantes, “homens do desejo”.
O que acarreta a interessante proposição de Foucault, de que se ainda assim se trata de história, não se trata porém de um trabalho de historiador. Mas isso porque essa história só se estende como protocolo do que é na verdade um exercício filosófico engajado na tarefa de liberar o pensamento daquilo que ele silenciosamente pensa ou aceita pensar, possibilitando assim que pense de modo novo ( ou que comece efetivamente a pensar).
Foucault afirma  que a história da sexualidade não é uma análise de comportamentos ou idéias, sociedades e ideologias, mas “as problematizções das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das quais essas problematizações se formam”.
Arqueologia como analítica das problematizações, genealogia como analítica das práticas e transformações que as formam. Mas agora também “estética da existência” como história das problematizações éticas, feita a partir da interrogação das práticas que foram efetivamente sustentadas pelos indivíduos em relação a si mesmos, para mostrar como os prazeres sexuais foram problematizados através dessas práticas. A arqueologia não é uma arte. Mas o rumo da subjetivação estava para se tornar uma estética.
Aos nossos propósitos, contudo, uma vez que se relacionam aqui à reconstituição da sociedade do período clássico, conforme Foucault, é à VS que devemos nos reportar, pois os volumes II e III, salvo referências muito esparsas, da HS, concentram-se em torno da Antigüidade. Assim empreendo agora o exame do conjunto de referências sobre esse período específico, que Foucault assinala entre o final do Renascimento e a Revolução Francesa.
Cotejando as três histórias, - da loucura, da sexualidade e da prisão – observa-se que assinalam, geralmente, dois núcleos sobre que se devem fazer intervir os exemplos e analisar as conseqüências. Um deles é o “evenemencial”, por assim expressar. Aqui sobrepõem-se fatos, principalmente relacionados à emissão de certos documentos como regulamentos de instituições, projetos em âmbitos localizados, etc., estabelecendo entre eles relações de sentido, não sem submetê-los a uma leitura meticulosa. Mas deve-se também traçar esquemas, localizar as regiões que por sua inteligibilidade irredutível, autorizam e confirmam a leitura.
O fato marcante que, quanto ao século XVII, é da mesma ordem na História da Loucura (HL) e na História das Prisões (HP), é o “Fechamento”, “Enclausuramento” ou “Internação”, esses termos que no Brasil traduziram, alternadamente, o “Renfermement” – que, em todo caso porta o epíteto de ser “Grande”, no sentido de que na ordem dos fatos atingiu os mais diversos setores sociais e na ordem da trama modelou a feição daquele período.
Qualquer que seja o termo escolhido para traduzi-lo, o Renfermement é a linha de exclusão que divide a sociedade clássica, assim como a linha de luz da pintura barroca secciona o quadro, mas socialmente exercendo-se como a linha entre o que é normal e o que não é, como o contorno das ações racionais, ações de segunda aproximação, para transpor de modo algo humorístico o famoso termo de Bachelard acerca dos objetos científicos construídos, isto é, ações que se desprenderam de sua naturalidade intrínseca e se investem como ações sociais tendo sua inteligibilidade forçosamente relacionada ao estado de sociedade.
O louco, o doente – cujo modelo nessa época clássica é o leproso – não ascedem a esse estado, tudo o que são permanece moldado pelo que a natureza lhes prescreveu. A sociedade clássica os exclui através de instituições precisas, que não podem ser localizadas no exterior desse domínio epocal.
Assim se são estas instituições que prescrevem um regime de exclusão sem precedentes, mas que tampouco se confunde com o regime inteiramente outro do momento contemporâneo posterior, é preciso compreender a sua localização aí, tanto em termos intrínsecos quanto extrínsecos.
Em termos intrínsecos, pelo qual essa tarefa nos proporciona o acesso a um mundo irredutível. E extrínsecos, pelo qual se o compreende em termos de ocidentalização, se o integra, como fenômeno de desvio ou ruptura, ou de constituição, na construção desse novo conceito, já agora não mais tendo seu vazio, o testemunho de que é preciso construí-lo, mascarado por um narrativa neutra, “histórica”, que o pressupõe ao invés de explicar.
O espaço de exclusão da era clássica atingiu não apenas loucos e doentes, mas todo tipo do que se poderia considerar desvio em relação ao normal – mais propriamente, tudo o que portava a rubrica do não-ativo: desocupados, violentos, tantos alvos regionais do isolamento. A instituição que prescreveu o espaço de exclusão foi o internamento (renfermemente), isolando-se atrás de espessos muros aquilo que a sociedade não queria ver.
A finalidade do internamento era concebida como “correção” . Quanto à prática judiciária ela se distingue pelas injunções do suplício, injunções extremamente pesadas e meticulosas, o direito conceituado como resposta a uma infração.
A experiência clássica de segregação, no que se relaciona à loucura, mantém o esquema dual simples (normal-desviante) durante o século XVII. Somente na curva entre o clássico e o contemporâneo, já no decorrer do século XVIII, pode-se constatar o retorno de um imaginário do excluído, onde as figuras do discurso e do desejo voltam a se povoar desses motivos do estranho, algo como um “revival” da Renascença mas já se tendo feito desse estranho a realidade do excluído.
Assim, na época dessa curva, observa-se que não existe loucura entre os selvagens da América, conforme Rush , ou que a loucura não é uma perturbação natural mas um efeito das corrupções sociais, conforme Tuke .
Nessa curva transicional entre os séculos XVIII e XIX, o que está retornando é um pensamento da preeminência da natureza que, se continua oposta à sociedade, não mais coextensiva a ela como se verificava até o final do feudalismo, é agora sob o signo da valorização, não da negatividade. Certo, são vistos apenas como antecipações o “pressentimento”, comum a Tissot, Morel e Buffon, desses conceitos tardo-clássicos de degenerescência que, somente moldados sob a orientação positivista do século XIX, deverão conduzir à efetiva transformação da noção de loucura, desde o “desatino” clássico à “alienação” contemporânea.
Mas já pela localização tardia da referência desses autores, creio que se pode, na leitura de HL, identificar a era clássica numa exterioridade perfeita em relação à moderna, de modo a acomodar facilmente o que é anômalo na região conseqüente da transição.
No saber do “desatino”, o conhecimento médico está entre outros, é a sociedade que desterra, não há necessidade de uma instância especializada a que devesse ser atribuída a competência do traçado entre o normal e o desviante ou anormal – nesse âmbito ainda nem é legítimo falar de loucura como doença, pois ainda se está no domínio da percepção em que “deslizamentos qualitativos podem ocorrer sem que se altere a figura de conjunto” ainda não se chegou ao “sistema conceitual” ou à sintomatologia.
No exercício clássico de sociedade, quem não poderia ver de imediato isso que não é normal, isso que não é constitutivo desse mesmo exercício? O desatino envolve um saber, comum a todos os que participam do exercício social, mas esse saber é também requisito, ao mesmo tempo índice, dessa participação, no círculo inescapável desse sistema de exclusão.
A concepção moderna da alienação já exige para a rubrica do louco um “estatuto médico” . Assim, se o internamento clássico reunia, por trás do muro que separa o espaço de exclusão do espaço de sociedade, tudo o que não se pode considerar normal, o louco mas também o mendigo ou o delinqüente, numa palavra, os desocupados, o asilo moderno é agora o espaço reservado à loucura onde, ao invés de correção, se pensa em termos de tratamento.
Aquilo que, contudo, ainda bem no interior do século XVIII, requisitou de dentro do saber a qualificação de um conhecimento, o Grande Medo que agora se alastrava a propósito do que devia haver, do que havia desde o século anterior se acumulado por trás desses muros, que até então pareciam suficientes na sua pura superficialidade para tranqüilizar as consciências, aparece ao modo quase circunstancial de uma peripécia.
O médico foi requisitado então como guarda e protetor relativamente ao potencial de contágio da interioridade social pela exterioridade monstruosa dos espaços de exclusão, isto é, a medicina não foi requisitada desde sempre como árbitro, para diagnosticar a anormalidade e sim para garantir que se mantivesse fora. Foram necessários vários fatores outros para que dessa requisição circunstancial se verificasse um verdadeiro salto no sentido de transformar as relações da sociedade com a loucura, relações que envolvem o estatuto do conhecimento médico e o lugar sócio-político da medicina posteriormente ao clássico.
Já na história da prisão ocorre algo um pouco afastado desse ritmo dual presente ainda na história da loucura. Agora trata-se de localizar a origem do panoptismo, o tudo-ver característico da sociedade disciplinar-contemporânea, como dispersa já nos interstícios da prévia ordem do clássico, assim como o esquadrinhamento modelar do espaço da peste já se verificava no âmbito mesmo em que evolviam os procedimentos de exclusão da lepra.
Assim, duas modalidades convivendo no mesmo período ainda moderno, não obstante excludentes, como modelos de relação da sociedade com a doença. O modelo da lepra seria o oficial, como pura e simples exclusão. Mas nos poros da sociedade clássica começa a surgir a necessidade de outra forma de relação a partir do modo de ser da peste que exige um tipo de esquadrinhamento, observação constante, envolvimento com aquilo sobre o que o poder social deve se exercer, não apenas como uma ordem de exclusão exercendo-se ela mesma de fora daquilo sobre o que ela incide.
Não que deixe de subsistir a possibilidade de configurar estritamente o espaço de exclusão da época clássica e aquele do esquadrinhamento contemporâneo. Mas sim que na exposição de Vigiar e Punir/ VP os acontecimentos que inauguram as instituições modernas de disciplina coalescem como precipitados desse fundo de coexistência. O que em nível macro se transforma está nas qualificações de princípio. Lá, no clássico, um poder que se exerce como punição, do exterior, sobre o anormal. Poder que visa suprimir a anormalidade, o princípio da masmorra, trancar, esconder, privar de visibilidade. Poder que, exercendo-se do exterior, visa e julga só o que aparece no exterior, o comportamento anormal. Aqui, na contempornaieade, um poder que se exerce como observação, do interior. Não se vigia apenas o que já efetivamente se desviou, mas aquilo que pode vir a se desviar, logo, eventualmente, deve-se vigiar tudo.
Esse poder contemporâneo não julga a exterioridade do comportamento, mas a interioridade da disposição. É o princípio do panoptismo, não mais o da masmorra. Agora o poder não se dirige ao que interpela, mas ao que subsume, poder que não se vê mas que a tudo vê.
No projeto arquitetônico que Bentham introduz, o seu “panóptico”, como casa de detenção ideal, articula-se como um espaço central não visível de que se pode observar todas as celas circundantes. O alvo da visibilidade, não se restringe, contudo, a essa aplicação localizada, a prisão .
Torna-se um princípio ou método institucional generalizado pelo qual os assim observados sabem que alguém os observa mas não sabem quando, quem ou como. Portanto, desenvolvem um estado consciente e permanente de autonomitoramento, autocontrole, autovigilância, realizando na prática o sonho de autoexame constante que havia sido o dos sacerdotes cristãos. Poder automático que não espera a exceção, abrange a generalidade.
Assim VFJ desenvolve mais amplamente a observação do espalhamento desse princípio pelo campo social, a escola, a fábrica, o hospital, com as transformações que pouco a pouco vieram a configurar o espaço contemporâneo, disciplinar e privatizado. O que se verifica então é que esse poder que na sociedade atual se torna “oficial” , característico, exercido pelas instituições mesmas da soberania, se desenvolviam nos interstícios do clássico apenas informal e localmente, por parte de grupos burgueses, “sociedades” civis notadamente de religiosos ligados a seitas protestantes.
Esses grupos desempenham um papel múltiplo, encarregando-se do esquadrinhamento disciplinar instituído sobre/por seus membros, ora como canalização da hegemonia, desde os códigos da nobreza para os quadros da burguesia, ora como formação de “consciência”, isto é, da subjetividade responsável e ascética cuja descrição faz ressoar as pesquisas de Foucault com os resultados de Weber acerca das relações da ética protestante com a consolidação do capitalismo, ora como defesa do grupo contra a extrema severidade e minúcia com que se exerciam os mecanismos jurídicos clássicos de penalidade sobre a totalidade social.
Assim, se a história da loucura implementa uma análise dual, em termos de dois espaços clássico e contemporâneo nitidamente separados, relacionados apenas pela borda de sua transição, a história das prisões revela uma interconexão básica interior ao campo micro-social que no entanto deverá desdobrar, no campo macro-social a mesma dualidade entre as duas épocas.
Ora, a história da sexualidade começa por restringir-se ao nível da linguagem , ao invés de interrogar as práticas sociais dispersas. Inicialmente cabe assim uma inversão de perspectivas. A partir do século XVII o que se fez foi palavrizar o desejo, não impor que se calasse sobre ele. A leitura da pastoral desse período, que regulava as instituições de confissão, previa que os fiéis deviam cada vez menos se ater aos detalhes corporais dos atos descritos mas se estender cada vez mais no sentido das inclinações do desejo da alma, aí onde se instalam o devaneio, a fantasia, a complacência, e as coisas mesmas que se faz na imaginação.
Essa orientação pastoral do século XVII se torna publicamente observada, isto é, deixa de se exercer como imposição sobre um grupo de fiéis para se tornar uma prática social comum, a partir do momento, já no século XVIII, em que dela se apoderam vários mecanismos institucionais orientados agora para se apropriar do sexo através do discurso – incitação política, técnica e econômica a falar do sexo sob forma da especificação, da contabilidade, análise e classificação.
Trata-se então, já no clássico, quanto `a sexualidade, de gerir, não de repartir o que é ou não lícito. Que aja algo como regulamento sexual, que todos devem observar no íntimo de sua conduta, eis a finalidade da palavrização do sexo que se pode observar, como fenômeno, desde a era clássica.
Ora, aqui a intenção é desfazer a decalagem que se costuma crer bem localizada entre o silêncio clássico e a multiplicidade retórica, que a especialização do conhecimento só viu crescer desde o alvorecer da era contemporânea.
Contudo, isso não implica a confusão, ao menos explicitamente buscada,  entre esses períodos. Trata-se, invesametne, para Foucault,  mais de algo no sentido da especificação em dois momentos do mesmo projeto de gerir o sexo. Momentos que seriam o anterior e o posterior ao surgimento, ou mais precisamente consolidação, da população como objeto da problematização econômica e política, substituindo a mentalidade do objeto de governo como circunscrição territorial da posse de um príncipe. Anterioridade e posterioridade relativamente, assim, à governamentalização (gestão) da sociedade.
O corte agora tende a se deslocar, portanto, ao interior mesmo do clássico, portando sobre o interregno entre os séculos XVII e XVIII. Com o aparecimento da população, ainda que se mantivesse a limitação dos três códigos que até aí regulavam explicitamente as práticas sexuais, um novo vetor da discursividade sobre o sexo se delineia. São esses códigos o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil.
Se os três códigos, hegemônicos durante o século XVII, visavam a conjugalidade, nesse interregno o que se multiplica são as interrogações sobre o que fica no exterior do matrimônio, a sexualidade das crianças, e sobretudo as sexualidades desviantes que compõem o espaço da marginalidade tanto civil (loucos ou delinqüentes) quanto propriamente sexual (homossexuais, perversos, etc.).
Ora, essas interrrogações vão se especializar, proliferando, à medida em que a curva temporal entre os séculos XVIII e XIX recobre a transformação da episteme, na consolidação do postulado antropológico que está na raiz da formação das ciências humanas. Foucault não hesita em relacionar estreitamente essas formações de conhecimento especializado com o desenvolvimento da sociedade no sentido disciplinar do esquadrinhamento. Assim ele relaciona, em VFJ, o surgimento da pedagogia com o panoptismo exercido sobre a população infantil que a sociedade moderna reúne nesse espaço de esquadrinhamento que é a escola. Foucault designa mesmo a formação dessas ciências em termos de “ciências da observação”.
No entanto, será mais oportuno examinar essas conseqüências das análises de Foucault quando se tratar do contemporâneo, uma vez que aqui estamos focalizando o momento clássico. Mas complementando a progressão que se está estabelecendo, na HS, entre os dois momentos do projeto ocidental de gestão da sexualidade, o que a discursividade em vias de se especializar do século XVIII acarretou foi, já no século XIX, o abrandamento geral da severidade, a atenuação das instâncias repressivas dos códigos sexuais (deslocamento dos três códigos pelos conhecimentos especializados). No que tange à penalidade, VP registra, quanto essa mesma época, a mitigação das penas, o que implica a supressão total dos suplícios como práticas institucionalmente sancionadas.
O momento posterior ao clássico vai relacionar ao projeto de gestão da sexualidde essa possibilidade nova de uma bio-ética da população que substitui as disciplinas do corpo-máquina características do século XVII pela regulação populacional dos corpos-espécie, úteis, dóceis e integrados em sistemas sociais do controle e da economia, desde as transformações que, com relação à história da sexualidade se verificam já a partir do século XVIII.
Essas duas formações sociais. clássica e contemporânea,  podem parecer no conjunto da obra de Foucault um tanto paradoxalmente distintas e complementares. Contudo, creio que o paradoxo aparente se resolve pela distribuição em níveis micro e macro de análise. A contemporânea sociedade disciplinar-normativa se sobrepõe à sociedade de exclusão clássica mas entre ambas os cortes operam por níveis, de modo que quanto mais nos afastamos da superfície onde há mais conveniência do discurso obsoleto do tipo de história que apenas decalca as versões de mascaramento do poder, tanto mais encontram-se as imbricações que uma época relança na outra, retrospectivamente se visto pelo lado das rupturas já efetivadas, progressivamente se visto com o olhar lento de sua acumulação sobre as circunstâncias até o precipitado sintomático de sua transformação.
 Assim, conforme o “Pós-Scriptum sobre as sociedades de controle” , Deleuze caracteriza essas duas formações sociais que Foucault havia situado como a sociedade clássica de soberania, que funciona mais açambarcando a produção, decidindo sobre o direito à vida, e as sociedades normativo-disciplinares da  contemporaneidade que procedem organizando a produção e gerindo a vida, articulando grandes espaços de concentração regular cujo modelo é a prisão: escola, fábrica, hospital, até mesmo o espaço familiar.


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Foucault mostrou na “história da loucura” como é que surgiu esse personagem que antes não existia, o pobre destinado ao trabalho na indústria. Como assinalei, Dobb também examinou essa questão, para mostrar a impossibilidade de fazê-lo derivar de algo natural como a explosão demográfica.
A sociedade clássica excluía o “marginal” - o inidentificável qualquer porque, e é isso que era importante para Foucault, não subsumível à economia mental da representação, ou seja, qualquer coisa que forçava a pensar o desbordamento do quadro da Natureza. Desde o século XVIII o marginal assim definido já tem um lugar na sociedade onde pode ser funcionalmente reabsorvido. Entre a  “história da loucura” e a “evolução do capitalismo” de Dobb, acumulam-se os pormenores, tantas vezes espantosos pela sua crueldade, dessa produção  para trabalhar na indústria, da figura social do pobre.
Um detalhe inesquecível no volume de Foucault é o momento em que os portões da internação se abrem, na proximidade da Revolução Francesa, ainda no século XVIII, para deixar penetrar na sociedade aqueles elementos que por trás dos muros permaneciam como o fundo dos temores dos cá de fora. Eles agora vão integrar as fileiras do proletariado ou vão ser o objeto da medicalização psiquiátrica, conforme o caso. Quanto a Dobb o que impressiona é a descrição que vimos, a propósito das leis completamente arbitrárias que se sucedem para inviabilizar a permanência dos pequenos camponeses nos campos.
Na “história da loucura”, o interesse, porém, não está na imediatamente na origem do proletariado, mas sim da psiquiatria, o que está apenas de forma conjuntural relacionado a essa liberação do antes indiscriminadamente incluído. No momento em que os portões do internamento se abrem, a pressão da triagem liberará por um lado, braços “ociosos” à indústria, por outro, o objeto desse saber nascente que é a psiquiatria, afirmando-se ao longo do século XIX.

Ora,  algo do complementar entre essas eras irredutíveis é captado na análise que sobre Focault empreendem Ferry e Renault . Eles entendem haver um duplicidade de registros inerente ao projeto foucaultiano da história da loucura. Haveria assim, no prolongamento da influência Nietzsche-Heidegger, professada por Foucault, o projeto da desconstrução da ratio ocidental, identificada ao racionalismo.
Mas também o projeto relacionado ao que seria uma história das contradições internas da economia burguesa-liberal, projeto este que se poderia aproximar não mais de Nietzsche ou Heidegger e sim do marxismo, pois trata-se de localizar o motor dos fenômenos gerais de época – a exclusão clássica, a medicalização moderna- no estado preciso do desenvolvimento das forças produtivas, respectivamente, grandes crises econômicas do final do Renascimento que tende a tirar de circulação o que não se revela produtivo,  e posterior recondução dessa população excluída à economia normalizada como mão-de-obra a bom preço.
Ferry-Renault localizam nessa duplicidade de influências, ao mesmo tempo o problema e a sedução da obra de Foucault. Problema por autorizar uma leitura marxista-reducionista dessa obra, como aquela de P. Nemo. Mas sedução por lançar o projeto foucaultiano no prolongamento da filosofia francesa mais contemporânea, que Ferry-Renault reúnem na coextensividade do “pensamento 68”, por referência aos eventos do Maio francês.
O programa mínimo desse “pensamento 68” seria a “denunciação da razão” como instrumento de poder. Ora, se Foucault, de modo muito heideggeriano conforme os próprios autores citados, considerava “fazer o processo da razão” algo de que não haveria nada mais estéril, eles propõem que essa consideração do jogo de irracionalismo e racionalismo como puro arbítrio – ambos se merecem por sua rigorosamente antitética simetria – teria que ser completada pelo reconhecimento da necessidade de convir que aquela dualidade de eras está a sobrepor vertentes que na realidade se excluem.
 Ferry-Renault  desdobram, como crítica global ao pensamento-68, o argumento de que uma vulgata do projeto inicial de Foucault, enquanto obra inaugural desse pensamento, torna-se uma tarefa menos simples, porque até mesmo uma crítica tardia dessa vulgata, tal como teria sido implementada pelo próprio Foucault, permanece também algo problemático.
A vulgata em questão parece corresponder a uma versão standard da obra de Foucault que ao próprio Foucault teria parecido inconsistente. Ferry-Renault apenas manipulam a expressão de Foucault , “a cançoneta anti-repressiva”, mas pelo que se pode depreender Foucault não estava enunciando uma ruptura com suas obras anteriores e sim denunciando a incompreensão que seria reduzi-las a isso, como poderia fazer uma vulgata simplificadora.
Mas será que Ferry-Renault respondem mesmo à questão que enunciam, de saber por que Foucault considerou que “seria bom” empreender essa crítica posterior à vulgata de sua intenção inicial?
Ora, após enunciar essa questão o que eles desenvolvem é a tarefa de mostrar as “sérias dificuldades” que o conjunto da obra de Foucault, conforme a vulgata que eles então se põe a elaborar, não deixa a seu ver de apresentar.
Não considero interessante determo-nos aqui nos detalhes dessa vulgata desenvolvida por Ferry-Renault. Ela recobre a controvérsia com Derrida, que já examinamos antes. Há também a crítica de Gauchet-Swain à caracterização de Foucault dos momentos de Exclusão e de Normatividade, em nome de uma lógica da democracia que corresponderia a uma positividade ou progresso no sentido de uma melhoria real da sociedade ocidental desde a idade clássica. Essa crítica é aliás repetida por Rorty, e alhures me ocupei com ela, o que não considero ser oportuno aqui, devido a nosso propósito específico, quanto ao clássico. Há ainda análises de As palavras e as coisas e História da sexualidade.
Apenas retenho a impossibilidade de concluir, como Ferry-Renault, que quanto à subjetivação, Foucault empreenderia finalmente uma recondução aos gregos. Trata-se a meu ver, e bem de outro modo, de iluminar essa região da subjetivação cujo mérito da descoberta cabe a Foucault, como espaço de criação e liberdade, algo correlato ao sentido que o termo “ética” está apresentando agora, assim como em Deleuze.
Sem responder realmente à questão dos motivos pelos quais Foucault teria considerado oportuno reavaliar sua obra, e inserindo assim sem mais essa reavaliação numa ambiência considerada como sendo de enunciada ruptura com o projeto inicial, a movimentação conceitual de Ferry-Renault, quanto a isso, é surpreendente.
Primeiro, considerando que se trata de incitar a um retorno aos gregos, apesar da negação expressa disso por Foucault, eles limitam a questão da subjetivação a uma proposta de solver a subjetividade na individualidade, logo a uma tendência deliberada de ignorar o intersubjetivo de que seria sintomática a expulsão da problemática habermasiana do discurso comunicativo, o que seria aliás um traço bárbaro geral no pensamento-68 conforme eles.
Ora, eles situam esse retorno os gregos como algo que Foucault teria performatizado como ruptura, enunciada a partir da recusa de sua própria vulgata, com todo o seu projeto inicial. Logo, Ferry-Renault concluem que essa performance é vã, ou fictícia, que Foucault permaneceu o mesmo, que tratava-se sempre de opor à subjetividade como pólo universal ou espaço do intersubjetiovo, a figura sessenta-e-oito da subjetividade como baluarte do individualismo egoísta.
Trata-se aqui, a meu ver, de uma série de contra-sensos. Em todo caso, podemos juntar,  na nossa história da recepção da obra de Foucault, mais uma versão. À concepção de Roberto Machado pelo qual haveria  ruptura entre as pesquisa do saber e a do poder, e à versão de  Veyne a propósito de uma continuidade entre ambas, soma-se a versão da falsa ruptura entre o momento inicial e conclusivo da obra,  uma ruptura fingida ou ilusória, de Ferry-Renault.
Mas quanto ao exame dessas proposições enquanto contra-sensos, penso que se deveria observar que, se é afirmado que Foucault “parece”, após ter “retornado” a uma reflexão sobre a ética, desprezar o nietszche-heideggerianismo de História da Loucura e Vigiar e Punir, e que isso na realidade seria apenas o movimento superficial de um mesmo desdenhoso individualismo profundo basicamente nietzche-heideggeriano, são afirmações que jamais apresentam o que quer que seja que possa cobrir a lacuna que se estende entre o parecer e o ser, nesse texto de Ferry-Renault.
Sem insistir na defesa de uma obra que como o pós-estruturalismo está constituindo os horizontes de questionamento da pós-modernidade, portanto algo sobre que não podemos "resolver" com poucas palavras,  quanto ao período clássico, pode ser que essa apreciação do conceito, assim como constituído por Foucault, tenha sido algo sucinta. Reduzi o exame desses livros ao período, sem preocupação com o todo. Mas o que me pareceu importante aqui tem a ver, justamente, com a possibilidade de delimitar, em Foucault o contorno de uma era. Isso no sentido preciso pelo qual, como creio ter demonstrado, não se conserva qualquer base problemática devida a uma dualidade paradoxal inerente ao seu projeto.
Não ocorre reducionismo marxista, a meu ver, mas tampouco se pode compreender Foucault e quanto a isso também Deleuze, na exterioridade da evolução do marxismo enquanto materialismo. Assim penso haver uma convergência que é a desse materialismo, entre Nietzsche, Heidegger e Marx, pelo que é exeqüível opor em geral o pensamento às suas imagens criticadas da metafísica. 
Com relação ao nosso tema,  entre Foucault, o Lire le capital e Heidegger constatamos que se as versões do clássico são bem contrastantes, há uma oscilação comum entre elas. O período porta como que uma incerteza inerente ao seu nítido delineamento, ainda que os traços grossos do contorno sejam enunciados bem tracejados em cada um desses estudos.
Em Heidegger a oscilação está entre todo o moderno, desde Descartes, e a história inteira, desde a antiguidade. No interior do marxismo estruturalista  a transição em termos de época é postulável, mas como questão é insolúvel. Em Foucault, vimos como há uma comunicação das épocas em termos de práticas que se propagam, não obstante na superfície serem as práticas insitucionais mesmas que mais constrastam tipicamente. A oscilação em Foucault se torna ainda mais nítida quando as duas épocas, clássica e contemporânea, são estudadas do ponto de vista do saber.


                                                                                O a priori da Representação


Foucault analisa as formas da Semelhança que preside o sistema de signos da Renascença: conveniência, por exemplo, da alma e do corpo, mas também do limo com o dorso da concha onde ele cresce; emulação, que constrange as aparências das coisas que se refletem indefinidamente como a relação entre o rosto e o céu, o intelecto do homem e a sabedoria de Deus, a boca e Vênus – por ser o veículo do beijo e das palavras amorosas; analogia, que assegura o parentesco de tudo com tudo, da planta com o animal, do corpo humano com o dos pássaros, da tempestade com a apoplexia; simpatia, que atua livremente no mundo como entre os elementos que Deus mistura de modo a compensar suas atrações e repulsões ], e se fogo quente e água fria se repelem, entre eles se interpõe o ar que é quente e úmido.
Mas se a similitude pode universalmente se exercer é porque havendo a ordem da natureza que a tudo compreende ela não poderia deixar de se fazer visível na manifestação mesma das coisas. É porque essa linguagem muda é resgatável enquanto domínio esotérico das Assinalações. Assim, que há simpatia entre o acônito e os olhos, e que por isso o acônito os cura, pode-se saber já pela forma de suas sementes que se parecem com pálpebras.
A forma do signo é semelhança com aquilo que ele indica. Entre o signo e o referente há a assinalação, entre o que marca e o que é marcado há a semelhança que permite relacioná-los. A natureza é o mundo de figuras, signos a decifrar que são eles mesmos formas da semelhança depositadas sobre as coisas e que subsistem, enquanto marcas, por si mesmas, independentes de sua decifração pelo homem.
Esse  mundo renascentista dos signos convergentes é circular, de modo que a escrita esotérica das coisas determina a necessidade de um limite já que esse jogo da semelhança realmente não possui termo. A noção de microcosmos desempenha estruturalmente essa função de limite, conforme Foucault, antepondo a uma possível infinitude do macro a curva constringente de sua semelhança com o micro. A distância entre ambos não pode ser infinita. Os seres devem ao menos teoricamente ser contáveis, fechando-se o domínio de tudo o que nesse interior se assemelha.
No limiar do século XVII o sistema de signos se transforma, o foco foucaultiano dessa mudança sendo a Logique de Port-Royal. Aquilo que ela introduz como revolucionário em termos de sistema de signos é efetivamente a ruptura mais radical com todo o sistema circular das semelhanças do Renascimento.
 O estudo da lógica de Port-Royal se desenvolve em dois momentos. Inicialmente trata-se daquilo que concerne às três variáreis que a Logique define para o signo, em seguida tratar-se-á da própria teoria da representação que ela enuncia. Foucault analisa pormenorizadamente as conseqüências de cada uma dessas rubricas.
No estudo das variáveis do signo destaca-se inicialmente aquela que se relaciona à certeza da ligação, o signo podendo ser constante e certo como a respiração é signo do ser vivo, ou provável, como a palidez o é da gravidez A conseqüência a observar aqui é que o rompimento entre o adivinhar do mago renascentista e o conhecer do cientista moderno se manifesta pela incorporação da significância no interior do conhecer, ou melhor, como ato mesmo de conhecer.
O signo não pré-existe por si mesmo, antes ou depois, como marca depositada na coisa, à espera apenas de sua revelação. São os laços que o espírito estende entre as coisas sob a forma de juízo, por sua própria força de espírito ou pelo concurso de Deus (sobre o sentimento em Malebranche, ou sobre a sensação em Berkeley) que facultam a relação de significância. A crítica de Hume sobre a causalidade vista como laço das coisas nelas mesmas torna-se assim possível. Foucault insere aqui, portanto, a possibilidade do empirismo.
Quanto ao tipo de ligação o signo pode pertencer ao conjunto designado, como a boa fisionomia significa a boa saúde; ou ser separado dele, como as figuras do Antigo Testamento são signos do Novo Evangelho. Substitui-se assim à circulação sempiterna que inclui a leitura como seu momento, o desdobramento infinito que implica a junção na coisa da característica que o espírito separa por meio da análise. Foucault nesse nível situa as teorias dos “ideólogos”, Destutt de Tracy mas também Condillac e Gerando, que enfatizam no conhecimento a função da análise que em geral caracterizará a produção do saber até Kant.
Leibniz seria aí a figura essencial, ainda que não nomeada, pois Foucault mostra que o desdobramento do mundo, das coisas em seus substitutos “com os quais pensamos” , tem por correlato tanto uma análise quanto uma combinatória tornando o mundo inteiramente ordenável.
Quanto à origem da ligação o signo pode ser natural como a imagem de um espelho ou convencional como uma palavra. A substituição agora é da ênfase no natural, de modo que a convenção devia ser como fundada pelo que havia de direito na significância por si mesma, pela ênfase no artificial ou convencional. É por que o espírito institui com o mundo das coisas o seu processo de significância, arbitrária no sentido de ser autônoma em relação a ele, que se pode ainda destacar o que é preciso e identificar na coisa o signo que convém ao espírito no caso do signo ser “natural”. O modelar no processo da significância torna-se agora, portanto, o convencional, o artificial.
 Foucault permite demonstrar que o que restava até aí de “natureza” a ser não-neutralizada como tal pelo saber, a nomeação da Khôra ou passividade material platônica, a coincidência do mundo consigo mesmo no microcosmos humano, a própria existência autônoma do signo como marca muda nas coisas mesmas, tudo isso só deixa de permanecer no espaço do clássico.
Assiste-se aqui justamente o surgimento dessa correlação estrita entre verdade, significação, ciência. E o que Foucault está afirmando é que ciência como sistema ordenado de signos, como legitimação de um processo de significância, como “operação” no sentido epistemologicamente rigoroso do termo, não existe anteriormente ao século XVII.
O operatório consiste nesse cálculo universal garantido por uma linguagem arbitrária que des-dobra a natureza, processo cuja legitimidade é autorizada pela des-dobradura do mundo em suas metades ideal e material. Leibniz o enuncia perfeitamente ao afirmar a dobra interna ao ser do mundo, conforme Deleuze. Assim a matéria se redobra internamente ao infinito, o espírito redobra a idéia no signo – dobras anímicas, pequenas percepções que vão ao infinito ou mesmo ao insensível e que asseguram contudo a conexão do espírito consigo mesmo ao modo de uma alma, por um lado, e dobras orgânicas, mecanismo vibratório dos órgãos de percepção, o infinitamente pequeno material, por outro.
A novidade dessa perspectiva é notada por Deleuze quando, analisando a relação que Leibniz faz intervir entre pequenas percepções/vibrações da matéria e percepção consciente/ órgão, assinala que assim “é sobretudo o sentido da semelhança que muda completamente de função” pois é como se agora, ao invés de se julgar o semelhante pelo semelhado – como se a relação fosse inerente às coisas independentemente do espírito - é a relação de semelhança que impõe a matéria ser aquilo a que ela se assemelha, as qualidades sensíveis, a percepção mas também o signo.
Aqui deve-se registrar ainda o movimento do conceito pelo qual Foucault circunda todo o terreno filosófico do clássico, uma vez que as variáveis do signo abrangem, por suas conseqüências, tanto a possibilidade do empirismo quanto a do racionalismo.
Retendo a conclusão de Foucault sobre esse exame das variáveis dos signos instituídas pela Logique de Port- Royal: naquilo em que esse fenômeno é coextensivo à separação entre o signo e a semelhança no início do século XVII, pode-se ver nele o que torna arqueologicamente possível o pensamento clássico em que se estende “como numa rede única de necessidades” a probabilidade, a análise, a combinatória, o sistema e a língua universal.
Assim encontramos o pólo seguinte da exposição sobre a Logique, aquele em que se desenvolve a apresentação e as conseqüências da teoria do signo enquanto representação. A novidade, bastante relacionada com o novo lugar da relação de significância, sua deriva desde o ser das coisas mesmas ao interior do conhecer, é a teoria dual que substitui a trindade instituída até aí.
Se desde a Antigüidade – Foucault cita os estóicos e os pioneiros gramáticos gregos – o marcado, o marcante e o que permitia ver nisso a marca daquilo, agrupavam os elementos da relação de significância, Port-Royal institui apenas dois elementos como essenciais a essa relação, duas idéias, a da coisa que representa e a da coisa representada. A reduplicação da representação consiste nisso pelo que a coisa que representa só se manifesta enquanto representando, isto é, “como” representante de outro objeto. O desenho - mapa ou quadro, torna-se o exemplo ideal de signo pois “só tem por conteúdo o que ele representa”.
 Foucault destaca três conseqüências da introdução da teoria dual do signo desde Port-Royal. Uma delas é a interpenetração total entre análise da representação e teoria do signo, isto é, entre pensamento e signo, conhecer e significar. Aqui intervém numerosos exemplos: ligação entre idéia abstrata ou imaginação e percepção concreta, da idéia geral com as idéias singulares, das sensações entre si (Condillac, Berkeley, Hume, Gerando, Destutt de tracy). Como se poderia lembrar, os ideólogos iluministas, à Tracy, descreviam a associação de sensações, das mais simples às ideias, supondo-a contínua, logicamente encadeável, sem necessidade de postular uma metafísica para ancorar a teoria do conhecimento puramente sensualista.
Há também, conforme Foucault, a conseqüência negativa, a impossibilidade de um problema da significação com uma teoria que lhe viesse resolver. Já que conhecer é representar, todas as representações se interligam na “imensa rede” que recobre o mundo, mas não sem constituir sua realidade mesma pensável, sua cognoscibilidade intrínseca ou sua correlação ao espírito. O simbólico se institui como o ser único do pensar. Antes se poderia afirmar: não há conhecimento a não ser do universal. Mas agora, penso que se poderia propor: não há o não-universal de que se poderia afirmar ou negar conhecimento. Nenhuma opacidade entre signo e conteúdo, nada se interpondo entre ambos.
Se “semiologia” e “hermenêutica” continuam se interpenetrando de modo que não há como a significação se oferecer como problema, não se pode constatar que continua a ser do mesmo modo que até aí. Isto é, não mais pela união que perfazem no elemento da semelhança ou similitude, mas por ligarem-se neste poder da representação de se auto-representar. A teoria dos signos (semiologia) é o mesmo que a análise do sentido (hermenêutica) , a ciência do signo vale pelo discurso imediato do significado.
A conseqüência que resta é a ligação da teoria do signo com a teoria geral da representação, essas teorias das idéias, ou “ideologia”, que são tão características do clássico. A similitude tem ainda uma relação com o signo mas como a aparência que está para a esência e esta, cabe à análise localizar nas operações do conhecimento: analítica da imaginação ou da natureza, respectivamente, do linear ( imagem, impressão, memória ) no simultâneo (o aparecer do que semelha nos dados sensíveis), numa seqüência coerente de representações.
Esse operatório da análise, em que a imaginação da semelhança desempenha papel tão preponderante, articula a oposição do racionalismo com o empirismo, nomeadamente em Foucault: Descartes, Malebranche, Spinoza por um lado, Condillac e Hume por outro. Assim se o racionalismo trata de atribuir o jogo da aparência à função menor da imaginação que, contudo, por essa minoridade mesma serve ao entendimento, o empirismo redobra o poder da representação na imaginação que atua como potência de conexão por sobre o indiferenciado das coisas que se parecem. Configura-se a Epistémê ou a priori epistemico do clássico, em todo caso, pelo ajuste das naturezas – das coisas e do ser humano. É desse ajuste que emergem as “ciências da ordem”, análise das riquezas, história natural e gramática geral.
Mas é ele também que permite a Foucault enunciar essa grande novidade, isolando de direito as ciências da ordem no momento clássico, impedindo que se instituam como protótipos de domínios epistêmicos atuais: o fato bastante evidente de que “vida” , “natureza”, “homem”, são domínios que, enquanto epistêmicos, só podem ser considerados na produção de saber em que se constituem e quanto às ciências da ordem, nenhuma delas se constitui nesses domínios mas todas em correlação com a análise da representação pela teoria dos signos, dispondo em quadros ordenados as identidades e as diferenças: ordenação de naturezas simples pela Mathêsis (método algébrico) e de naturezas complexas ou representações pela taxonomia (sistemas de signos) mas também análise da constituição das ordens desde as seqüências empíricas, o que implica uma gênese.
Se a Mathêsis é ciência da atribuição de juízos, da verdade e das igualdades (apofânsis) , a taxonomia é ciência das identidades e das diferenças, do saber dos seres, alojando por isso a possibilidade da gênese. Pois a taxonomia se instala pela suposição da plenitude, do continuun entre as coisas sem que subsista qualquer interstício ou vazio entre elas. Mathêsis-apofântica, taxonomia-ontologia. Mas taxonomia-semiologia, gênese-história da natureza. Foucault mostra como essas relações se tornaram quase irrecuperáveis pois desde o kantismo elas se alteraram de modo que apofântica e ontologia se agruparam agora somente em torno da Mathêsis como transcendental do espírito, enquanto semiologia e história se uniram nas disciplinas de interpetração como a hermenêutica de Shleiermacher, a genealogia de Nietzsche, a psicanálise de Freud.
Quanto às “ciências” no clássico, seus traços essenciais abrigam o projeto de uma exaustiva “colocação em ordem”, a formação do quadro como centro do saber, exposição do conhecimento dos elementos simples e sua progressiva composição. Essa rede de saber empírico que interliga autores representativos de deteminado domínio a vários outros domínios no espaço clássico, é o das ordens não-quantitativas. Assim se Port-Royal fornece a lógica, também não deixa de fornecer a gramática. A Enciclopédia reúne, na autoria dos verbetes, contribuições que não se caracterizam pela especialização disciplinar dos autores e Tourgot escreve o “etimologia” assim como Quesnay o “evidência”, ambos representativos, porém, da análise das riquezas. Há vários exemplos nesse sentido.
A terminologia é aí versátil. A “positividade” do clássico se relaciona com as “positividades” que nele se constituem como que estriando o seu espaço: a gramática geral ordena a linguagem ao modo de discurso, a análise das riquezas ordena os fenômenos de valor como variáveis de trocas e a história natural ordena os seres ao modo de um quadro.
 Compreende-se pela teorização de Foucault a impossibilidade de atribuir a essas positividades o estatuto de estágios primitivos daquilo que se designará como as novas empiricidades como economia política, biologia e linguística com seus objetos Trabalho,Vida e Linguagem, já no âmbito da epistemê contemporânea.
A gramática geral é uma teoria filosófica que deve responder sobre a origem da linguagem; a análise das riquezas uma filosofia do valor e a história natural deve compor o quadro em que as espécies fixas são ordenados. Foucault estuda detidamente cada um desses três domínios para mostrar que as várias teorias que cada um agrupa são todas referentes à mesma prolemática, que designei filosófica, que a cada um permite desenvolver-se como um saber autônomo.
Mas quando vai se aproximando o século XIX, Foucault se detém nas mudanças que alteram, em cada saber, a disposiçaõ fundante da sua problemática, até que se localizam as rupturas determinantes que já anunciam o trânsito de problemas e métodos novos, impensáveis no regime do clássico. A episteme contemporânea não se relaciona a um espaço de quadro, ou a um problema determinado que pode ser enunciado para toda a variação teórica inerente a cada ciência. A biologia, a economia e a linguística produzem seus objetos como quase-transcendentais, isto é, são compostas por pesquisas metodologicamente integradas e enquanto áreas de ciências específicas,  são rigorosamente autônomas.
Ora, o que ocorre assim, como já delineei, é que se esvazia a função de representação do mundo ainda atribuída à epístemê clássica como concepção mesma de ciência. Então as ciências humanas são provocadas como prenchimento dessa função, mas segundo Focault, elas não são estruturais posto que aquilo para que elas são chamadas é apenas transportado do período anterior onde vigia, contudo, um outro regime de inteligibilidade em geral. elas tem por função enunciar a generalidade de um mundo cujo saber não se constrói  mais sobre qualquer generalização.
A meu ver, esse juízo de Foucault sobre as humanities foi precipitado, pois se há a crítica da cultura que nós  devemos realizar, de fato ninguém está na exterioridade dela para totalizá-la. Foucault realizou ciências humanas, ainda que ele não quisesse reconhecer isso.  E a sua tríade do que seriam ciências rigorosas é arbitrariamente seccionada daquilo que se pratica como ciências humanas - linguística e economia política, já que só muito forçadamente podemos colocar numa mesma linha o estudo de Smith e Ricardo enquanto economistas, e Marx cuja significação é sociológica. Mas o que importa reter aqui é o paradoxo histórico de As palavras e as coisas.
 Aparentemente os dois a priori, clássico e contemporâneo, não poderiame estar mais contrastados, mas de fato o que está se enunciando é a onipotência da Representação clássica na contemporaneidade, se lembrarmos o que significa do ponto de vista da teoria do poder e da subjetivação em Focault, o epíteto "ciências humanas". O apriori clássico, a representação, lá não tinha as mesmas consequências subjetivantes, totalizantes do ponto de vista da dominação, que aqui. Além disso, há uma impossibilidade de decidir se Foucault construiu dois a prioris incomunicáveis, ou inversamente, uma teoria da continuidade entre ambos os cenários históricos.
Essa hipóstese da continuidade seria complicada afirmar, pois a Representação, como assinalei, não funciona do mesmo modo, ela é potencializada na contemporaneidade enquanto o que está produzindo a subjetividade. No entanto, a Representação é definida como a inteligibilidade do clássico, não do contemporâneo, do ponto de vista histórico-apriorístico do Saber.
Foucault não procedeu como se houvesse aí um problema teórico, e geralmente os autores que comentam sua obra não o tangenciam como tal, ainda que geralmente se atribua "As palavras e as cosias" como um livro nada fácil de se compreender. Ao que parece ele lida com a Representação como um elemento deslocado funcionando de modo outro num outro sistema, não como uma continuidade, mas de fato ela funciona aí do mesmo modo, não só como totalização do sentido mas expressamente atribuídas como premissa instituída na época anterior, e esse é o motivo pelo qual as ciências humanas são o que são para Foucault, apenas pseudo-ciências.
Em todo caso, a oscilação é muito nítida, entre aceitar que as duas eras são um contínuo da mesma coisa ou realidades distintas, acentuando a incerteza quando se trata da significação histórica do período moderno nos limites  da teoria atual, lembrando que Foucault não lida com a representação clássica ao modo de Heidegger , como uma constante do pensamento ocidental, pelo contrário, conceituando-a como uma ruptura moderna em relação ao passado renascentista e feudal.
Essa teoria foucaultiana da permanência da representação moderna no âmbito da contemporaneidade se reveste da maior importância, porque implica a crítica do que na teoria contemporânea se tinha até então muitas vezes tratado como "o sujeito". O que está em jogo veio a se manifestar justamente no horizonte da teoria feminista.
Podemos entender o problema pelo protesto de alguns psicanalistas que julgaram que Foucault estava ignorando deliberadamente o fato de que o sujeito como uma realidade para si, que não só se auto-apreende, mas se auto-constitui no plano dos valores, existe por si, não é uma criação da sociedade burguesa, nem a luta contra os preconceitos e repressões dessa sociedade teria alguma validez se fosse uma luta pela supressão do sujeito. Assim, na conta da sua crítica, esse setor psicanalítico inclui junto com Foucault, exemplares do pensamento "pós-moderno" como expressamente Judith Blutler. Ou seja, o essencial aqui é notar que esse sujeito de sentido na contemporaneidade, é o sujeito da totalidade do sentido possível. Se ele é constituído fenomenologica, hermenêutica ou psicnaliticamente, ele é o sujeito da inteligibilidade do mundo, isto é, da "consciência".
Por um lado, a consciência mantém a sua premissa de estar inteligindo objetiva e unitariamente um mundo de sentido, como na época moderna. Mas por outro lado, ela não precisa mais dispor um saber que confirme no próprio modo dele ser feito, essa unidade da consciência. Resta que há assim uma contradição insolúvel, não dialética,  porque a ciência não se ilude quanto ao seu caráter autônomo, intotalizável, etc.          
Mas enquanto ciência ou Saber, ela  - ou mais precisamente, o sujeito que a teoriza - continua pressupondo enunciar uma inteligibilidade de mundo que só pode estar sendo caucionada pela realidade a priori da consciência do sujeito. Mas se há uma unidade de sentido, independente do fato de que a ciência real não a cauciona, o que está sendo preservado é a unidade do sujeito, ou seja, ao  mesmo tempo a naturalidade que lhe possa ser atribuída como sujeito de uma enunciação universal sobre o que são os objetos do saber tanto quanto o que é ele mesmo em termos identitários - como homem ou mulher, etc. -  e o mundo como a sociedade, a história, etc. Está aí, portanto, o sujeito da dominação possível do mundo natural e humano.
A meus propósitos, não há interesse na denegação da premissa de Foucault quanto a haver uma premissa identitária na teoria contemporânea cujo cenário de desenvolvimento são as ciências humanas. Mas há também o cenário da filosofia e seus ramos, que se mantem independente da realidade empírica das ciências humanas. A questão importante é que na emergência dessa realidade empírica, há duas possibilidades envolvidas, mas Foucault só considerou uma para dela fazer um a priori de toda constituição dessas ciências, isso porque ele atribuiu arbitrariamente sua emergência apenas ao fato de terem surgido as ciências da natureza na sua enformação contemporânea, evolucionista e estrutural.
Assim, por um lado, enuncia ele que as ciências humanas são apenas efeitos do esvaziamento da função de explicação totalizante do mundo. Mas de fato Foucault está explicitando, por outro lado, que essas ciências tem uma problemática própria, a saber, o outro, a alteridade e a heterogneneidade agora visívelmente  constitutivas da sociedade e da cultura além da referencialidade de um grupo que então se constata ter sido apenas o núcleo da tradição "clássica", greco-romana latina distorcida pelo anacronismo, etc. Um vez que esse grupo desconhecia as demais culturas, ele também se mantinha cego para a desigualdade que o constituía, toda produção cultural sendo destinada pela aristocracia com seu cabedal greco-romano estereotipado de valores estéticos e éticos.
Ora, perante  alteridade, as alternativas são, para as ciências humanas, constituírem aportes que permitirão, no plano dos ramos da filosofia, teorizarem de forma alternativa o próprio sujeito da enunciação do saber, isto é, mudarem suas concepções de unicidade, imparticipação, identidade centrada, etc. Ou constituir o outro no seu discurso sobre ele de forma tal que uma vez podendo dizer o que o outro é, no mesmo lance o sujeito se põe como centro desse saber de si mesmo e do outro - de todo saber - de que o próprio outro é incapaz.
Foucault só considerou essa alternativa de dominação do outro pelo discurso sobre ele, mas Focault mesmo é um exemplo de que a questão humano-teórica da contemporaneidade, a alteridade e a heterogeneidade, suscita uma possibilidade inversa, que é a implicação da liberação em relação ao sujeito centrado-identitário, isto é, liberação em relação à dominação identitária que agora está despossuída de sua ancoragem metafísicas como de todo o pensamento humano do passado, constituído na exterioridade do conhecimento da heterogeneidade, que agora evidentemente não se trata de simplesmente desconhecer, mas reler criticamente, compreender a que conduz nos termos da dominação.


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  Escrevendo a propósito de  "Variações sobre sexo e gênero: Beauvoir, Wittig e Foucault",  Butler tematizou justamente o dualismo cartesiano de mente e corpo, mas num questionamento historicamente complexo. A edição de "Feminismo como crítica da modernidade", da ed. Rosa dos Tempos, apresentou uma tradução muito mal feita do seu texto, cuja obscuridade só foi excedida pela tradução do texto de Drucilla Cornell e Adam Thurchewell onde, à página 170, exibe-se verdadeira lacuna de sentido. Outros autores apresentados nesse volume tiveram melhor sorte.
Mas o argumento de Butler, no que é antecedido por uma panorâmica da teoria feminista, pode a meu ver ser aproximado pelas fórmulas sucintas de Jane Flex ("Pós-modernismo e relações de gênero na teoria feminista"), cujo texto traduzido no volume de Heloisa Buarque de Holanda a propósito do pós-modernismo, está bem assimilável.
Se por teoria feminista num nível em que podemos situar um pensamento atuante na problemática de sexo e gênero  - não mais uma subsunção imediatista  das relações privadas à teoria marxista pelo que sexo era visto como "relações de propriedade em ação" - então estaríamos num momento histórico em que a teoria  já consolidou sua crítica ao que Flex discriminou em termos de preceitos da mentalidade aufklarung (iluminista) - portanto, mentalidade típica do período moderno.
Esse contexto aufklarung é posterior a Descartes como aquele do triunfo do empirismo no século XVIII, mas o ponto em comum é "a noção de que a razão está desligada da existência meramente contingente", é relançado expressamente como a "disjunção cartesiana" entre corpo "pré-social e pré-linguístico" e a instância em que essas categorias do sentido são manifestas.
Mas na verdade, tanto Butler quanto Flex estão criticando certas concepções teórico-feministas que começam por se conceituar críticas do dualismo cartesiano e da mentalidade aufklarung, mas na realidade não conseguem escapar dos seus pressupostos. Assim, ambas estão posicionando-se de um modo que não pode ser apreendido como normalmente se faz até mesmo explicitamente em nome do objetivismos iluministas, isto é, da exterioridade da teoria femista mais atual e como uma tentativa de ridicularizá-la.
 Essa crítica que chamarei objetivista, está jocosamente encenada no "Pequeno manual de filosofia para sobreviver a um papo-cabeça" de Sven Ortolli e Michel Eltchaninoff.
Um jantar é simulado, e os convivas, típicos do mundo adulto do profissionalismo liberal ou da produção cultural, oscilam entre esgrimar polidamente ou meramente entreter-se uns com os outros com os meios da conversação intelectualizada. Então os temas candentes da filosofia atual vão se sucedendo, como o que deve ser esperado infalivelmente, e o narrador esperto nos apresenta os truques para nem aborrecer-se nem parecer anti-social entre os convivas.
Esses truques tornam tudo engraçado, pois ao mesmo tempo que superficial, a resposta devendo ter seu charme, para isso ela precisa ir de algum modo ao âmago da questão - trata-se de uma espécie de etiqueta entre o que se deve ou não se deve dizer sobre o que se pensa, e o efeito cômico é a decalagem entre o dizer e o pensar, a qual é expressa ao leitor como a explicação da estratégia apresentada como aquela que deve ser seguida a fim de obter sucesso social no evento.
Tudo corre bem para o conviva exemplar, que se sai bem de todos os torneios de brilhantismo inóquo, até esse ponto que precede imediatamente "o café e o digestivo", em que alguém cita, entre o poético e o apologético, de Beauvoir a propósito do tornar-se mulher. Todos concordam e o conviva exemplar, tendendo à esgrima perante tamanho acordo, para que caiba a ele o mérito tácito de quebrar a monotonia, resolve que é o momento de "soltar uma bomba", e de Beauvoir transitar a Judith Butler, porque "comportada, poeirente, a frase de Beauvoir ainda identifica excessivamente a Mulher a uma essência imutável e até mesmo forjada".
Assim, é preciso espantar a burguesia: "é o gênero que faz o sexo", e "o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza", citações resumidas após as quais deve-se explicar que " para a filósofa americana, a Mulher não existe, aliás tampouco o feminismo, pois a construção puramente social do gênero, longe de se opor a uma natureza irredutível do sexo, torna este último igualmente cultural e ficcional"
 O cálculo sai errado, porque logo todos estão contra o argumentador, ou pelo menos ele assim suspeita por um ou dois olhares que lhe lançam e por trás dos quais ele adivinha a pergunta sobre de que gênero ele mesmo é. Alguém deverá dar uma guinada à direita no plano da fala, e enquanto o conviva exemplar escava na direção do leitor o espaço vago dessa fala na qual até mesmo ele poderia instalar-se a fim de permanecer na posição central da conversação grupal, a discussão se acirra e a estratégia sobra para ele como um "tudo ou nada empírico": indagar a algum pai de crianças presente - que responderá que as crianças desde cedo comportam-se conforme as premissas binárias do sexo (feminino e masculino anatômicos) que são ainda as do comportamento (do gênero).
O argumentador confessa aos leitores que há um "schoking!" - portanto, que se perdeu, após ter começado tão bem... Não podendo esquivar-se, completa o determinismo com uma pesquisa revelando que até os primatas exibem a mesma constância, expondo-se a ser ele mesmo chamado de primata - ao que ele apenas pode acrescentar que teria querido expressar "ninguém nasce animal, torna-se um" ou "tudo é cultural", não obstante - mas agora o conviva exemplar é o próprio leitor que estaria devendo assimilar prazeirosamente o script do narrador -  indaga-se se "você" (ele) "não seria do gênero hipócrita".
            Ora,  aqui nós devemos nos indagar, sim, mas sobre o estatuto do erro: o narrador errou porque antepôs justamente Butler a Beauvoir, mas num meio de beauvoiristas; ou por que não entendeu devidamente a Butler; ou porque mesmo antepondo justamente, Butler é (seria) em todo caso indefensável?
A questão enigmática é o intervalo que vai do "ser mulher" como resposta do gênero ao sexo - ainda uma posição à Beauvoir - e o determinismo do sexo em relação ao gênero, posição anti-Beauvoir, mas também, aparentemente pelas citações, ainda mais anti-Butler. Assim, esse determinismo seria a voz do "sujeito dominador" ou da "mulher alienada", clamando contra ambas. O pai das crianças, no entanto, não faz mais que confirmar o "truísmo" da dominação. O verdadeiro erro do esgrimista parece ter sido escolher as armas do empirismo, no qual, porém, ele depois se aprofunda apenas porque não há mais como salvar-se:"mergulhe mais voluptuosamente ainda na selvageria e invoque... os macacos".
Começando por uma radicalização de Beauvoir com Butler, ele se conduz a uma posição pretérita a ambas, a que justapõe o nonsensse da conciliação total. O engraçado a meu ver reside, porém, na irredutibilidade do fato. A favor do argumento, ou não, o empirismo fecha a questão, e só resta o espaço para o que se queria evitar, estragar o acontecimento ao provocar o tudo descambar para as ofensas e altercações puramente pessoais. O que é filosófico nesse trecho, creio que podemos recuperar apenas indagando o que é a hipocrisia, nesse contexto, ademais do nonsense que, por outro lado, é justificável como a boa intenção de não estragar o jantar. A hipocrisia real  do ponto de vista do pensamento, seria ter continuado empirista apenas por niilismo, ou, pelo contrário, ter começado por negar a evidência empírica?
Ora, a primeira alternativa seria ainda mais hipócrita, pois o cálculo de sua afirmação ou negação teria por critério apenas o sucesso mundano ou o (des)-prazer da identificação com sua própria fala, a neurose obsessiva de não ser contraditado. Pois, efetivamente, aí está o fato indeslocável, frente a que se põem as posições variáveis, mas conjuntamente denegadoras ou indiferentes, por relação ao fato. Que fazer dele?
Só se sabe de um hiato a partir daí, e a conversa só prossegue se alguém conseguir ressuscitá-la, o que subentende que o efeito deletério ao dever-ser do acontecimento foi maior ainda do que pareceu inicialmente. Consegue-se salvar as aparências, mas somente após o estrago feito, transitando do impossível-impensável corpo - "noção caduca" já mercatorizada/vulgarizada pelo marketing, para as alturas filosófico-tradicionais da "carne", ou mais interessante ainda, para as proximidades estéticas pós-modernistas do "quase carnal", o erótico, etc.. Mais concretamente, transita-se da teoria para a referência desse filme, essa música ou essa literatura.
No entanto, a decisão sobre o erro não foi levada adiante. Esse o hiato intransponível, talvez, mais que a desavença. Se não podemos extrapolar o escrito, tudo o que ele autorizaria a supor é que subentende haver coincidência de Beauvoir e Butler como ambas deslocando o fato empírico, por esse deslocamento inserindo sua posição politicamente à esquerda nessa questão da dominação ligada à sexualidade, mas assim confrontando uma posição cujo caráter à direita não está claro a priori.
O homem da dominação e a mulher alienada - são eles capitalistas ou marxistas? Podem ser ambos? Para a crítica marxista que Beavoir deslocou, a dominação da mulher é uma questão de sexo, não de gênero. Ela é biologicamente mulher, e sua dominação se define pelo aprisionamento doméstico, pelo que troca seus favores sexuais pelo sustento do marido que com isso se torna autoridade sobre ela. Sua liberação é pensada dualmente, nos termos cartesianos de corpo e espírito: por um lado, resgatar sua biológica sexualidade feminina (ginocentrismo), por outro, integrar-se ao mercado de trabalho como uma consciência sem diferença, consciência universal, onde todo discurso da heterogeneidade seria ainda apenas biológico (licença de gravidez/amamentação, creche).
O existencialismo, desde Beavoir criou o gênero como uma realização que iria estender a diferença ao campo da consciência. Como antepôs Jane Flex, nem o universalismo marxista pode ser ora suposto uma liberação real do ponto de vista da teoria feminista, "nem nós devemos esperar que haja um equivalente feminista para o marxismo (falsamente universalizante)". A teoria feminista dever recusar afirmações nesse sentido, inclusive se forem feministas, a seu ver, e isso por que, "gravidez e educação de crianças ou relações entre membros de uma família" não são realmente limitadas como funções do capitalismo.
Ou seja, como me parece ainda mais importante ressaltar do que acentuar a obviedade do fato de que todas essas coisas antecedem o capitalismo por serem essenciais à espécie,  argumentar contra o casamento do tipo barganha de favor sexual, não tem sentido na era contemporânea, quando o casamento se tornou uma expressão da sexualidade de ambos, homem e mulher.
E de fato, isso chega a ser contraditório com a existência do prazer da mulher no casamento e de sua liberdade quanto à opção do seu trabalho, visto que a domesticidade e o cuidado da família é uma ocupação real - não o que se substituiria verdeira, não utopicamente, por eletrodomésticos que trabalhassem sozinhos. O marxismo é um sócio-evolucionismo, e a escolha cultural de mulheres por não se separar dos filhos pequenos, ou por desenvolver relações não capitalistas de trabalho onde a conjugalidade é intersubjetivamente algo existente, está sendo desrespeitada como uma opção existencialmente válida por  um discurso que se arroga feminista.
Assim, isso cabe na indagação de Butler: "Quando o feminismo essencial é finalmente expresso, e o que temos chamado de 'mulheres' não possam se ver nesses termos, que deveremos concluir?  Que essas mulheres estão enganadas ou que não são absolutamente mulheres?"
O interessante é que essa indagação completa o texto que estamos apreciando, mas como uma reverberação da pergunta culminante no movimento do sentido, acerca de qual a opção melhor nesse caso da necessária extrapolação às previsões iniciais da teoria: "mostrar que as mulheres tem uma essência mais abrangente" ou "voltar àquela promissora sugestão", a de Beauvoir, inessencialista mas  tanto denegadora da quididade quanto da necessidade natural , pelo que essência, ou fato natural, "não passa de uma opção cultural imposta que se tem disfarçado como verdade natural." Portanto, contrariamente ao que poderia parecer, essa conclusão do texto reproduz exatamente a questão insolúvel do jantar.
Nós não sabemos ainda se podemos nos descartar do fato, mesmo que saibamos que "o corpo" sobredeterminado por um conceito a seu respeito, é sempre o conceito sobredeterminando-o, e por isso, uma saída do dilema que iria retornar à essencialidade em sentido biológico apenas recoloca os mesmos problemas que a outra extremidade do dilema, o total inssencialismo. Assim, Wittig é exemplar de uma tentativa assim, pelo que o corpo culturalizado pela dominação é dicotomizado em masculino e feminino, por onde as zonas erógenas funcionais a essa oposição são cultura, não natureza. Mas haveria  um corpo erógeno natural - portanto, biologicamente fundado -  o que Wittig chamou o corpo lésbico, cuja eroginia seria semelhante ao que na psicanálise se chama o corpo da criança, ainda que já sexuado como o corpo adulto. O corpo natural estaria recalcado pelo corpo cultural, e a liberação consistiria na recuperação da natureza. Wittig argumenta pela supressão radical das categorias sexuais de homem e mulher, mas contraditoriamente a seus parâmetros desconstrutores do "sexo", apenas amparando-se na argumentação de que existe um corpo naturalmente sexuado, o que estaaria expresso no corpo lésbico.
O texto de Butler havia se constituído como uma panorâmica crítica das opções dos teóricos feministas propostas desde o marco da enunciação de Beavoir a propósito do tornar-se mulher, e nisso o movimento textual é semelhante ao de Flex. Também a conclusão a que chegam é a mesma, num certo sentido. Assim, o que ambas poriam em questão como inessencialismo total é ilustrável por Flex ao notar que ao desinvestir radicalmente o biologismo de sua posição fática como algo teoricamente sustentável, o que "ficou claro" foi que "uma tal (aparente) disjunção entre sexo e gênero, ainda que politicamente necessária, baseava-se em oposições problemáticas e culturalmente específicas, aquelas entre 'natureza' e 'cultura ou 'corpo' e 'mente'. Quando algumas feministas começaram a repensar tais 'oposições', novas questões surgiram: a anatomia (corpo) não tem qualquer relação com a mente? Que diferença faz na constituição de minhas experiências sociais que eu tenha um corpo especificamente feminino?"
Assim, o descarte a priori de um ou outro aspecto é que se tornou questionável.
Aqui são dois problemas limites que me parecem enunciáveis. A princípio, o que Flex enunciou como o bastante para invalidar a premissa de que possuímos meios de solver a opção entre natureza e cultura, pois nas vertentes teórico feministas que começam pela adesão a um dos caminhos, em detrimento do outro, prosseguindo como argumentação em prol dessa escolha,"o que permanece mascarado" vem a ser "a possibilidade de que nossos conceitos de biologia/natureza sejam enraizados nas relações sociais", em vez de poderem ser dicotomizados a princípio do que é a cultura.
Mas também, na minha concepção é importante notar que o único imperativo denegador a priori da possibilidade da biologia não ser totalmente descartável , ainda que não se pretenda um biologismo, quando se trata do gênero - isto é, quando se trata do que se concordou ser preciso, por outro lado,  desconstruir  como algo em si - seria que assim estaríamos recirculando a facticidade que embasa a dominação. Mas de fato, podemos a-historicamente definir "dominação", além do que sabemos sobre os modos como sem dúvida alguma ela se exerce atualmente?
 Tanto Butler quanto Flex deduzem de sua panorâmica que inclui as vertentes existencialista (Beauvoir), estruturalista e psicanalítica (Kristeva) que tem se confrontado como opções de teoria feminista, que conforme Flex "é o posicionamento dessas concepções de modo tal que somente uma perspectiva possa ser correta (ou propriamente feminista) revela, entre outras coisas, a incrustação da teoria feminista ao próprio processo social que estamos tentando criticar e nossa necessiade de uam prática teórica mais sistemática e consciente".
Assim,  ela decisivamente rejeita a variedade de explicações causais da definição das relações de gênero, e consequentemente da dominação do gênero: "todas elas proporcionam úteis hipóteses para o estudo concreto das relaçõos de gênero em sociedades particulares, mas cada um desses sistemas explicativos também me parece profundamente falho, inadequado e predominantemente determinista". Aqui o exemplificável seria a tese de um sistema sexo-gênero implicado na organização da produção. Linda Nicholson ilustrou uma posição assim atribuindo-a a Ferguson e Folbre, numa linha de integração marxismo-feminismo, criticada por Iris Young não porque traga para o sentido de trabalho aquilo que é executado pelas mulheres na família, mas porque, inversamente, preserva a noção de trabalho autônomo, como dispêndio de forças, em vez de levantar quais as questões relativas ao gênero.
A crítica com tal grau de incisão, de Butler  foi, de fato, a mais do que o causativo redutor dos sistemas que linearizam toda a história como dominação de gênero, mas incluiu todas as pretensões de situar o gênero como "invenção radical". A crítica incide sobre o aspecto epistemológico da problemática. Assim, ela não faz distinção entre psicanálise, marxismo e existencialismo enquanto, mesmo sabendo que são teorias diversas, todas estariam de  um mesmo lado dessa barreira epistemológica - assim, no marxismo a subjetividade do gênero vimos socialmente construída como efeito da dominação. Mas aqui atua o mesmo limite que, vindo por uma premissa  inversa como na psicanálise, pelo que o construído gênero é puramente individual, se constata, pois não se tem a princípio onde e como instituir o princípio da realidade - se ele é necessário ou pode ser inventado.
Podemos, pois, sintetizar a posição de Butler e Flex, ajustando a expressão desta à premissa de  Butler de que qualquer posição em  que alguém se situa para si em termos sexuados não deve ser dicotomizado em relação a algo que isso essencialmente não é. Por aí, sua crítica de Wittig,  pois o corpo lésbico ou pansexuado, se definido como o natural, na verdade está dicotomizado em relação ao corpo hetero, portanto, pode vir a recalcar a este como ao seu Outro. Mantem-se preso na oposição binária.    
 Qualquer posição deve, portanto, conforme Judith Butler, "tornar-se um fenômeno cultural múltiplo", o que designaremos a prescrição metateórica assim como especificada como o situamento correto da problemática feminista por Jane Flex.
Observe-se que isso implica que ser  um fenômeno cultural para o gênero não significa que Butler esteja situando o gênero aqui ou ali, mas que, exatamente como observou Flex, para pensar o gênero nós temos que antes tematizar como, pela mediação de que conceitos e de que aparatos situados na cultura, o gênero está sendo pensado por nós ou pela referência que estamos examinando ( teoria, discurso, instituição, etc .).
A meu ver, o gênero mesmo como o que é dado a nós desde a cultura, seria como entre as duas margens do texto em  Barthes - uma pela qual nós meramente nos identificamos com o texto ao reproduzir por nós mesmos o que ele encena (texto de prazer), e aquela pela qual nós realizamos a crítica da sua leitura (texto de fruição). Mas é entre ambas, na fenda que sua irredutibilidade instaura e de onde só podemos entrever cada margem, que está o nosso interesse/gozo do texto, o sentido do que nós mesmos estamos empreendendo ao ler - neurose ou erotismo , em todo caso libido.
O que nos faz querer  nos situar como leitores, isto é, a despeito de tudo o que nele possa nos enfarar, essa sedução do texto suscitada pela insinuação do hiato (como todas as formas de apenas deixar entrever a superfície se costuma afirmar que é sedutor) é o que nós mesmos suscitamos nele enquanto o que realizamos como leitura  transitando ambas as margens. O nosso gozo é o poder-ser político do texto, o que permitimos ou coibimos que ele faça, assim como nosso trânsito entre politicamente instauramos. Nesse gozo, porém, está a perda do si como do sujeito universal, que teria ao mesmo tempo que somente para si, a capacidade de enunciar universalmente  o sentido do em si do texto e da cultura. em algum momento, pois, o sujeito se delimita dentro da cultura, como não passível de ser a consciência universal cartesiana que ele sonhava ser na fruição.
Ou seja, esse sistuamento teórico  de Butler e Flex equivale a desconstruir o gênero, mas não por uma posição definível alternativa e a priori a seu respeito. Ora, a partir desse ponto, Butler e Flex deixam de concordar quanto àquilo que estamos examinando aqui, a saber, o situamento de Foucault no horizonte da teoria feminista assim reposicionada. Vamos examinar agora as suas posições bem explicitadas a propósito de Foucault, nesses dois textos que referenciamos.

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   Jane Flex e Judith Butler referenciam Foucault ao longo dos seus exames da teoria feminista. Se dispor alguma verdade em si do gênero é uma pretensão contraditória com o que já se sabe ser a necessária  tarefa de desconstrução do gênero dado como facticidade, conforme Flex, tal pretensão apenas testemunha o que Butler explicitou, isto é, que a consciência cartesiana continua subrepticamente a atuar na contemporaneidade, pois a consciência cartesiana implica a justificativa filosófica de uma pretensão assim.
Historicamente, contudo, a contemporaneidade é a destituição da justificativa filosófica da consciência universal cartesiana. Mesmo uma versão neocartesiana, como a fenomenologia de Husserl, teve que desenvolver um aporte culturalmente inserido, o que se operou com o trânsito ao "mundo da vida".  Mas enquanto ainda supondo redutível toda cultura a algo descritível como consciência, nenhuma fenomenologia escapa à condenação expressa por Gorman a propósito da sociologia de Alfred Schultz, a saber, ser uma "visão dual" que por um lado se afirma unicamente cultura, descarte da ciência empírica ou da biologia que se pretende independente da sua relatividade na cultura, mas por outro  lado é um a priori da objetividade, aquela mesma atribuída pela concepção moderna, à ciência empírica.
A fenomenologia se pretende, na verdade, uma ciência nesse sentido moderno. Isto é, uma ciência que fala não a especificidade do seu objeto, mediada pelo seu método e seu momento histórico, mas a totalidade do Real. Assim, começando pela crítica ao poder da ciência na sociedade contemporânea, na verdade a fenomenologia só faz a crítica da tecnologia. Mas logo, o que ela realmente está fazendo é pretender passar como o que teria legitimamente esse  mesmo poder. Ora, é tal poder que é não tanto ilegítimo, mas ilegitimável do ponto de vista da Episteme contemporânea, onde o único meio de impor um poder assim é a força bruta, mas não podemos justificar tal meio como algum tipo de legitimação no plano dos conceitos.
Nós podemos constatar efeitos de validação de enunciados dentro da especificidade do seu regime enunciativo  - não pretenderíamos censurar Alencar porque Iracema nunca existiu faticamente, mas se um historiador afirma que certo fato ocorreu, nós poderíamos contrastar sua proposição aos documentos que apresenta, o que não invalidaria sua obra inteira caso alguém descobrisse que  não se verifica, mas sim a sua afirmação pontual sobre o fato. No entanto, podermos fazer isso não desdobra automaticamente caução a uma norma ética que se quisesse justificada pela natureza do universo. Mas conforme notou Butler, "como Beauvoir, Wittig entende gênero como proscrição e tarefa;" isto é, ambas se posicionam autorizando a dedução pelo que "de fato, gênero é uma norma que lutamos por encarnar." Ora, qualquer opção por garatir a legitimidade universal de uma alternativa dentro da concepção de norma, não escapa à pretensão de validez que era a mesma portada por aquela posição da outra norma que se queria criticar.
Explicitamente, nos textos de Flex e Butler, a contemporaneidade é a ruptura em relação à filosofia do período moderno justamente porque afirma-se agora a inexistência de um "ponto de Arquimedes "a partir da qual poderíamos ver (e representar)" aquilo que é ao mesmo tempo pressuposto como a totalidade da cultura, na expressão de Flex, pois "o objeto visado (totalidade social ou arranjo de gênero) teria de ser apreendido por uma mente vazia (a-histórica)", passível de ser transcrita por uma "linguagem transparente" ao mesmo tempo que estando transcrita nessa linguagem - mas que obviamente não pode se concretizar senão em alguma língua ou tipo de texto materialmente existente.
Podemos facilmente reconhecer nesses dois projetos - uma mente universal ou Cogito além da cultura, uma linguagem dessa mente universal -  o período moderno compartimentado tipicamente entre Descartes e Leibniz. Conforme Flex,  "a possibilidade de existência de cada uma dessas condições tem sido considerada extremamente duvidosa pelas desconstruções dos filósofos pós-modernos".  
    Aqui a expressão pós-moderno vem a calhar como o que se situa após o período moderno, mas de fato o que Flex está expressando é que mesmo após se ter renunciado explicitamente a Descartes e à filosofia do período moderno, mesmo após estar havendo o situamento contemporâneo, tem ocorrido, como na teoria feminista, um inadvertido aprisionamento nas limitações modernas.
O pós-modernismo, praticado terminologicamente em Flex, implicaria portanto numa revisão crítica da contemporaneidade cujo objetivo é libertá-la daquilo mesmo que ela já enunciou ser preciso superar, ainda que ela tenha apenas ilusoriamente suposto já ter conseguido isso.
Então Flex referencia "a obra de Foucault (entre outros)"  que põe em evidência o fato de que qualquer discurso que afirma uma verdade está implicitamente suprimindo no seu âmbito de vigência, outros discursos que ameaçariam solapar a sua autoridade como enunciador dessa verdade. Nós não podemos, nem deveríamos querer, mudar as condições do discurso como aquilo de que deriva esse efeito do "conhecimento" (episteme). Essa autoridade de cada discurso como Episteme é a materialidade da linguagem. Mas nisso nós só estamos constatando  a alteridade do signo em relação ao verdadeiro enunciante que não é o sujeito da enunciação do discurso.  Se não fosse assim, nós não poderíamos distinguir entre diversos discursos, quanto à sua possibilidade de vigência para nós.      
Pelo contrário, o verdadeiro enunciante que é a pessoa que fala, está em situações muito variáveis em relação ao sujeito da enunciação do discurso. Por exemplo, podemos contar a mentira que outrem disse, mas enquanto estamos contando a mentira, nós mesmos a estamos enunciando enquanto repetindo o enunciado implícito no discurso (a mentira). Ou podemos estar enunciando algo como uma verdade, e então enquanto enunciando isso, somos abstraídos na nossa diferença em relação ao sujeito do discurso justamente porque ele coincide inteiramente conosco. Além disso, nós podemos pensar que estamos enunciando uma verdade de nós mesmos, mas só depois descobrirmos que aquele discurso era contrário aos nossos interesses. Ou pode ser ainda que uma pessoa fique a vida toda identificando-se com um discurso que não expressa verdadeiramente o que ela quer ou faz e que é visível a  outros. A manipulação dos efeitos do discurso pelo qual se induz a opinião pública a crer na identidade entre o sujeito de um determinado discurso e o sujeito possivelmente confundido como seu enunciador, pode ser constatado como algo corrente na baixa política, nas utilizações desonestas do marketing, etc.
A enunciação e o enunciado não são, pois, a mesma coisa. Mas não é fácil para cada um de nós, ou talvez nem mesmo seja possível, estar totalmente cientes em todos os casos, da nossa decalagem em relação ao signo. Mas a diferença da enunciação e do enunciado não pode ser dada na estrutura de qualquer discurso. Não pode ser de fato performatizada no discurso, isto é, na linguagem, e para entendê-lo temos que ser a pessoa da enunciação ou entender a sua posição, temos que já saber que não somos a pessoa do discurso. Por outro lado, a questão que estamos examinando é que entender isso não implica que a pessoa da enunciação possa ser uma mente universal vazia a priori fora de qualquer discurso. Seja o que for que pensamos, nós o aprendemos ou constituímos em alguma linguagem.
Na concepção de Flex, portanto, a teoria de Foucault a propósito do discurso é bastante para resumir todo o argumento da teoria feminista mais recente, contra qualquer versão discursiva da teoria, nesse sentido da criticada pretensão de apresentar-se como verdade do sujeito do gênero tal que, confundindo-se com sua enunciação, esse discurso de gênero passa a "exigir a supressão de importantes e inquietantes vozes de pessoas com experiências diferentes das nossas".
 Na apreensão de Butler, inversamente, se a cultura ela mesma não deve ser definida como "necessariamente preocupada com a reprodução de oposições binárias", isto é, se a cultura não deve ser definida por uma generalização indevida de Saussure uma vez que aquilo que se está afirmando em todo caso é que as oposições binárias são superáveis na experiência, tanto quanto na criação de formas novas na cultura,  a captura teórica na binareidade que se pretendeu desconstruir a princípio, como ocorre à teoria de Wittig, "encontra apoio no primeiro volume de A história da sexualidade" de Foucault.
Aqui a terminologia de Butler se torna a meu ver um pouco imprecisa. Recusa de sexo natural ou pretensão à superação da binareidade pela proliferação, como programa comum a Wittig e Foucault, de fato está subentendendo o exposto por Wittig enquanto uma categoria de corpo/sexo natural. O fato de que o corpo de Wittig define-se como lésbico, pelo exposto de Butler, apenas implica que naquela concepção a ruptura que o homossexual é levado a realizar o torna apto a apreender como artifício aquilo que é desde sempre apregoado como natureza.
Nesse trecho, portanto, se Wittig está relançando de fato uma binareidade de corpo lésbico ou real e corpo hetero ou artificial, isso nela, segundo Butler, é inadvertido, pois a binareidade é que é o artifício. Mas quando Butler se refere a Foucault, ela diz que "a subversão dos opostos binários não resulta em sua transcendência para Foucault". Assim, em Foucault a proliferação ou invenção na cultura é estratégia, não cumprimento de uma realidade prévia. Como se sabe, Foucault não rompeu com a premissa estruturalista.
Pode ser que Butler, quanto ao paralelo Witrig-Foucault, esteja apenas reencenando aquela coincidência dos opostos que ela objetivou mostrar ocorrer entre todas as vertentes pretensamente diferenciadas da teoria feminista, isto é, de um lado existencialismo e de outro estruturalismo psicanalítico. E de fato, esse é um dos objetivos enunciados do texto, ainda que a expressão "encontrar apoio" induza a crer que ela está pensando a teoria de Wittig como enunciável desde uma posição exclusivamente foucaultiana.      
Em todo caso, a nossos propósitos o interesse agora é a interpretação de Foucault por Butler, enquanto o teórico dessa história da sexualidade "que sustenta improváveis mas significativas consequências para a teoria feminista".
Conforme Butler, o diagnóstico  de Foucault a propósito da dominação de gênero é que "a categoria de sexo pertence a um modelo jurídico de força que presume uma oposição binária entre os 'sexos'". Já "sua tática, se assim pode ser chamada, não é transcender as relações de força, mas  multiplicar suas várias configurações, de modo que o modelo jurídico de força como opressão e regulação não seja mais hegemônico".
 Então Butler mesma localiza o que de fato implica opor, isto é, diferenciar, Wittig e Foucault. Este "não pretende mais questionar a realidade material de corpos anatomicamente distintos como o faz Wittig, mas indaga ao invés como a materialidade do corpo vem a significar ideias culturalmente específicas".
  Poderíamos questionar se Wittig realmente negou a diferença anatômica ou se o que ela negou foi a sobreposição da anatomia à sexualidade, pois não há ainda ponte entre a descrição de caracteres corporais e a realização sensível da eroginia. Por exemplo, mesmo que se consiga descrever na neurociência, como um impulso num certo ponto do corpo é traduzido cerebralmente em termos de eroticamente prazeiroso, isso não explica porque esse ponto pode traduzir esse impulso, ou não garante que haja pontos que não possam. Mesmo assim, podemos notar que ancorar uma concepção de gênero numa verdadeira eronigia do corpo não escapa a uma redução biológica ao sensível natural, ainda que alternativo em relação ao politicamente dominante, do sexo.
Se essa é a crítica de Butler como a contradição de Wittig, quanto a Foucault, Butler conclui que para ele o que o poder investe é a materialidade dos corpos. Assim, a história da sexualidade é uma história das formas pelas quais o poder molda a materialidade dos corpos enquanto diferenciantes. Já a concepção real da sexualidade seria para Foucault segundo Butler, que a sexualidade é uma duplicidade no sentido de haver uma alteridade na sua estruturação significante, mas a forma pela qual esse diferencial é reduzido a uma contraposição tal como macho e fêmea, é a operação jurídica do poder sobre os corpos.
Isso é ilustrado por Butler com a análise de Foucault sobre o caso de uma hermafrodita, alcunhada Alexina, ou seja, alguém que porta a duplicidade. O problema real do hermafrodita, na concepção de Foucault, não é que ele porte uma duplicidade onde só existiria por natureza ou na consciência, a unidade. E sim que, sendo estruturado diferencialmente como todo significado sexo, sobre o sexo incide a exigência do poder de ser uma coisa ou outra, ao mesmo tempo que só se é uma coisa para a outra. Assim, é a ambiguidade do hermafrodita que faz o seu problema social, não obstante a verdade profunda, que o poder silencia, é que essa ambiguidade é fundadora do que resulta como qualquer possibilidade de reduzi-la num ou noutro sentido.
Assim, após incursionar por uma retrospectiva do que se apresentou como as várias armadilhas da teoria feminista, Butler enfeixa todo exposto passível de ser condenado como o que se pode fazer "com a proliferação foucaultiana à mão". Nada mais que um retrocesso "de trezentos e sessenta graus a uma noção de invenção radical, apesar de ser aquela que emprega e distribui convenções culturalmente existentes e imaginárias" - ou seja, conforme leio a frase, nada mais que uma contradião manifesta. Após essa incursão, torna o texto a focalizar especialmente a proximidade de ambos: "pode ser que Wittig e Foucault ofereçam  (uma  ou diversas) identidades que, não obstante todas as suas restrições, permaneçam utópicas".
Entre Flex e Butler constatamos, portanto, posições simetricamente contrastantes em relação ao proveito de Foucault para a teoria feminista. Mas Butler focalizou especificamente a história da sexualidade e  o que seria a concepção foucaultiana do gênero, não a sua teoria do discurso ou da episteme. Torna-se necessário a aproximação do texto foucaultiano em tela, para que possamos examinar como  nele está constituído o estatuto daquilo que Butler atribui como sua noção principal, "o modelo jurídica de força que presume uma oposição binária entre os sexos".
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  A oposição entre enunciado e enunciação poderia se estabelecer como o referencial daquela oposição maior entre o moderno e o contemporâneo. Aqui, esses dois pares de conceitos estão sendo posicionados como eixo do que será nossa aproximação ao pensamento foucaultiano. O par linguístico e o par histórico.  Entre ambos está o que se verifica como o principal quanto à definição do par histórico, a saber, a questão do sujeito.
O par linguístico, como já observamos, coloca dois níveis problemáticos. Aquele pelo qual temos que entender que é esse sujeito cuja enunciação está restrita a si, no  momento mesmo em que uma espessura se instala entre ele e o objeto que ele enuncia, a saber, o sujeito do discurso (enunciado). Obviamente, essa pessoa da enunciação não é o sujeito moderno. Por definição ele é o impensável do contexto moderno, e nesse sentido, o período moderno poderia ser metonimizado como "cartesiano".
Essa é a pessoa que a fenomenologia e a psicanálise tentam conceituar. Ela é a consciência, mas justamente não é a consciência moderna porque ao se por, ela se põe para si, na sua restrição de si, na sua concepção de si como não sendo a consciência universal que ao contrário de si, é linguagem e se há  um sujeito da linguagem como universal, não é consciência, é meramente discurso, enunciado, letra.
E aquele outro problema é o que consiste na linguagem enquanto esse transcendental não-kantiano porque não a razão em si, mas letra. Como a linguagem está ao mesmo tempo sendo: a) o que impede o limite moderno que seria a kantiana razão em si, no que a linguagem implica a oposição de enunciação e enunciado; e b) aquilo em que a enunciação não pode residir?
Eu não considero que se deva descartar a princípío o abismo entre as duas maneiras de lidar com essas questões, a fenomenológica e a estrutura/psicanalítica. Há apenas dois tópicos que lhes são comuns uma vez que ambas as maneiras são formas de  um mesmo campo epistêmico, isto é, de um mesmo estatuto do problemático.
Por um lado, presume-se que a problemática só pode se elucidar partindo-se da segunda questão, a saber, da natureza da linguagem. Por outro lado, é preciso estar absolutamente instituído que a consciência nesse sentido contemporâneo, como limitação de si, não significa de modo algum a incapacidade do sujeito em realizar a objetividade, ou  em apreender os fatos do mundo ao menos naquilo em que tais estruturas factuais e objetivas são consensualmente afirmações historicamente verificáveis existindo na cultura.
Pelo contrário, um sujeito que resiste à evidência histórica  está preso à incapacidade de realizar sua auto-limitação, é aquele que está fixado numa identificação fantasiosa de si como sujeito do discurso, em vez de sujeito de suas enunciações. O próprio sujeito da época moderna exibe uma limitação assim, pois ele é incapaz de história como uma ciência social, do mesmo modo que é incapaz de apreender-se na sua limitação constitutiva, não importa o que ele faça, tanto mais quanto sabe que só faz nessa posição limitada, mas a isso ele reserva o estatuto do inessencial e com isso evita pensar-se nessa realidade dele mesmo.
Mas o estatuto dessa limitação, seu diagnóstico, por asim expressar, é variável conforme as abordagens à problemática, fenomenológica ou psicanalítica.  Em todo caso, assume-se que essa limitação não é apenas um fato sincrônico como o que pertenceria ao caso médido, psicológico ou "existencial", mas também um fato diacrônico, algo que porta o mesmo relevo sócio-histórico instaurado  na problemática linguística. Assim, a evidência histórica não pode mais ser disposta como na "técnica" - à imagem de uma verdade qualquer cujo correlato seria o sujeito de Descartes, não a relatividade do discurso no qual ele se situa. Onde a "técnica" pode ser dita atuante na ignorância de si mesma enquanto apenas o que ela é, não a verdade universal do objeto, estamos perante uma regressão histórica do ponto de vista da subjetividade, mas do ponto de vista da sociedade, estamos perante uma dominação como doença dessa regressão socialmente constatável como expressão daquele sujeito regredido.
Estabelecido o que comparte ambas as formas de encaminhamento contemporâneo da questão mesma da contemporaneidade, vamos agora examinar o que as torna soluções irredutíveis.
Fenomenologia, hermenêutica e existencialismo, que a meu ver poderiam ser reduzidas a um mesmo parâmetro "funcionalista", sitnomaticamente mais perto de Kant no tempo que o estruturalismo psicanalítico (Lacan), pressupõe que entre enunciação e enunciado o que há é a linguagem mesma enquanto aquilo que ora ela instaura, ora  como é instaurada. A saber, a transcendência. Se o que a linguagem faz é significar, o significado não é a letra, que só estaria aí como estrutura no sentido de transcendetal a toda fala, mas significado é algo que só se cumpre se houver fala, se houver a decalagem da enunciação.
O significado é o fato situado no mundo dos sujeitos limitados para si enunciantes. Esse mundo é o do sentido, como das falas possíveis estruturadas como são pelo transcendental linguístico, mas circularmente, sendo o círculo expressamente afirmdo como uma condição inescapável do ser (humano=linguístico), o sentido é a realização do significado que só está no falar, não na estrutura ou sistema da letra.
Então do mesmo modo que nessa estrutura há uma decalagem de significante e significado,que essa decalagem é a transcendência, o movimento para além do significante instaurado por ele mesmo no rumo do significado, na consciência de nós mesmos enquanto falantes e limitados à nossa fala mesmo em relação à linguagem, está instauradaa a transcendência como o endereçamento ao outro do discurso ele-mesmo posicionado como nós, transcendentemente como outro da enunciação de sua resposta ou de sua recepção do discurso. O diagnóstico da incapacidade de realizar a transcendência na linguagem, a confusão de si com o discurso é inautenticidade. Uma espécie de má-fé consigo mesmo e automaticamente, com os outros. Mas o modo pelo qual a inautenticidade ocorre, não é a ignorância de si, e sim a negação ora da autonomia da linguagem em relação a nós mesmos, ora negação da nossa limitação constitutiva na linguagem. O diagnóstico dessa má fé é o heideggeriano "impessoal" - o homem da técnica incapaz de apreender-se a si mesmo e à alteridade do outro.
A consciência de si é risco ou rasgo na inteireza igual a si sem transcendência, da letra, mas esses substantivos são verbos, riscar ou rasgar, realizados como transcendência enquanto nós mesmos falantes. A diferença ontológica entre enunciação e discurso, por onde o ontológico é a variável enunciativa mas somente instaurada pelo círculo da discursividade que é esse círculo transcendência,  pode fazer derivar uma política como a dos feminismos em que os significados do gênero já estão dados na cultura, mas a variável enunciativa será nossa posição de escolha entre eles, sabendo porém que individualmente nunca realizaremos exatamente aquilo que escolhemos tomado na inteireza do discurso, mas o realizos como o meu situamento nessa situacionalidade, ambos históricos, e ambos consciência:  minha consciência na realização, o sentido do que realizei como consciência dos outros a propósito do que realizei.
Na psicanálise estruturalista, a consciência não pode ser explicada por nada que esteja na linguagem, e de fato a questão sobre como é que da linguagem se obtem um sujeito não poderia ser respondida. Não se o obtém de modo algum. Além disso, a questão de como o sujeito se conceituaria fora ou antes da linguagem também não tem resposta porque o sujeito é apenas a função linguística do discurso, e se há um sujeito da enunciação, ele não é conceituável discursivamente.
Ou se poderia responder, sim, que a questão tem resposta, mas ela é negativa. O sujeito não se realiza nunca na linguagem, tanto mais o que se constitui é linguagem. Até aqui estamos no inconsciente, ou seja, na linguagem como aquilo que define todo o campo antes saturado pelo senso comum a propósito do sujeito, a psique, a realidade da mente, etc. Não obstante, há a consciência falante enquanto nós mesmos afirmando que há linguagem, enquanto sabendo que não coincidimos integralmente com o discurso, sobretudo, consciência contemporânea, isto é, da nossa limitação na linguagem. A psicanálise antepõe a consciência como o que falta a si mesmo, isto é, estruturalmente consciência da limitação, não da transcendência. Pois, não há transcendência do significado, este é apenas um outro significante.
A descoberta dessa falta a si de si está para sempre vedada ao inconsciente que permanece linguagem,  mas tal que o modo como o inconsciente se estrutura ao longo do tempo em que a linguagem é constituída como plenamente operante ao seu falante, implica o rasgo que vimos já pensável no parâmetro funcionalista, mas não interpretado do mesmo modo que lá, isto é, como a realidade positiva do sujeito, tão pleno ele mesmo na sua limitação, tão significado ele mesmo como todas as significações que ele endereça. A meu ver, nesse ponto o estruturalismo psicanalítico manifesta a sua posição historicamente mais afastada de Kant, e realmente permite notar que há uma crítica profunda precisando ser feita a propósito do parâmetro funcionalista.
Pois a consciência fenomenológica, hermenêutica ou existencialista, realiza para si na verdade a solvência de sua alteridade justamente enquanto para si. Ela é uma pre-compreensão plena enquanto realização desse para-si já dado como algum sentido na linguagem ou cultura - apenas, quanto a esta, não é a universalidade da significação, mas essa cultura determinada como possibilidade de significação - então, entender a pessoa, é entender os significados já dados na sua cultura, quanto àquilo sob que estamos situando a sua inserção. A pessoa se instala na pré-compreensão dessa variação específica, mas vai realizar uma das opções apresentadas, isso ainda ajuntando o que ela tem de singular de sua inserção.
Ora, o estruturalismo não confia nessa imediatez que sendo assim, é o essencial para o funcionalista. Pois, a  pessoa em que podemos pensar é apenas o falante, é o operante de um sistema, não a norma personificada do que, entre várias coisas, esse sistema também permite dizer.
O que precisamos colocar em questão num discurso é que operações estão sendo feitas, e de que sistema se trata, não o que é "a pessoa", sua pré-compreensão como fala plena onde se teria subrepticiamente elidido o intervalo da enunciação - que para nós não existe senão como miragem, senão como dominação ou a impossibilidade de escapar dela. Uma leitura das possibilidades da cultura já foi feita quando se pensa estar instalando a sua pré-compreensão a fim de "compreender" o isso confundido assim com o eu. Mas o funcionalismo abstrai que já operou e que está operando, dá sua leitura como a coisa mesma.
Eu particularmente considero o funcionalismo desleal, como algo que inevitavelmente conduz ao simplismo, reducionismo ou àquilo que ele mais alardeia que está evitando, a objetificação do sujeito. Assim, por exemplo, quando pretendem derivar uma pragmática hermenêutica, esses funcionalistas como Habbermas postulam uma pretensão de validez do sujeito ao seu discurso, universalmente predicável de todo sujeito de enunciação, pretensão que seria fundamento da linguagem. Ora, a validez é o que não é pretendido, mas instaurada pelo próprio discurso, e enunciatividade (caráter de ser enunciado) do discurso se limita ao sujeito do discurso, não se estende ao sujeito da enunciação que não é redutível precisamente do ponto de vista do pensamento, ao discurso ou seu sujeito implícito. Tal argumento que se alardeia transcendental e a priori, é nada mais que uma falácia, aquela designada "do terceiro homem": dadas a definição e a coisa, pensa-se que é preciso haver ainda algo mais realmente existente como a ideia da coisa, mas a definição é sua própria ideia, e a existência é a da coisa mesma definida, nada mais sendo preciso ou sequer proponível do ponto de vista da linguagem.
O rasgo é interpretado como o que a linguagem plenamente operacionalizada no inconsciente efetua, a saber, a castração. O momento em que ao surpreender a diferença sexual  entre o pai e a mãe, que ela não pensava antes, a criança descobre a sua própria irredutibilidade em relação a ambos, pois eles não são o que ela pensava, eles não são a imediatez do seu pensamento.  Mas a outra cena da sua descoberta é que ela não tem aquilo que a diferença parental implica e que vem à existência dela mesma enquanto o lugar que ela ocupa existindo, a relação sexual. Assim o que ela descobre na castração é a diferença entre o seu lugar desde os pais, e ela mesma enquanto trânsito desse lugar impreenchível.
A consciência é a operacionalidade desse lugar desde que para nós ele seja ao mesmo tempo nosso e vazio, intervalo da enunciação ao discurso, nosso lugar na linguagem posto aí pelos pais (significante) que no inconsciente permanecerá apenas o falo (não existe a diferença dos sexos dos pais).
Então na concepção psicanalítica, sempre que algo puder aparecer ou funcionar como o significante pleno anterior à castração, esse algo será, para o falante, os pais ou o significante (falo) e a pessoa inevitavelmente cederá seu lugar a essa autoridade que ela desejará como o estado anterior à sua consciência faltante de si. Se não no apaixonamento heterossexual - que após os inícios, a psicanálise parece ter aceito que não significa necessariamente ser de outro sexo, mas ser outro em relação a si mesmo - essa regressão é patológica, não apenas uma má-fé ou algo  irrefletido.
A reflexão não basta para erradicá-la, é preciso a transferência que ocorre como psicoterapia. Por outro lado, não se ignora que enquanto históricas, as sociedades podem exibir fenômenos de institucionalização de comportamentos expressivos da fixação despótica do sujeito. Mas a psicanálise não pode extrapolar às condições históricas dos despotismos, a interpretação do que causa a regressão, ou o que impede a formação completa, de cada sujeito. Essa formação só pode ser explicada do ponto de vista da trajetória privada, familiarista e  pessoal, do sujeito.
Em certo sentido, a operacionalidade da linguagem não implica apenas a decalagem de nós mesmos ao discurso; mas à sociedade enquanto o meio dos discursos que não é ela mesma nenhum de nós.No entanto, o que é a sociedade concretamente, se boa, despótica  ou anômica, isso não pode ser captado dentro da teoria do efeito-sujeito psicanalítico.
Várias tentativas de se modular socialmente a posição do discurso pelo sujeito foram feitas após Freud, como seria destacável aqui o encaminhamento de W. Reich. Qualquer grau de validez que essas tentativas possam ter obtido como teorias no meio histórico de sua proposição, foi devido a que se cuidou de especificar bem que não se tratava de reducionismo entre os dois polos, psicanalítico e sociológico.
Aqui vemos como Lacan se interpreta como tendo solucionado um problema interno à explicação de Freud. Se a castração em Freud se explica porque a constituição da linguagem no inconsciente, ao longo de suas fases, se torna um percurso ligado à vontade de saber a propósito do sexo dos pais, então Freud exibe uma contradição que ele não pode ripostar dizendo que essa contradição somos nós mesmos. Há algo fora da linguagem como o inconsciente que no entanto, está definido como aquilo que ele realiza, a linguagem ou sua operacionalidade plena, no entanto para um sujeito emancipado do discurso. Esse algo é libido, energia psíquica, desejo.
A sobreposição das fases de constituição da operacionalidade do falante e das fases de sexualização do discurso da criança sobre os pais só se explica por que a constituição é libidinal. Mas que é a libido, como ela pode ser afirmada pré-linguisticamente sem ser um universal cuja objetividade não está mediada por qualquer discurso senão por si mesma como um discurso: biologismo psicanalítico, ou a transcendência pré-estabelecida dos fenomenólogos?
Lacan reduziu o vocabulário da pulsão à do encadeamento significante, isto é, lidando unicamente com o signo e seus efeitos "cibernéticos" por assim expressar, ao modo de acumulações assimétricas operando-se pelo próprio modo de ser do signo, e distribuindo seus valores, etc. Aqui o importante a notar é que para a psicanálise, não havendo a transcendência plena como consciência, tudo o que escapa à fala como hiância ou comunicação, isto é, como interlocução - fala operacionalizada como lugar vazio do sujeito-substância - é o discurso do significante, sob certo aspecto, regressão como plenitude da linguagem em que só ela existe tanto mais seja a do "sujeito", ausência, pois, de intervalo, onde o desejo não era ainda "de", era apenas "isso", mas por aí mesmo a angústia não seria conjurável uma vez que o isso é a condição de supressão da emergência do sujeito efeito da sua fala (consciência).
Mas no sonho, no chiste, na arte, essa regressão não é patológica, é irrupção da natureza profunda que por si mesma se conduz ao fim de si, ao despertar, ao retorno da normalidade comunicativa. Sempre poderíamos, não obstante, reduzir o que eles expressam à sua fixação em algum momento anterior à castração. Além disso, não é qualquer variação de gênero que poderia ser tomada como não patologicamente regressiva.
O que é realizado como maturidade ou consciência necessariamente se traduz, no plano sexuado, a uma restrição do objeto amoroso como um outro. Lacan a esse propósito ensejou uma crítica da apropriação dessa restrição pela dominação histórica do falogocentrismo. Realizar a oposição do gênero não implica a hierarquia do gênero.
Mais ainda do que Descartes, Lacan só é aproximável, porém, como algum Lacan plausível e sobretudo a psicanálise não é uma escola, é uma pesquisa cujo horizonte é sua clínica, portanto está sempre se disseminando em várias escolas cuja rubrica em comum é serem ciência, não filosofia. Houve muito uso libertário da psicanálise por alguns dos seus profissionais como Reich e Melanie Klein, e também usos estéticos que se fizeram nem sempre mantendo-se muito fiéis à letra do inconsciente freudiano, como no surrealismo, mas de um modo geral parece que na curva para os anos setenta, tanto mais depuram-se as variáveis por um rigoroso encaminhamento, como se vê com Lacan, tanto mais o desconforto suscitado pelos aspectos coercitivos da leitura psicanalítica do sexo, da arte e mesmo da cultura - ainda que ela negue lidar com um conceito de cultura - se faz notar.
Quanto a esse aspecto da cultura, é verdadeiramente o calcanhar de Aquiles psicanalítico, pois se  a realização sexual não-ocidental pode manifestar-se na exterioridade da oposição do gênero cujo circuito instaura os tabus na cultura porque a oposição é gerada por esse significante destituidor da alteridade de si no mesmo ponto em que ele articula a alteridade do efetuado sujeito - quando não há tabu sexual numa certa cultura descrita - portanto, não apenas ausência de hierarquia, o que a psicanálise teria a dizer sobre isso, senão que se trata de mentalidade pré-lógica, pré-significante, etc.?
E dizer assim tanto mais ela afirma não ter que dizer nada a propósito, como se assiste deploravelmente no "de um discurso que não fosse semblante", o seminário de 1971. Sobretudo isso interessa à teoria feminista porque os tabus na cultura devem expressar, como significante, a masculinidade da libido.
A repressão expressa por algum tabu teria que existir em toda sociedade, como expressão da impossibilidade do significante outro (mulher) no inconsciente, de uma sexualidade feminina (em vez de apenas feminizante como o objeto do desejo do falo). Isto é, para Lacan teria que se exercer como impossibilitando o discurso mulher, e então a vacilação manifesta de Lacan nesse volume se tece justamente ao redor desse significante: "matriarcado". Que ele, após afirmar não se tratar de algo tratável ou para ser levado a sério, mas depois vai diagnosticar como mentalidade ainda não formada lógica.
 Formação que ele situa como capacidade de enunciação do silogismo aristotélico a partir da pré-existência nessa cultura, do mito "solar", isto é, que expressa a unidade do significante, mitos característicos de sociedades despóticas que então poderão evoluir a civilizadas,  por definição não os mitos de sociedades possivelmente descritas em termos de matriarcado ou igualitárias, etc., que não evoluiriam assim pois não tem o pré-requisito do significante linear. Esse matriarcado, se ele existiu ou se existisse, seria pré-lógico nesse sentido de ser sintomático de incapacidade dos seus membros ao pensamento lógico, isto é, incapacidade de operar a universal oposição binária que o significante determinando por seu deslocamento na cadeia linear (zero ou um).
Mas a antropologia social cada vez mais se tem apresentado como a impossibilidade de universalizar o imperativo sexual psicanalítico, . Por esse motivo e por aqueles já expostos, inclusive a recusa de vários setores da teoria feminista em aceitar tal naturalização do gênero, o pós-estruturalismo é o cenário desse desconforto, mas não o de uma ruptura para com a crítica à fenomenologia movida em nome da premissa do inconsciente, isto é, da irredutibilidade da linguagem ao senso comum da consciência.
Aqui evidentemente tratei o mais superficialmetne possível esses temas fenomenológico e psicanalítico, apenas porque eles são indeslocáveis enquanto ruptura do segundo em relação ao primeiro. O pós-estruturalismo é a consequência dessa ruptura a qual não pode ser ignorada por quem quer que se vote a apreender o cenário epistêmico da contemporaneidade. Nele procurou-se criticar e superar os aspectos menos consolidados da teoria incosnciente.
Assim, creio que a designação melhor seria neoestruturalismo - porque não se rompe com a premissa estruturalista do sistema linguístico saussuriano, apenas abstraindo as possibilidades de se entender significado como algo existente por si além do efeitos do significante. Onde a ruptura até mesmo nessa profundidade existe, por exemplo, em Derrida, já se está no limiar do pós-estruturalismo que pode ser exemplificado pelo que vimos da teoria feminista enquanto recusa de uma unilateralidade teórica que só expressa o devir do póprio ocidente ou discurso do pai.
Em todo caso, no estruturalismo é esse sistema linguagem formalista saussuriano e sua operacionaldiade, o que o inconsciente constitui ao longo de suas fases, e é por seu caráter opositivo que o efeito sujeito se instala como ponto aleatório a articular as séries disjuntas do significante aos seus efeitos de deslocamento (significado). Enquanto a crítica ao estruturalismo, mas permanecendo a questão do inconsciente, apenas institui a alteridade do signo que é colocada como inconsciente linguagem - não há o determinismo do édipo nem a universalidade da oposição binária para Derrida. Se a linguagem é variável como escritura, se há escritura não linear cuja leitura não implica a cadeia significante de Saussure/Lacan, mas vários sentidos de leitura, então a oposição binária não é universal do incosnciente - por aí, não há tabu nem repressão pré-determinados na sociedade. Vemos o quanto isso é proveitoso para os estudos pós-modernistas que não se movem mais como tendo por objeto alguma universalidade do humano, mas apenas em situamentos humanos específicos: culturais, étnicos, ou de gênero.
Deleuze não rompe com a premissa da binareidade universal, mas a relativiza para descrever três formas de sua constituição, selvagem, bárbara e civilizada, mais o esquizofrênico como inventor de constituições possíveis. No entanto, a posição de Deleuze-Guattari não me parece de fato poder ser mantida do ponto de vista da antropologia, sendo muito questionável do ponto de vista analítico.
Já Foucault, habitualmente designado pós-estruturalista, pareceria ter que ser apresentado como alguém que esposa, inicialmente a justificativa teórica do seu posicionamento anti-fenomenológico; e depois a sua própria interpretação do inconsciente, psicanalítica ou pós-psicanalítica. Mas de fato, Foucault insere ambos, fenomenologia e psicanálise, como fatores constitutivos daquilo que é seu verdadeiro objeto teórico: nem o sujeito, nem a consciência, nem a linguagem, nem mesmo o sexo ou o gênero, mas a inserção histórica em que tudo isso se tornou tematizado e porque.
 Por exemplo, podemos evidentemente constatar - como não há quem o dispute a sério -  que entre os períodos moderno e contemporâneo o que ocorre é a irrupção do sujeito privado como pensável. Então, a questão seria que é o sujeito que assim surge. Mas para Foucault a questão é o que isso significa historicamente, em termos justamente de período: estamos dizendo que a contemporaneidade é definível como irrupção do sujeito, ou que essa irrupção é causada por algo mais que se trata de definir como a contemporaneidade?
Se não pudermos responder a isso, a palavra contemporaneidade usada seria sem sentido, vazia. Mas não podemos responder a isso, sem optar por um desses dois caminhos, portanto sem já estar num encaminhamento teórico preciso que se choca inevitavelmente com o seu oposto. No entanto, assim já se está dentro do a priori da contemporaneidade, sem poder pensá-lo em si mesmo. Foucault quer pensar ou descrever esse a priori. Então ele não optou realmente, e mais, ele criticou as opções já dadas do mesmo modo que as teóricas feministas que vimos acima, como meras possibilidades dentro de um campo cujos limites seria preciso desconstruir tanto quanto já evidenciado pelos limites da própria "subjetividade" ou consciência para si que delineia o espaço de ambas as opções.
A meu ver, isso não é asim tão simples e optar por ver na irrupção da subjetividade pensável o acontecimento contemporaneidade em si mesmo é o que devemos investir. Mas essa opção pode ser feita de modo a não implicar o aprisionamento no dilema, se a subjetividade não for o que, como habitualmente se fez, põe a questão de si mema, e sim o que põe a questão do Outro. Eis o que não existia antes no saber filosófico "oficial" do Ocidente, não tanto o sujeito, e é porque a questão do outro não existia que o sujeito não precisava ser pensado para si, mesmo quando já devia ser pensado em si desde que descobriu-se como não imediatamente a idealidade redutora da ""natureza" que agora  já estava preenchida na sua materialidade como o homem natural e a extensão dos trópicos.
Aqui poderia ser acusada uma contradição, uma vez que a questão do outro surge pela alteridade da margem como cultura quando se emancipa a margem e o outro da cultura é dado a pensar, ou seja, por algo mais na contemporaneidade que não a irrupção do sujeito no saber,  isto é, a condição pós-colonial,  mas esse algo mais é a visibilidade subjetivada ou contemporaneidade do saber. O ocidente, teoria e geopolítica, se movimenta desde aí nessa premissa subjetivante de sua centralidade como Eu enunciador de todo Saber do sujeito, Eu ele mesmo sujeito da história do progresso ou racionalidade, em relação ao Outro pós-colonial mas sub-desenvolvido cultural/tecnologicamente, situação capitalística/industrial, situação dessa sociedade onde se instauram ou se viabilizam todos os situamentos contemporâneos da outridade ou marginalização - de classe, de gênero, etc.
Assim situado Foucault em relação a essa minha concepção proposta como pós-moderna, não apenas pós-estrutural, seria importante notar como ele tratou a sua questão da inserção da contemporaneidade tal que ela explicasse a seu ver a existência de um campo epistêmico dividido entre todas as possibilidades téoricas a propósito dessa criação no entanto visada como descoberta fundamental, o Sujeito. Foucault então subrepticiamente estaria denegando a realidade do sujeito? Ocorre que na história essa subjetividade privada não existiu sempre. É só o que circunscreve o seu problema, não o que ela é, ou seria, em si, a-historicamente.
Vimos que Foucault desenvolveu suas pesquisas em três frentes - do saber, do poder e depois o da sexualidade. Aqui vamos examinar exclusivamente o da sexualidade, mas numa apreciação que pressupõe que ela esclarece as anteriores, não como algo que seria fundamentalmente um projeto alternativo


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O capítulo da história da cultura asim designado invalidação ou fim da metafísica, não pode ser estruturado sem a enunciação do fator que o articula. Esse fator é o que se chama hoje o terceiro mundo, a heterogeneidade desencadeadora dos processos em andamanto noa saberes relacionados à sociedade e aos seres humanos.
 Esse capítulo é então o que estamos inscrevendo na ambiguidade marcada entre os períodos moderno e contemporâneo da história ocidental, sendo que aquilo que os une, mas singulariza, é a emergência do terceiro mundo e sua tópica estrutural ao saber ocidental na cisão dessess períodos colonial  e pós-colonial.
 Ora, a questão da formação do terceiro mundo é sintomática da doença desse inconsciente ocidental expressa no entanto, como saber ocidental. Sua lacuna estruturante, portanto, uma vez que o que no saber ocidental se estruturou foi uma doença, não um processo que tenha atingido sua maturidade. Noutras palavras, tal saber refuta-se, incessantemente, a si mesmo.
 Assim, como ele mesmo enuncia, não há saber humano moderno ocidental que não seja o da despotencialização ou melhor, inviabilização total, do a priori no qual se movia a metafísica. Aquela, sim, era a hipótese do Homem no sentido reconhecível desse termo no vocabulário foucaultiano, isto é, humanidade não biologicamente evolutiva nem culturalmente heterogênea no tempo e no espaço.
Mas desde que emergem as ciências humanas como esses saberes relacionados à cultura, sociedade e psicologia, as teorias sociais não são formuladas sem o imperativo do seu potencial explicativo e/ou compreensivo abarcar a heterogeneidade das sociedades não-ocidentais e as do passado conhecido. Elas dependem, portanto, enquanto etnologia, sociologia, antropologia, da sua munição de registros a propósito dessa heterogeneidade. A estranha negação de Foucault a propósito da conexão de ciência sociais, especialmente etnologia, com a heterogeneidade cultural, é um entre os inúmeros registros do Sintoma, assinalável lacuna de sentido no discurso metaterórico ou histórico a propósito da modernidade.
 As teorias psicológicas que não começam pela heterogeneidade cultural, encontram nela o fim. Pois, o que essas teorias não podem explicar a princípio, se manifesta depois contra a sua veleidade de ser ciência universal da psique humana: a barreira cultural invalida os testes de mensuração, por exemplo, com isso derrubando as premissas sobre "inteligência" que os estrutura. As tentativas de suturá-las com explicações suplementares vai esbarrar com o que está sendo enunciado agora pela heterogeneidade:  a teoria feminista, como nos exemplos que destacamos, está obstando que se constitua o despropósito que seria uma universalidade alternativa - "a" psique da mulher, etc. - mas sem que isso implique que já saibamos o limite do que é ou não atribuível universalmente do ponto de vista da psicologia.
Contudo, quando se trata do momento mais atual da geopolítica que subjaz ao fim da metafísica, ou seja, quando se trata da modernidade, quando a lacuna do discurso não consegue mais ficar desapercebida no próprio discurso, paralelamente à emergência do outro na linguagem, vemos que o trabalho de manifestá-la corre em dois níveis.
Um, pelo qual se homogeneíza todo o discurso como o termo ao qual se atribui a lacuna. Lembrando que esse "discurso" é a composição das teorias em humanities que até aqui por um lado tem por objeto a heterogeneidade, por outro lado tem por tarefa dá-la por irrelevante à universalidade, mas sem poder deixar de demonstrar essa conclusão, decorre, como vimos, que se tratou de mostrar que não obstante a irredutibilidade entre elas, as teorias até aqui tinham todas a mesma contradição básica.
Mas a partir daí, não seria possível manter uma linguagem teórica construtiva, isto é, que se traduz por dados, problemáticas e interpretações correlatas, sem que o outro nível tenha sido realizado, no qual a irredutibilidade das teorias até aqui correntes vem à evidenciação para que a proposta atualmetne aceita se coloque em confronto com elas de modo a demonstrar sua própria irredutibilidade - ou sua conexão - a elas. O saber não é um produto que se inventa da noite para o dia. Não há cultura que se invente do nada.
 Entre existencialismo e psicanálise, portanto, há um trabalho histórico a ser feito, aquele que vai mostrar que supor uma igualdade entre ambos no presente da cultura é fictício. Assim, quando nos aproximamos do argumento de Butler, o que vimos na verdade, ainda que tenha sido afirmado tratar-se apenas da demonstração da homogeneidade total entre existencialismo e psicanálise, foi a decorrência da premissa psicanalítica.
Pois, para esta premissa, quando se fala em inessência da mulher, o que se está tratando é apenas o ponto de vista da libido inconsciente que é unicamente "ativa" segundo Freud,  mas de fato, no plano da ocorrência dos gêneros, a oposição é o que decorre necessariamente, e então se trata de explorar as estratégias pelas quais a oposição não se traduzirá  na dominação ou fixação identitária.
Inversamente, na vertente existencialista, a oposição era inventada na cultura, e se havia, após Beauvoir, a tematização do corpo próprio, nada nele predeterminava como decorrência, a oposição. Ele era contraditoriamente natureza e cultura, ainda que escavando-se sobre essa disjunção, uma vez que o que ele negava a esta vinha do que havia demonstrado apenas sobre aquela. Portanto, ele não predicava o que Butler colocou em questão como de fato não já demonstrado ser descartável, ou seja, determinações que subjazem à própria cultura.
 E quando ela objeta que essas determinações possam sem mais ser anuladas por uma proposta de proliferação de oposições criadas contra as hierarquias existentes, ela está repetindo as objeções a isso movidas pelos próprios psicanalistas ortodoxos. Ou seja, se para eles, estar-se-ia assim irresponsavelmente incitando a regredir a fantasias, para ela de fato poder-se-ia estar enquanto nada demonstrou o contrário. O ex-cêntrico - uma tradução possível para queer - nós não podemos universalizar desde que não podemos falar por ele. Só podemos construir teorias desde que conhecemos as suas falas e estamos munidos dessa informação necessária.
Até aí, concordo com Butler,  mas quando o ex-cêntrico fala, como Wittig, sem ser totalmente o outro do saber, será que podemos estabelecer a fronteira para si da sua outridade, a despeito dele mesmo? Por exemplo, devemos atribuir a fronteira de Wittig entre corpo lébico e genital ao existencialismo ou a ela mesma enquanto lésbica, ou seja,  a uma inserção política do assim chamado homossexual que está recusando outros modos possíveis de inserção na sexualidade? Nós não podemos reduzir a opção de luta política num setor, a uma só palavra de ordem. Os "homossexuais" pensam heterogeneamente, e se organizam conforme grupos heterogêneos, ainda que haja frentes comuns de exigências políticas
Atualmente, onde não há o reducionismo ao estereótipo do corpo próprio ou do autenticamente outro, portanto, e quando se teoriza e não apenas se escreve ou se está sendo, de algum modo se está numa via de teorização do inconsciente onde o que se desenvolve mantém alguma interlocução, crítica ou não, com a psicanálise. Então o que precisamos constituir é um confronto entre a psicanálise e a heterogeneidade.
Ora, como se sabe e o proprio Foucault demonstrou, a psicanálise está situada naquele ponto em que se escava a irredutibilidade entre os períodos moderno e contemporâneo, do ponto de vista do saber. O que os opõe é que somente no segundo as ciências são estruturais, portanto, o seu objeto é quase-transcendental e produzido como a estruturação mesma do campo autônomo de uma determinada ciência que deixa assim de poder ser integrada a uma totalidade de natureza ou mathesis.
Aqui somente, com o estruturalismo, surge o grande obstáculo da teoria atual, (a sério, portanto, não o que já se sabe inviável),  ao livre jogo da enunciação daquilo que é o seu estruturante, pois a doença ou lacuna do saber ocidental vai atuar sobre essa condição estruturalista do que foi inevitável como a emergência da heterogenidade na linguagem. Porque se retornarmos ao que opõe estruturalismo e fenomenologia, vemos que para a fenomenologia, imperativametne, a heterogeneidade não fala a nossa língua. A fenomenologia está desconstruída há muito, se desde a segunda metade do século XX foi esse imperativo que se inviabilizou nas ciências humanas.
Por outro lado, dado o obstáculo em questão, o estruturalismo se bifurcou em dois sentidos como intenções opostas. O estruturalismo ortodoxo, de Lacan, Althusser, Kristeva e Levi-Strauss, por exemplo, se encarregou de suturar o espanto maior, que é essa heterogeneidade que não pode ser distribuída por fases de sucessão, nem graus de complexidade ou de perfeição, nem ainda por qualquer fronteira exterior a ela mesma.
Pois agora a heterogeneidade não se situa  no horizonte fixável por aquela fronteira que expressa o a-fundametno (a marca) da lacuna: limite entre sociedades históricas (civilização ocidental) e sociedades sem história (simples, de tempo cíclico, totalidades sempre idênticas, etc. ). O repertório dos dados que as humanities possuíam até aí, foi demasiado acrescentado e mudou com isso o horizonte das deduções ao menos exequíveis.
A sutura, que na verdade é apenas a  máscara da brecha ou lacuna, os estruturalistas ortodoxos a garantem desde o inconsciente, ao enunciar a universalidade da linguagem inconsciente tal que não se deve esperar que as enunciações  manifestem mais que variações heterogeneas de que, no entanto, o próprio falante não pode apreender na sua motivação profunda, ou seja, naquilo em que a variação seria reconstituível como tal em relação ao deslocamento do enunciado em relação à linguagem inconsciente.
Já o pós-estruturalismo questiona a universalidade da linguagem inconsciente. Mas não a do inconsciente-linguagem. Trata-se para ele, assim, do aprofundamento da heterogeneidade, que não seria recondutível como variação do uno, mas ela mesma manifesta-se como a verdade constitutiva do múltiplo. Não há porém uma única posição quanto a essa múltiplo, entre os pós-estruturalistas, como já assinalei, e sim várias teorias conforme os autores que a propõem.       
Assim a posição de Lacan se tornou ambígua no tratamento dos seus comentadores, porque cada vez mais se mostrando impossível até mesmo o estruturalismo ortodoxo, tanto mais os dados a propósito da heterogeneidade e a irrupção de sua produção cultural no mercado internacional iam se acumulando.
Nessa côntingência, ou se regredia ao inarticulado das fenomenologias, contudo já desinvestidas de suas premissas afirmáveis a sério, ou era preciso romper com aquela ortodoxia ainda que seus teóricos tenham sido verdadeiramente proeminentes e indeslocáveis quando se tratou da desconstrução da fenomenologia. Como Lacan estava entre estes, era preciso operar a crítica das suas limitações teóricas, mas em vez dessa evidência, alguns tentaram colocar Lacan como um teórico cujas premissas eram diversas das dos outros estruturalistas notáveis, a fim de que pudesse ser suposto um pós-estruturalista. Assim, Viveiros de Castro, ao que parece baseando-se no livro de Costa Lima, escreveu estranhamente um artigo inteiro sobre a irredutibilidade de Levi-Strauss e Lacan: "As categorias de sintagma e paradigma nas análises míticas de Levi-Strauss".  Mas os Escritos de Lacan são testemunhas, inversamente, de que Lacan não se pensava nessa disjunção.
Com efeito, Lacan ali reporta suas relações com a etnografia de Strauss especialmente no trecho "II - Símbolo e Linguagem como Estrutura e Limite do Campo Psicanalítico". Lacan menciona o conceito de "símbolo zero", atribuindo-o explicitamente a Levi-Strauss, para de fato definir como ele por esse meio,  a redução "à forma de um signo algébrico o poder da Fala."  Mais à frente, isso se desenvolve. Nas palavras de Lacan nos Escritos (na edição da perspectiva, página 149):

"E a redução de toda língua ao grupo de um número ínfimo dessas oposições fonêmicas esboçando uma tão rigorosa formalização de seus morfemas mais elevados, coloca ao nosso alcance uma abordagem estrita do noso campo.
A nós, de nos aparelharmos para aí encontrar nossas incidências, como faz já, por estar em uma linha paralela, a etnografia ao decifrar os mitos segundo a sincronia dos mitemas.
Não é notável que um Levi-Strauss, ao sugerir a implicação das estruturas da linguagem e dessa parte das leis sociais que rege a aliança e o parentesco, conquista já o terreno mesmo onde Freud assenta o inconsciente?"

  Ora, o artigo de Castro havia se constituído opondo um inconsciente straussiano que seria linguístico, a outro, lacaniano, que seria definido como uma estrutura não-línguística, mas sim aquela instaurada como "introdução da lei no seio do Desejo". Para Castro, Strauss seria um inconsciente natureza, Lacan, não.
O que Castro descurou foi o fato de que a formação da Lei no inconsciente deriva de que a Lei é linguagem, e não há linguagem fora das estruturas linguísticas, portanto, alteridade do signo a constituir-se sem ter vindo a ser conosco desde o nascimento, não vindo já feita no ser humano nascituro. Mas ainda assim, não podendo não ser feita como seu desenvolvimento humano. A Lei na cultura é a da natureza linguística do homem.
Nós não realizaríamos nunca nossa própria alteridade em relação ao signo, como constituindo-o e operando-o, se a linguagem só falasse a nós mesmos, se ela fosse alma. Mas a linguagem é a lei da interlocução, e nós temos que constituir por ela o que não pretendíamos nunca que ela fosse ou pudesse ser, a fala dos outros. A histérica ou o paciente está na verdade do inconsciente, que é signo e constituição do signo, igualdade absoluta do signo consigo mesmo (não igualdade de nós conosco mesmos), mas eles não acedem à operação deles mesmos no signo, eles são meramente significados, porque eles se impedem da ordem da leitura. Para eles a linguagem não é o que se decifra. Basta-se tão somente como a sua alma, o originário, etc. Nós realizamos isso que eles não podem, nós mesmos como operantes dessa alteridade do signo.
Castro confundiu-se ao que parece porque não apreendeu o ponto em comum entre o que só viu como duas lógicas sendo decritas: a lógica da estruturação do mito em Strauss, e a da estruturação da Lei em Lacan.
Mas essa dualidade se deve a que os objetos tratados são irredutíveis. Strauss está descrevendo a estruturação de que deve decorrer o lugar marcado das instituições de uma sociedade, por exemplo, dos clãs que a compõem e que devem ser identificados na sua irredutibilidade ao mesmo tempo que apenas como fatores daquela mesma sociedade. Lacan está descrevendo a estruturação do lugar do Sujeito ou do que decorre como enunciação. Mas as relações de estrutura e linguagem não são iredutíveis entre Strauss e Lacan.
 Assim, conforme Lacan:

" A forma de matematização onde se inscreve a descoberta do fonema como função dos pares de oposição formados pelos menores elementos discriminativos apreensíveis da semântica, nos leva aos fundamentos mesmos onde a última doutrina de Freud designa, numa conotação vocálica da presença e da ausência, as fontes subjetivas da função simbólica" .

É a função simbólica que está subjacente a todo estruturalismo ortodoxo cuja crítica pertinente, portanto, não pode ser feita operando no interior da ortodoxia estruturalista, mas sim como fez Derrida na Gramatologia, mostrando que esse é um discurso que não está fundamentalmente irrestrito à condição instaurada desde o rousseauísmo como logo-etnocentrismo, isto é, condição do que aqui chamamos lacuna, porque aquilo que deriva de ao mesmo tempo ter que pensar a heterogeneidade (alteridade), mas desde um imperativo desejado como premissa de que o enunciado seja (o da) centralidade, portanto, universalidade. Assim, na Gramatologia, a crítica do rousseuaísmo que se estende a Strauss como alguém que declarou-se  numa linha rousseuaísta, é expressamente afirmada como estando possibilitada por um horizonte teórico que começa por  uma revisão crítica,  nomeadamente, de Freud e Saussure, ou seja, possibilitada por um outro parâmetro de linguagem.         
A crítica gramatológica evidencia a contradição disseminadora desse saber ocidental contemporâneo. Como em Rousseau, ele fala a alteridade desde a oposição fundamental de natureza e cultura. O Homem é cultura, não natureza. Mas o Homem é universalidade da lei na cultura, logo há uma natureza humana, e esse é o objeto possível de todo saber do homem, de sua heterogeneidade como de sua identidade. A oposição fundadora se anula tão logo se penetre o terreno que ela funda.
Como já assinalei, esse grau de ruptura em relação ao estruturalismo ortodoxo, onde são as oposições binárias mesmas que se tem por não conserváveis como universais do inconsciente por que não são também universais da linguagem, e isso devido a que a linguagem mesma não tem uma forma universal única, não pode ser definido como o parâmetro comum de todo pós-estruturalismo.  Só se chegou a isso em Derrida.
Quanto a Foucault, sua crítica intercepta apenas a historicização necessária do simbólico. Se há oscilação no texto de Lacan a ponto de ter permitir alguma ambiguidade a propósito do seu status, isso vem de que estabelecendo-se ulteriormente a Freud no que tange à negação de qualquer caráter pré-linguístico do Édipo, como já afirmamos acima, nós podemos ler a sua interpretação do inconsciente como uma tópica da alteridade (do signo) ou da identidade (desejo).
A meu ver, essa oscilação não é verdadeiramente predicável após um certo nível da sua leitura, e Lacan é como "psicanalista", alguém que "interpreta" os modos pelos quais a alteridade do signo é disfarçada como identidade do desejo. A ponto de tudo o que apresentar de variável e heterogêneo - por exemplo, o transformismo dos travestis que apelam para a cirurgia - poder ser reinterpretado como um desejo de identidade, uma negação profunda da alteridade. Mas o que a transposição em relação a Freud inseriu foi essa alteridade do signo, e é isso que Lacan está sempre reafirmando.
Então, o desenvolvimento foucaultiano pode ser definido em função dessa ambiguidade, naquilo em que ele instala a sua crítica: a psicanálise não pode ser um saber de uma natureza humana como Lei, porque isso só pode ser derivado de uma redução do signo ao desejo identitário. Pois, se fosse redutível não poderia haver variação na Lei, e é isso o que precisamos averiguar historicamente. E mesmo que fosse, a verdade profunda é a da alteridade. Toda a Lei seria estranheza, por um lado; e ela o é, por outro lado, enquanto objeto da investigação histórica onde o que vemos não é qualquer uniformidade da Lei ou do desejo que estaria subjacente à Lei.
A psicanálise teria que ser a ciência ou a pesquisa da estranheza, não da natureza; da heterogeneidade, não do universal. Ela ainda estaria se desenvolvendo, não estaria ainda feita. O simbólico, que nessa psicanálise pré-crítica é apenas formalmente definível como a Lei qualquer da sociedade qualquer, não poderia ser reduzido formalmente a priori, e teria que ser historicizado para que compreendêssemos que relação à alteridade do signo está pondo que efeito-sujeito, quando e onde. Ela teria que explicar o surgimento da subjetividade privada na modernidade, não poderia pressupor essa subjetividade como universal .
Assim, como Lacan expressamente assinalou ("de um discurso que não fosse semblante"), ele não falava da sexualidade, e sim de relação sexual. Esse termo, sexualidade, é exclusivamente o que Foucault tematiza. Mas isso não permite (non sequitur) afirmar a princípio que Foucault não pensa que a Lei do significante enquanto Inconsciente.  Ele apenas está deduzindo consequências ulteriores à afirmação essencial da alteridade do signo.
E de fato, quando nos aproximamos da sua  pesquisa histórica do simbólico, o que vemos é que Foucault supõe uma uniformidade total dessa lei na vigência do seu campo, como uma variável da Lei como a psicanálise a interpreta habitualmente. Por exemplo, ali onde a homossexualidade não cai sob qualquer hipótese repressiva (Grécia antiga) ele vai tentar mostrar que isso decore das mesmas premissas do inconsciente de que decorreria o imperativo cultural da heterossexualidade (cristianismo),  as quais estão expressas no simbólico recuperável como a sexualidade greco-antiga, o conjunto de práticas pessoais, saberes e instituições sociais ligadas à sexualidade, o fato de que a sexualidade nos dois contextos é sempre uma prerrogativa do "ativo", o masculino. Só o que varia é que num caso o passivo pode ser qualquer isntância sobre que o masculino exerce o poder-(ser) do sexo, mas no cristianismo, só a mulher pode ser essa instância. A normalidade do "discurso"  (inconsciente) é a identidade da Lei, também para Foucault. Mas para ele isso não implica um regime universal dos comportamentos, bem inversamente.

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Na História da sexualidade, Foucault não começa nos falando do "discurso" , mas sim do "fato discursivo", ainda que ele possa ter usado ambos os termos. No entanto, que é esse fato? Se ele é a "colocação do sexo em discurso", na verdade a palavra para aquilo que Foucault está interpelando  é "discursividade", o imperativo do sexo ser falado e que define o perído histórico subsequente àquele que estamos designando "moderno", isto é, define a contemporaneidade.
Conservarei por enquanto a terminologia usual dos perídos "moderno" e "contemporâneo", em vez daquela que Foucault utiliza ("clássico" e "modernidade"), para facilitar a exposição, mas o interessante a registrar nesse ponto é que aquela ambiguidade que vim assinalando subjacente aos estudos foucaultianos desses períodos - porque ele ao mesmo tempo os singulariza e congemina - se esclarece pelo próprio Foucault nesse volume da História da Sexualidade, intitulado "A vontade de saber."
O volume se estrutura por uma trama evolutiva que vai descrever a transformação de um regime de sexualidade a  outro. A habitual história dessa época como sendo a de uma contínua reificação da repressão sexual, é revertida por Foucault. O que ocorre é uma crescente imposição do sexo ser falado, identificado, classificado, conhecido. Foucault parece um tanto hesitante no miolo do volume, a propósito dessa sua ousada colocação, ainda que ele não sinalize para alguma denegação real. Mas ele se demora nas contra-provas, em tudo aquilo que como evidência histórica poderia ser usado contra a sua proposição de que a hipósese repressiva é uma falácia a propósito do sexo na contemporaneidade. Afirma-se então contra toda possibilidade adversa,  quando logra estabilizá-la em torno desse núcleo conceitual que é a "scientia sexualis".
A contemporaneidade se define como cientificização da sexualidade, não sua repressão. Normalização do sexo, mas  absolutamente sem que ele, como ocorria na Grécia Antiga, seja solvido na naturalidade da fruição dos prazeres. O sexo que se normaliza, é o Sexo com letra maiúscula, aquilo que se tipifica maximamente com o fato da existência da psicanálise, um pensamento definidor do sujeito pelo seu desejo sexuado. Mas, e com a mesma importância que o contraste aos gregos, sem que ele se vote a um prazer diferenciado, especificado como a uma erótica. Scientia sexualis é o oposto, e que se constroi por essa oposição, de ars erotica.
A constituição da leitura histórica  de Foucault não é assim definível pela concepção jurídica da sexualidade que seria a da contemporaneidade, e sim pela sua medicalização. É a isso que se é conduzido na leitura após esse difícil capítulo intitulado "o que está em jogo", onde ocorre a fricção entre o registro do enfrentamento até aqui já efetuado das contra-provas, a reafirmação inabalável da hipótese não-repressiva, e a tentativa de delinear o que está entre ambas, isto é, o que permite que sejam elas, nada além, o que está se defrontando. Porque houve uma hipótese repressiva? Instala-se a pergunta num nível que não admite como resposta novamente a circulação das contra-provas,
Ou seja, naquele nível instaurado expressamente pela verdade psicanalítica: a "boa razão de que é a lei que é constitutiva do desejo e da falha que o instaura", contra a "maquinaria simples" ou meramente fantasiosa que acreditava que  a repressão é a cultura ou ditame repressivo que de fora e de cima atua sobre uma "ernergia rebelde" ou apenas "natural e viva", que viria de dentro e de baixo. creio que o verdadeiro problema aqui é que Foucault está se interregando sobre como ele poderia fazer uma teoria da historicidade do simbólico - não fenomenológica, portanto - sem ao mesmo tempo refazer a teoria do incosnciente, ou explicitamente posicionar-se como filiando-se a ela. Mas Foucault de fato a aceita apenas para colocar em questão a estranheza do que se chamou indevidamente até aqui, porque como a algo unívoco quando não se sabe o que ele é, o humano. Ele pode continuar a tematizar a relação fundamental do sexo com o poder, a partir dessa incerteza?
Foucault então, à guisa de resposta, esquiva-se da tarefa teórica - o que me parece apenas que ele apenas estava encenando a ambientação de todas as suas pesquisas até aqui. O que ele oferece é uma analítica do poder. Mas de fato, aquilo de que ele esquiva-se é da tarefa teórica que partiria da certeza freudiana, o que ele, pelo contrário, reconduz a um mesmo a priori da hipótese repressiva, ambas como uma concepção jurídico-discursiva como "representação" ou "concepção" do poder.
Aqui a confusão de fato é terminológica, porque não está certo que Foucault/ Lacan pudessem admitir ser reconduzidos a Freud como a uma concepção sobre "a natureza e a dinâmica das pulsões" oposta à análise que parte apenas "da repressão dos instintos", por um lado; por outro lado, tampouco que ambos pensem que a concepção jurídica que as duas visões opostas expressam seja realmente explicativa do que as movia e do que por elas se fizeram. É por isso que segue-se uma lista em que, contrariamente ao que vinha ocorrendo, as provas e as contra-provas apresentam-se igualmente inclusas como pertinentes ao campo histórico em estudo. Logo após essa lista, Foucault indaga expressamente: "Por que se aceita tão facilmente essa concepção jurídica do poder?". Então, aparentemente contra toda verossimilhança, Foucault torna a restringir a lista e a  concepção jurídica do poder, à anti-psicanalítica hipótese repressiva que se sustem pela concepção do intinto como contrário da lei.
Ora, a oposição aqui já está escavada contra a psicanálise ulterior à Freud,  este foi o que ficou pelo meio como que entre parêntesis. Isso, a concepção jurídica,  era em que acreditava-se até mesmo com Freud, do mesmo modo que se acreditou por muito tempo antes de Freud, nos instintos como também  naqueles itens da lista que compõe a imagem jurídica do poder - e em que essa imagem mesma é um dos itens expresso (undiade do dispositivo). Essa imagem do poder é transposta anacronicamente da tradição ocidental, não é a verdade do tempo histórico modernidade.
Isso deve ter  ocorrido porque um processo pararelo de unificação dos direitos múltiplos ocorreu ao longo da transição feudal às nações modernas, que se definem por uma soberania ou governamentalidade que concentra todas as instâncias jurídicas. Esse, porém, é um outro processo, ainda que seu paralelismo ao da sexualidade não seja fortuito, uma vez que esse direito unificado pela soberania ou Estado nação, o que ele vai ter que expressar na contemporaneidade como o seu termo sujeito é  a existência particular da pessoa física, não mais a classe por nascimento. O processo histórico mesmo do Estado nação é a transformação do direito público em direito do cidadão particular. A história da sexualidade focaliza, portanto, algo que não corre nesse plano do público, e sim como coalescência da consciência para si do sujeito privado. Esse sujeito, inversamente ao que poderia ser suposto na continuidade do passado da cultura, não mais  se pensa nem mais  é pensado sob a lei jurídica da interdição, e sim na positividade da exisitência de sua sexualidade como sua natureza humana.
Ora, vê-se assim que  Foucault não está desenvolvendo uma teoria explicativa do sujeito em si. O que ele está mostrando é como esse sujeito privado vem à existência como objeto de políticas e de práticas históricas de uma sociedade singular, a contemporânea-ocidental. Foucault descobre que todas as políticas e práticas especificadoras do sujeito nessa sociedade que o produziu como privado, o especificam pela sua sexualização definida categorialmente no vocabulário das instâncias públicas que nele tem o objeto do seu exercício, como ramos da medicina social.
 A citação de Foucault selecionada por Butler - na edição Graal, à página 145 -  de fato não fala de qualquer definição do próprio Foucault sobre o sexo, nem sobre o modo como Foucault estaria definindo compo ele é em geral disponibilizado pelo poder. Esse trecho fala  somente de um dos lados da constituição do poder na contemporaneidade, aquele lado pelo qual o poder instituicionaliza os corpos (pedagogia, políticas sanitárias, psicanálise, clínica, etc.). O outro lado, é aquele em que o poder é mais comumente associado a "governo", ou seja, o formado pelas instituições de gestão da sociedade como um todo(economia e políticas econômicas, geografia e organização do território, etc.).
Ou seja, esse trecho citado está inserido na parte conclusiva do livro em que Foucault finalmente estabelece: a) o que distingue os dois períodos moderno e contemporâneo; b) como ele mesmo está tratando essa distinção; c) exclusivamente a definição da sexualidade contemporânea -ocidental.
Ora, o que distingue a contemporaneidade é que nela há esses dois lados bem especificados, os quais no período moderno estavam presentes, mas não discerníveis. Foucault é aqui ambíguo porque ora essa indiscernibilidade junto com a co-presença é o que define o período moderno, ora é o que se estende a todo o mundo ocidental ante-contemporâneo, até Aristóteles. Sabia-se que eram dois, mas enunciava-se apenas a sua recíproca junção, quando agora na contemporaneidade, pioneiramente, o que se cuida maximamente é manter bem atribuídas as funções de um e outro.
Na apresentação de Butler, o trecho citado de Foucault se insere assim: "Se o sexo natural é uma ficção, então o distintivamente feminino é apenas um momento histórico no desenvolvimetno da categoria do sexo, o que Fouault chama de sexo, o que Foucault chama de "o elemento mais especulativo, o mais ideal e o mais interno numa distribuição de sexualizada organizada pelo poder em sua dificuladade com corpos e sua materialidade."
Butler, como se vê, apenas insere Foucault circunstancialmente, para complementar o termo "sexo" que ela está usando, porém, não para afirmar como ideia dela mesma o feminino em termos de momento histórico, e sim  apresentando essa hipótese como o contrário daquela que se seguiria da teoria de Beauvoir a permitir tanto as opções de Wittig quanto de Foucault.
Por um lado, a hipótese de Beauvoir que questiona "o sistema diádico de gênero"; por outro lado, as posições feministas que afirmam a diferença sexual como irredutível, "e que procuram dar expressão ao lado distintivamente feminino daquela oposição binária". Ela está classificando Foucault ao lado do questionamento do sistema diádico e ao mesmo tempo apresentando o trecho citado como uma comprovação do modo como Focault pensa o sexo - elemento ideal e especulativo - para daí deduzir que Foucault "não supera as armadilhas existenciais do sartrianismo pelo simples fato de sua aplicação cultural."
Mas a frase real de Foucault na História da Sexualidade, consta do seguinte: "O sexo é, ao contrário, o elemento mais especulativo, mais ideal e igualmente mais interior num dispositivo de sexualidade que o poder organiza em suas captações dos corpos, de sua  materialidade, de suas forças, suas eneergias, suas sensações e seus prazeres."
Esse "ao contrário", se refere à frase anterior que asism está resgistrada: "Não se deve imaginar uma instância autônoma do sexo que produza, secundariamente, os efeitos múltiplos da sexualidade ao longo de toda a sua superfície de contato com o poder".
Tudo o que há de ideal e especulativo atribuído ao sexo na frase citada por Butler, na realidade decorre apenas da sexualidade contemporânea na especificidade desse poder que o disponibiliza agora. Fora de algum aparato histórico de sexualidade, porém, não teoria possível do "sexo" universalizado como objeto teórico enquanto esse sexo já definido num dispositivo histórico específico contemporâneo: em que ele é "essa instância que parece dominar-nos, esse segredo que nos parece subjacente a tudo o que somos, esse ponto que nos fascina pelo poder que manifesta e pelo sentido que oculta, ao qual pedimos revelar o que somos e liberar-nos o que nos define...".
Esse sexo como "ponto imaginário" na terminologia foucaultiana,  não é o sexo em si, e sim o que foi fixado por esse dispositivo de sexualidade que estamos estudando em termos de contemporaneidade.  Nunca há outro lugar histórico em que "o sexo está subjacente a tudo o que somos", que não a contemporaneidade, na apresentação de Foucault. Não se pode afirmar com isso, porém, que para Foucault não há o sexo para cujo termo o sentido correlato é o sexo em si, objeto da psicologia ou da psicanálise ou da biologia, etc.
Essas disciplinas interceptam o dispositivo contemporâneo da sexualidade, mas o que elas tematizam não é o que as produz a elas mesmas, elas não tematizam nunca o dispositivo mesmo. Uma vez que o sexo foi dado a nós e a elas como essa "instância" fundamental de nós mesmos, ele as desencadeou enquanto disciplinas, mas daí por diante, nelas não é o dispositivo aquilo de que se trata, e sim de si como as disciplinas mesmas por um lado; e do Real, por outro lado.
Foucault não nega a verdade na ciência, mas daí a reduzir todo o Real às ciências,  que são um dos ramos do simbólico, e que são históricas como elas mesmas se posicionam, seria loucura - pois o que é dado interpretado de um certo modo hoje, amanhã poderá ser interpretado de outro modo, mas o Real não varia concomitantemente. Nós só podemos nos  relacionar com as verdades com que lida a ciências, assim como as próprias ciências lidam com elas, de uma forma histórica e crítica, não metafísica.
Mas enquanto existentes, somos seres Reais, não fictícios. A sexualidade (poder), o sexo (em si  como relação sexual mas sempre problematizado pelo poder), a ciência e nós mesmos, tudo é Real, mas não do mesmo modo.
Assim, aquilo que Butler criticou como política identitária do desejo, que seria atribuível a Focault em termos de proliferação de  identidades inventáveis, na realidade é o criticado por ele mas não como algo evitável, e sim como o que esperável desde o a priori da sexualidade contemporânea. Por outro lado, é falso que Foucault ele mesmo se manteve, como vimos, totalmente indiferente ao conceito de sexo como lei do inconsciente e não como instinto, mas também não como pulsão a ser realizada como lei. Foucault não poderia estar sem relação alguma com o campo do saber, e como vimos, ele está tematizando o simbólico portanto, algo derivado do inconsciente lacaniano, ainda que o simbólico historicizável, e ainda que por isso mesmo, alhures possa negar que seja sua a "questão do sujeito".
Ele diagnosticou a política de afirmação do "sexo-desejo" como decorrente do dispositivo, portanto não algo que pudesse ser usado contra o dispositivo da sexualidade contemporânea. "Às captações do poder", o que nós podemos opor são "os corpos, os prazeres, os saberes, em sua multiplicidade e sua possibilidade de resistência" a essa captação. Não há para Foucault uma estratégia única: "Não acreditar que dizendo sim ao sexo se está dizendo não ao poder."
Mas assim, não se pode operar apenas com uma disjunção entre por um lado uma teoria contrária a um sistema diádico de gênero, e por outro lado uma teoria que afirmando a diferença irredutível serve ao desejo de expressão de um dos lados da oposição binária. Foucault não seria uma coisa, nem outra. Ele afirmou a oposição como constitutiva do sexo historicizado em Grécia e Roma, masao que parece, pensou efetivametne o "hetero" lacaniano que uma vez opondo, não opõe desde sempre um gênero - o "hetero" em Lacan poderia ser  o que se chama erradamente "homo", enquanto o ciumento proustiano não seria o hetero realmente, seria o neurótico que não realiza a alteridade. Entre Grécia e Israel, como já assinalei, o que muda é somente o parâmetro do que se alteriza, não o fato da alteridade ser aquilo em relação a que o "ativo" se exerce.
Assim, do hetero, que implica a oposição, não decore automaticamente uma facção identitária na luta contra a opressão de gênero, mas a colocação em questão da captura da alteridade pela hierarquia do gênero e disponibilização de um dos lados, quando a oposição, o que ela coloca, é a complementaridade,  o que só se realiza como relação. Sendo o que extrapola a letra onde essa alteridade em relação não se pode registrar, aquilo de que decorre o nosso lugar na linguagem, não a confusão de nós mesmos com ela.

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O essencial da minha apreciação de Foucault no situamento da teoria feminista, é que na História da sexualidade ele de fato  já havia escrito  aquilo que vimos constituir a importante atribuição que Flex, e também Butler apesar do que me pareceu a sua desleitura de Foucault, portaram sobre a atualização da questão do feminismo no horizonte teórico.
Assim, Foucault designou como regra de imanência,  uma de suas "prescrições de prudência", quando se trataria da aproximação temática do sexo na perspectiva do poder. Por esa regra, a sexualidade se instaura como "domínio a conhecer", subjacente a que estão "as relações de poder que a instituíram como objeto possível". Mas inversamente, a sexualidade que o poder toma "como alvo", é somente aquilo que lhe é disponibilizado através das "técnicas de saber" e "procedimentos discursivos."
 Somente através de focos localizados do poder-saber é que se pode aproximar a perspectiva em questão, portanto também num sentido metateórico que vai tematizar não diretamente o "sexo", como o produzido do discurso ou o interpelado dos poderes, e sim num determinado contexto por exemplo, o da interlocução de penitente e confessor, como o contexto constroi a relação biunívoca de poder e saber, o "vaivem incessante" que veicula "formas de sujeição e esquemas de conhecimento".
Obviamente Foucault está sendo bem específico quanto ao método de uma trabalho historiador, mas parece-me que nesse caminho ele está invabilizando que se parta de um ponto fixo teórico que circunscreveria uma única frente de  luta quando se trata do enfrentamento da sexualidade-dominação. Sobretudo ele está se antepondo à possibilidade de se manter ao mesmo tempo o critério da sexualidade-dominação, o sexo enquanto o que nos define, como aquilo que seria, inversamente, a ação anti-dominação.    
Nesse ponto pode-se retornar ao questionamento da ambiguidade real de Foucault,  entre suas aceitações da psicanálise em vários contextos, e essa premissa metateórica na História da sexualidade, mas poderíamos novamente observar que o que a psicanálise estruturalista de Lacan liberou foi uma impossibilidade de definir o sujeito substancialmente sexuado, o sexo-alma, a idealidade do sexo.
É por isso que me pareceu importante asseverar que se houve uma recusa na teoria mais recente, do "sujeito concreto" como alternativa ao feminismo duro dos primeiros tempos, mas a recusa sendo feita em prol de algo ainda mais irredutível a este, isso não está sem conexão com uma parte do que foi apresentado apenas como incluído no rol da onda do "sujeito concreto": a meditação estrutural das questões relativas ao sexo e ao gênero, mais a crítica especifica desse parâmetro estruturalista. Ignorar isso pode resultar naquelas infelizes conclusões da psicologia feminina como infensa à apreensão de esquemas formais, a redução das mulheres a contadoras de estórias, pior ainda, essa pretensa feminilidade como originário do "humano", etc.
 O que acentuo aqui não por antipatias pessoais, mas porque conheço as consequências de políticas educacionais dominadas por esses preconceitos de ser "uma voz diferente", como na distorção psicologista de Gilligan sobre a teoria de Piaget,  quando, como acontece no Brasil de hoje, até mesmo se impede nas salas de aula, que se maneje terminologia adequada a um contexto teórico: em vez disso, se impõe que tudo pareça estar sendo visto da primeira vez, contam-se estorinhas sem a menor relação objetiva com o conteúdo apresentado, etc.

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   A terminologia de Foucault a propósito dos períodos moderno e contemporâneo, parece ser de molde a evitar a expressão "pós-moderno" como algo que poderíamos supor ora sinônimo de contemporâneo, ora como o que critica a contemporaneidade como ainda não suficiente ao que ela mesma supõe de si como ulterior ao moderno.
Ou seja, essa terminologia foucaultiana traduz o paradoxo histórico, além de que não haveria ainda qualquer saída. Entre o "clássico" e a "modernidade", o que se interpõe não é uma contemporaneidade tal que de sua anterioridade nada se conserva.
Entre as duas designações, o que Foucault operou não foi, na apresentação da história da sexualidade, uma disjunção radical entre "a alma de duas civilizações ou o princípio organizador de duas formas" e sim o que ele tentou circunscrever como os modos pelos quais se opera o trânsito entre dois focos que concentram o exercício do poder: a "sanguinidade" e a "sexualidade". Esses focos, porém, estão plenamente atuantes de forma típica respectivamente num e noutro contexto histórico. O que Foucault afirma é que os "procedimentos" que vieram a produzir a especificidade do foco contemporâneo, começaram a ser "elaborados" na época clássica, mas para serem "postos em ação" somente no século XIX.
Assim, resolve-se também aquela ambiguidade decorrente do fato de que um desses dois focos, o que Foucault chamou uma "simbólica do sangue", de fato estar explícito na época clássica mas também em todo contexto ocidental até aí. É que nessa época acontece esse algo mais que são os procedimentos que irão desencadear a contemporaneidade.
A "sanguinidade" era o exercício do poder voltado contra os corpos, cuja realização esencial seria exercer violência sobre eles uma vez declarados culpados. A "sexualidade" contemporânea ("modernidade"), ou dispositivo do poder contemporâneo, inversamente, é o poder de proliferar a sexualidade dos corpos.
É o poder que se serve da sexualidade como "um sentido proliferante" sobre que ele sempre precisa "retomar o controle para que nada escape", na expressão de Foucault. O círculo lógico desse encaminhamento é mais que óbvio, ele é o poder - portanto, não há qualquer conceito de sexualidade fora do poder proposto por Foucault como aquilo que ele intencionou conceituar.
Mas, a meu ver, a terminologia foucaultiana torna a ser ambígua nesse ponto porque "sexualidade" está restrigida ao poder na contemporaneidade, mas até aqui, esse poder era expresso pelo dispositivo do "sexo" naquela acepção esclusivamente contemporânea que examinamos, de fundamento do ser do homem. Além disso, "sexualidade" é o que se estudará ao longo dos volumes, não só na contemporaneidade, como o complemento rstritivo da "história" que se está produzindo. Quando Foucault enunciar, no volume seguinte ("O uso dos prazeres") que na Grécia não havia tal "sexo" nesse sentido que a nós pareceria universal (contemporâneo) fica a questão se ele está afirmando que, segundo seus conceitos, na Grécia não havia "sexualidade" ou que havia um outro regime de sexualidade.
Essa ambiguidade não prejudica a tessitura da conclusão de A vontade de saber , como síntese das oposições e transições que o estudo da formação contemporânea veio apresentando. Nessa síntese a superação do jurídico é condicionante da construção do conceito de "bio-poder" como exclusivo da circunscrição contemporânea da sexualidade, o que pode especificar esse termo nessa circunscrição, portanto, e o que define a época. Espero demosntrar que ela expressa a interpretação de Foucault a propósito daquele tópico que se tornou, após Marx e Weber, o referencial mais atual à definição de "capitalismo" ou sociedade industrial, ou seja, a formação do split público-privado.
Vamos examinar agora os fatores constitutivos da síntese.


    A internacionalização da economia precitou a ruptura para com os paradigmas anteriormente cedidos a propósito da "modernidade", essa expressão cuja ambiguidade já assinalamos. Se a modernidade ora significa o período contemporâneo que se inicia com o século XIX, e assim se opõe ao período moderno entre os séculos XVII e XVIII; ora significa o complexo articulado desses dois períodos como algo que se opõe essencialmente ao complexo do pensamento antigo e medieval; o fato importante é que na transição ao século XXI a rubrica "pós-modernidade" raramente se usa para designar o que está após o período moderno, e o conceito se aplica somente ao conjunto de transformações supostas em trânsito na atualidade, as quais determinam uma problemática de superação de fato recalcada perante a euforia do novo de um modo que o estudo das transições históricas talvez não permita considerar habitual.
A gama de opções teoricamente relevantes a propósito das transformações na sociedade, arte, economia, Estado, sujeito, poder e saber pode ser considerável e crescente. Mas nenhum desses itens poderá ser tratado na base de alguma transição de paradigma. A solvência de qualquer paradigma a constituir é prévia às opções pertinentes. Não se espera algum ponto de vista trascendente à especificidade dos dominios considerados, a pós-modernidade não é uma condição de saber. É sintomático que a rubrica tenha exaurido o poder de um discenso que foi constante entre os anos oitenta e noventa, a propósito da sua relevância, precisamente quando todo o campo conceitual se mostrou avassalado pela dominação mdiático-informático. Não se trata, portanto, tampouco de  uma dominação que se faça por meio de algum outro saber.
Os membra disjecta dessa polêmica sobre se existe "pós-moderno"  não  mais interessaram agora possivelmente nem mesmo àqueles nomes a quem se imputaria algum fragmento. A transformação informática e a geopolítica norte/sul pioneiramente enunciada é historicamente incontornável.
O texto que está sendo escrito é subsequente ao apagamento do texto que iria ser inserido nesse local, onde havia um contraste entre Marx, Weber e Foucault, por suposta "falha" da Internet, o qual se tornou irrecuperável senão em alguns parágrafos que haviam sido copiados. O programa instalado nesse computador está sendo alvo de todo tipo de restrição ao uso incluindo intromissões tais como mudanças arbitrárias no papel de tela, etc. Estou sendo praticamente obrigada a comprar um computador novo. Enquanto escrevo, sou obrigada, de cinco em cinco minutos, a desabilitar ao lado deste espaço o anúncio de uma multinacional que vende anti-vírus de computador. A marca da multinacional com que nada tenho a ver, nunca tive nem quero ter, está insidiosamente adscrita à minha produção intelectual. A coação sobre meus gestos, a dispersão da atenção, estão amparadas por que legislação?  Independente dessa questão, está seguramente amparada por um consenso midiático-informático que tem se abatido sobre toda a hiância na cultura, desde que todos os setores estratégicos do país foram barganhados por não se sabe quais vantagens, à ingerência dessas marcas, mas sabe-e que da população tais vantagens nunca foram nem serão.
Tanto mais grave que o que se alardeie na imprensa seja o destaque para os tristes anúncios do fim da história, os quais não atingem a percepção de si mesmos como importantíssimo fenômeno histórico ou nada. Assim também nenhum sujeito pode dizer que está morto.
 Não se trata, portanto, da pós-modernidade como alguma coisa que pudesse ser descrito nos termos de uma dominação identitária. Inversamente, toda identidade está avassalada, negada como tal pelo odioso princípio da disponibilização à marca. Quanto a isso, nenhum saber ela anuncia. Apenas a reificação, por mais desponderada, do fato da dominação traduzido binariamente como imposição da Coisa no espaço da presença. Nenhuma lógica nessa dominação, portanto a desponderação da aparição é o que faz signo. O assinalar-se aí da Coisa nesse espaço a reifica por si.
Historicamente, portanto, o exame da síntese de Foucault a propóstito da "modernidade" assinala  uma anterioridade. Ironicamente, anterioridade em relação àquilo de que o assinalado era o suposto discurso. Mas essa ironia é que se torna interessante, descartada a veleidade do discurso. Posto que a veleidade se construía por um saber da anterioridade, daquilo mesmo que estamos tratando agora sob a designação de "período moderno". Um saber ou uma ambiguidade, como vimos, pois a construção do contemporâneo estava todo o tempo intrusada pelo mesmo Fantasma: a clássica mathesis sob o invólucro das ciências do Homem; a coação cartesiana do sujeito pensante sob a dupla-ligação do público (políticas da população) e privado (políticas dos corpos), característica do bio-poder - sob tudo, portanto, o que definiria a modernidade.
 Uma transferência, uma trajetória, era somente o que precipitava a ambiguidade no saber, enquanto um pouco por todos os lugares, extrapolando-se o discurso foucaultiano e mesmo francamente estruturando-o, a ambiguidade era o que havia usurpado o locus explicativo. É por essa insistência, parecem afirmar, que o sujeito privado não é de fato a liberdade de cujo discurso seria somente ele o portador. Não fosse ela...
Mas se estamos em presença de uma descontinuidade, muito mais incontornável que todos os situamentos ainda passíveis da cobertura ambígua do seu hiato, é todo o pressuposto da periodização que desmorona. Foucault havia sido o arauto da história descontínua, mas ele nunca pode fazer mais que o redutível fenomenológico de um "contexto", portanto estava sempre operando a reincidência do intertexto. Nós não podemos fazer outra coisa, operar a reincidência, mas então deveríamos começar por declarar inútil ou  precipitado, o contexto. Não foi ainda justificado que existisse, senão funcionalizando o que se precisaria mostrar o que, ou a inexistência de que para declarar a justificativa feita.
Alhures desenvolvo a temática da descontinuidade pós-moderna como inserida pelo neocapitalismo americano, ou americanização do mercado ocorrendo após os anos trinta e permitindo apreender a internacionalização da economia como decorrência. Assim, a questão da subjetividade teria que ser deslocada.
 É interessante que seja ela o que opera a transição do marxismo objetivista a Weber e Foucault, se ela ainda era suposta na preensão da antecedência, porque não se rompia com o parâmetro do capitalismo clássico, único a permitir tratar o capitalismo de um ponto de vista intrínseco ao processo europeu. A subjetividade não se pensou senão na armação conceitual, e contra isso, da metafísica como algo seriamente suposto restar por sob todas as descontinuidades pensáveis.
Grafar assim já é estar no jogo da ambiguidade daí decorrente, contudo, porque a rigor a ruptura implica que se renuncie à afirmação de que houve um processo europeu intrísneco designável capitalismo. Aqui assinala-se o sintoma do discurso ambíguo, o fato dele ser cego para a obviedade da complementaridade estruturante de centro e margens como circunscrição história do fenômeno capitalismo. Mas também se opera alguma visibilidade do sintoma pós-moderno, se após os acontecimentos da invasão ao Oriente Médio, das bombas sobre o território norte-americano, repercutindo sobre o panorama das intensas contestações ao desenvolvimentismo do centro, ecológica e econômica, ambas na pauta das lutas movidas internacionalmente pelo terceiro mundo, continuou a imprensa a tratar loucamente o fim da história como fato dado - numa revista especializada de economia, isso ainda se fazia sob a óbvia intenção contra-nacionalista de subsunção total às multinacionais, bem recentemente no Brasil.
O capítalismo transforma-se, mas o que ele demarca é uma relação à subjetividade que só agora vemos não poder ser conceituada sob as formas de continuidade a qualquer tradição metafísica. Os imperativos do neocapitalismo norte-americano são vários, como se levantou em Pierre George e Claude Julien, mas aqui lidamos com dois itens especialmente importantes. Por um lado, a modelação do mercado de consumação pela psicologia social, o que se imbrica ao fato de que no neocapitalismo a ênfase produtiva é no setor de bens de consumação, não de bens de produção. Por outro lado, a obtenção do controle das reservas energéticas e fontes de matérias-primas no terceiro mundo como algo mais lucrativo que explorar as internas posto que além das vantagens politicamente obtidas, todas as que se recenseiam quando se trata da internacionalização da economia (mão de obra barata, isenção de impostos, etc.), soma-se a dominação sobre todos esses extratos nacionais
 O privado não é assim, no neocapitalismo, o foucaultiano controle dos corpos como na antiga continência oligárquico-platônica-cristã invertida pelo bio-poder para se traduzir na presentação de um saber dos corpos. A oposição política final, ilusória quanto vimos ser postulada, era em todo caso entre o estatal e o social. Mas no neocapitalismo, o privado é o que está atravessado pelo poder que não faz bloco com esse saber científico. A reserva de que se trata maximamente em termos de poder, é o falaz "saber" tecnológico. A dominação é  midiático-informática, não médica. Não é o trocável de uma identidade, é o reificável de um uso.
O exame do pensamento foucaultino mostra ainda uma focalização do período moderno capaz de abstrair o fato de que se trata do período colonial - não vimos isso ser ressaltado em qualquer dos autores que consideramos, muito menos na formulação foucaultiana. É interessante que a única tangência tenha sido a "acumulação primitiva" do marxismo, mas trata-se de algo que só se enuncia para relevar-se - no sentido da supressão dialética. A acumulação primitiva nem é o que será negado depois no movimento importante da sucessão dos modos de produção, é o que está negado na própria teoria que a enuncia como algo que movimenta a história interna ao modo pré-capitalista, posto que este desenha somente a sua irredutibilidade ao subsequente na forma de sua antecedência a ele. O escravismo colonial  não é suponível um modo de produção em si.



(cópia dos parágrafos iniciais do texto apagado pela Internet)

O sujeito tornado pensável na contemporaneidade começa a ser objeto da crítica da cultura desde Marx. Essa crítica tem, pois, que explicar o surgimento do que ela destitiu de sentido autêntico. O intervalo em que o sujeito é pensável como autêntico sentido do pensar, é pequeno, relativo ao Romantismo. A partir da crítica realista e marxista, ocorre uma bifurcação. O que emergiu como a crítica do sujeito, não o destitui de sentido enquanto uma realidade em vigência como contemporaneidade, apenas faz a crítica do discurso dessa vigencia. Bifurcação: a partir daí,  o sujeito além da crítica é apenas a facticidade, o sujeito sem qualidades, o burguês pequeno ou grande, o Ulisses. Ou ele é o objeto da cientificidade na indiferença ao seu para si - as ciências dos corpos e as dos comportamentos. por um lado; a ciência política, por outro lado.
Explicar o surgimento do sujeito. No marxismo ele se tornou pensável como sujeito da livre iniciativa do capital. Ele então veio a se tornar o efeito ideológico desse sujeito individual da livre iniciativa. Mas quanto a esta, sua  explicação autêntica não é a inventividade do indivíduo, do particular; e sim a racionalidade objetiva,social e técnica, da produção.
Na reação anti-positivista de inícios do século XX, Weber questiona essa solução de Marx. Creio que sua obra pode ser introduzida como tendo se desencadeado pela indagação ao marxismo: porque houve a instituicionalização da livre iniciativa? Porque a livre iniciativa se socializou, após todo o interregno do período moderno, de sua marginalidade em relação à burocracia patrimonial, e se institucionalizou desse modo específico, isto é, colocandoo  para si pensável do sujeito, independente de se o que se colocou assim era ideologia?
Weber respondeu com a tese pela qual o capital particular é pensável na história, somente quando o sujeito particular se tornou confiável, o que até aqui era impensável. Toda a história sócio-econômica conhecida anterior à contemporaneidade foi reduzida por Weber a esse a priori da evitação social da fortuna particular não mediada pelas formas institucionais da universalidade personificadas pelo poder que simbolizava a ausência de ruptura entre a sociedade e a totalidade universal. Ora, na contemporaneidade, emerge uma forma de religiosidade cujo actante, por asism expressar, é o sujeito particular, o protestantismo.
  Por outro lado, a empresa capitalista é racionalidade "impessoal", isto é, não atua qualquer processo ideativo da junção de uma ação à totalidade universal, atua somente a intelecção da ação como ajuste dos meios aos fins. Segue-se que tanto as transações impessoais quanto a forma de religiosidade privada protestante, pensam-se reciprocamente ajustáveis se essa religiosidade é acética sem mediação institucional quanto à salvação que permanece a incógnita do privado, mas pode integrar o trabalho e o lucro como vocação desse particular.
O capitalismo como regime de livre iniciativa pode se institucionalizar substituindo todo o passado da burocracia patrimonial, como uma burocracia puramente racional, porque algo tornou o sujeito particular absolutamente confiável. Nesse diagnóstico de Weber, segue-se a dedução inversa a Marx, a propósito da trajetória do capitalismo. Inversamente à transofrmação da burguesia em proletariado, inversamente ao desvanecimento do sujeito individual como ficção ideológica e compreensão total da objetividade do processo social conforme Marsx, para Weber o capitalismo seria futuramente, como já estava sendo àquela altura para observadores atentos, a trajetória do aburguesamento como processo de institucinalização do privado à oligarquização das instituições como expressão nelas do que mediou a institucionalização, a religião e as tradições que facultaram a confiabilidade do sujeito particular.

                                                                                             continua

    
  
(...)

  
( a revisar )  

 4 ) Deleuze e O Mundo Barroco


Que as regras de jogo do marxismo permitem “ler toda a história sob o signo das classes”, e que isso continua exeqüível e aplicável, é proposto explicitamente por Deleuze-Guattari no Anti-Édipo (AE)). Mas em que sentido sustentam eles essa proposição?
Precisamente em sentido bem outro do que aquele que caberia no limite do modo de produção tomado pela articulação dos fatores da base. Pois agora são esses elementos mesmos que se trata de visar, não como virtualidades pré ou exo-estruturais, mas sim em sua realidade, em sua positividade como elementos de conexão.
Ao invés de uma história que, como Freud, seria a das atualizações de uma estrutura como racionalidade organizada de uma invariância, é preciso investigar o que a estrutura edipiana não prevê, mesmo que com Freud tenha parecido que ela objetivava a realidade do desejo. Guattari e Deleuze observam que Freud “parou” na libido, desconhecendo a realidade das sínteses numênica e de consumação (voluptas).
         Instituindo o Édipo como base virtual das organizações de invariância, a psicanálise impede que se atinja a região produtiva do desejo, produz o mascaramento da produção libidinal, como se ela se resumisse à triangulação familiar. Assim um paralelismo Marx-Freud seria legítimo se limitarmos a história a um nível de base muito grande, que age de modo despótico pois subsume os elementos já como fatores do que organizou como estrutura.
O sentido pelo qual Deleuze-Guattari aceitam a leitura da história pela perspectiva das classes é aquele em que as classes são o negativo dos grupos e das castas. Ao invés das sociedades primitivas aparecerem como o fora da história, uma vez que nelas, como no comunismo, a invariância da base deve se confundir com a realidade dos fatores, é o capitalismo que surge como fim da história assim como horizonte retrospectivo daquilo de que ela é história: a socialização ou repressão dos fluxos desejantes.
Vimos que no Lire le capital as transições deviam ser pensadas sem incoerência e sem vazio, pois a coexistência de modos se relaciona ao livre jogo das contradições desenvolvido pela própria dialética das forças produtivas no interior do modo que deve ser substituído – a estrutura não tem nada de tranqüilizdora, como as musas de Chirico ela é inquietante, até que se torna explosiva.
Mas a história como recalcamento, codificação ou socialização dos fluxos desejantes, se é também fragmentária, e pressuposta em relação a uma virtualidade, que é para ela o limite sempre deslocado dos fluxos, agora não há inquietação, nem potencial explosivo, somente o grande horror de que esses fluxos corram livres, sem código.
A máquina territorial primitiva, a megamáquina despótica bárbara, são a história desse horror, revertido justamente pelas operações de codificação que agregam a pertença, respectivamente, ao grupo ou à casta. Mas as classes, o capitalismo, são esses fluxos livres, contudo não no sentido do CsO, o corpo pleno da energia inconsciente de registro (Numem), noção que já examinamos anteriormente, pois se eles não são mais codificados é porque são agora axiomatizados.
A história pré-capitalista é portanto a história do delírio, a perversão ou a paranóia, como operações sobre o desejo, transformações inconscientes que traduzem práticas sociais de repressão. Ela recobre assim os acontecimentos, que pululam por todas as formações sociais, de desvio, as resistências que é preciso contornar a cada vez para marcar o simbolizar grafando, em todo caso inserir, registrar no Socius. Esses desvios não são ameaças para tais máquinas, elas são pressupostas assim como uma história de entrada na adolescência tem que supor a resistência, pelo menos como insegurança, ao processo ritual de aceitação, até que grupo e indivíduo se aceitem e identifiquem mutuamente solvidas as resistências de um lado ou de outro. A ameaça à máquina social só se constitui pela produção desejante que não “deseja”, isto é, o conceito de esquizofrenia de Deleuze-Guattari como outro regime de desejo, liberado do “poder”.
Contudo aqui se pode constatar algo que funciona a meu ver como um postulado da nomadologia: o nômade puro não existe, desde sempre há ao menos um acampamento e um stock, um registro que liga uma cadeia significante a um fluxo de produção – perversão constitutiva.
A mais-valia que explica a história é agora uma mais-valia de código, exerce-se sobre os fluxos de modo que não ocorre um conceito unívoco a-histórico do que seria “o” trabalho. Ao invés de “estrutura” é preciso pensar em termos de máquina, agenciamentos micro-localizados do desejo, e a esquizo-análise precisa começar por destruir as pseudo-formas que seriam expressões do inconsciente para descobrir os investimentos desejantes do campo social pelo inconsciente real.
Porque a realização da operação de registro sobre o fluxo não se completa nem se compreende como simplesmente conseguir de fora impor uma marca, mas sim como incorporação de um signo pelo desejo de ser. O que acarreta que a sociedade e a história não se baseiam na troca, o Socius é essencialmente uma instância de inscrição (registro).
O Estado surge como máquina que, ao invés de funcionar como a máquina primitivo-perverso-segmentar de fluxos, funciona como máquina paranóica de filiação direta. Assim ao invés de uma territorialização primeira, a operação inaugural do Estado consiste em desterritorializar os códigos das comunidades rurais, para operar sobre eles uma sobrecodificação que os transforma em simples peças de uma engrenagem maior encarregada de apropriar-se dessa mais-valia de código.
Ora, o capitalismo desterritorializa esses sobrecódigos do Estado despótico, pois, como vimos no estudo foucaultiano de economia clássica, trata-se agora de introduzir a troca como objeto da mais-valia. Mas Deleuze-Guattari não propõem que a partir daí a mais-valia deve se conceber como inerente aos fatores organizados de uma base econômico-produtiva. Eles propõem que o que se substitui à mais-valia de código é a mais-valia de fluxo.
O que possibilita a triangulação do inconsciente, sua leitura pelo Édipo, isto é, a causa formal da triangulação, é inicialmente uma operação despótica pela qual algo de transcendente, “o” significante enquanto a lei ou o Phallus, é destacado como objeto que empurra os elementos deslocáveis e os distribui relativamente à ausência-transcendência desse objeto. O três mais um: as três figuras familiares que partilham a ausência e assim se relacionam uns aos outros como complementos uns dos outros, mais a lei ou o “um” dessa ausência.
Mas aqui se poderia indagar como é então que se pode associar tão estreitamente o Édipo com a máquina capitalista civilizada – o complexo não coalesce nas formações precedentes, conforme o AE, que o associa aos empreendimentos de colonização.
Para justificar essa pertença do Édipo ao capitalismo, e sua natureza colonizadora do inconsciente, o AE mostra que o processo de reprodução social nas máquinas sociais territorial e despótica não é diretamente econômico, relacionando-se a fatores não-econômicos de parentesco. A família nesse caso é uma prática co-extensa ao Socius, de modo algum uma instância privada frente a um domínio público.
Já na máquina social capitalista, o deslocamento da base econômica na representação para os agentes, desde o objeto distinto à própria atividade produtora, determina que a inscrição social só se faz sobre forças de produção, tudo o mais sendo incluído aí apenas a título de fatores dessa produção. A família se privatizou, ao invés de coextensiva ao campo social como lugar do registro ou da pertença, ela se torna o particular frente ao público, mas esse particular tem que se destinar – como fator – ao público. Figuras não-figurativas, isto é, imagens que o capital engendra na axiomática dos fluxos, tornam as pessoas personificações suas – o trabalhador, personificação da força do trabalho, por exemplo.
As pessoas sociais no capitalismo são funções derivadas de quantidades abstratas – imagens – que as pessoas individuais devem preencher como simulacros. É´ por isso que o Édipo é sempre um empreendimento de colonização. A família é privada, mas como tal precisa ser imaginável para poder ser investida de modo que fora desse fora nada mais possa subsistir para o desejo.
Ao limitar o inconsciente ao Édipo a psicanálise fornece a subjetividade ideal do sistema capitalista, aquela cuja imaginação-desejo possível é o papai-mamãe-e-eu, o formalizável da produção. Territorialidade íntima, a família edipiana corresponde ao esforço de reterritorialização do capitalismo.
Aqui podemos sintetizar o que vem se desenvolvendo, do seguinte modo. Se distinguimos os limites relativo e absoluto, externo e interno, vemos que o limite absoluto de toda sociedade é a esquizofrenia como fluxos desejantes livres, nem codificados nem axiomatizados. O limite relativo da história social será então o capitalismo enquanto axiomática de fluxos não-codificados (descodificados). Para o capitalismo a esquizofrenia torna-se um limite exterior, para o qual ele tende como empreendimento de descodificação de fluxos, mas que ele precisa conjurar para não se solver nela. Para repelir esse limite o capitalismo produz um limite interior deslocado, o Édipo, que designarei como Complexo-freudiano de apropriação do inconsciente.
Esse deslocamento operado pelo Complexo-freudiano consiste no fato de que ele desloca os objetos reais de produção de desejo representando-os, travestindo-os. A colonização é sempre a do capital. Assim essa noção de colonização em Deleuze-Guattari apresenta uma amplitude bem mais abrangente, pois não se relaciona apenas ao que ocorre entre o centro e a periferia no sentido político de dominação, mas também ao que ocorre no sentido da produção de subjetividades, do investimento simbólico do desejo tanto no centro quanto na periferia, seja onde for que tenha penetrado o capitalismo.
O limite deslocado é a permissão da territorialidade, desde que privatizada, familiar. O limite interior do capitalismo, o Complexo-freudiano, não é ocupado na sociedade primitiva, pois como vimos a família se mantém na coextensividade do social ao invés de haver determinações do campo social que se rebatem sobre ela. Na sociedade despótica, o limite do Complexo é ocupado simbolicamente, mas não habitado, porque o campo social é atingido na totalidade pelo incesto imperial. Já na sociedade capitalista ele constitui o limite habitado e ocupado, pois o desejo só deve poder investir as imagens parentais, sendo um negócio, fundamentalmente de negação.
             Assim deve-se agora indagar sobre a relação do capitalismo com o Estado, lembrando que o próprio Complexo é uma operação despótica de transcendência e símbolo. Quanto a isso o AE propõe uma teoria do Estado como forma abstrata (Urstaat) que se prolonga no Mille-Plateaux (MP). O AE faz referência ao problema que o Estado despótico representou para o marxismo, dentro de um esquema que deveria abranger cinco estágios (comunismo primitivo, cidade antiga, feudalismo, capitalismo, socialismo). A produção asiática convinha mal nesse esquema, a ponto de Engels renunciar a ela e os marxistas russos e chineses resistirem à sua utilização ( AE, 174-5).
             O que Deleuze-Guattari assinalam é que o Estado não é nem uma formação como as outras nem a transição de uma formação a outra. Como Atená, ela surge já completamente armada.
Entre o poder soberano e a gênese do mundo há agora hiato que o mito imperial deve preencher através de uma série de gerações que figuram as metamorfoses da soberania, conforme se pode constatar em Vernant, enquanto que o mito primitivo expressava apenas o hiato entre a energia intensa e o sistema social que deve configurá-la no interior do sistema de alianças e filiações.
Sendo assim o mito imperial não expressa um recuo “da” origem sem que nisso se perceba uma impossibilidade da origem em proveito de um quebra dimensional entre o sempre-já abstrato e a efetivação atuada. Não se pode assim supor que o primitivo é anterior ao império ou mesmo o inverso. O Estado, onde quer que se instale, está sempre se re-instalando. Assim o Império é essa constante que mede a variação de todas as formações sociais. Não como formação concreta com a qual se deveria tudo comparar, mas como a sobredeterminação abstrata em relação à qual, em cada caso, trata-se de avaliar as condições de desvio e de re-efetivação.
                Deleuze-Guattari utilizam aqui citações de Hincker e Dobb (AE, 175), de que retenho especialmente a elaboração, por Dobb, do conceito de feudalismo de Estado. O sentido dessas citações é mostrar que a única coisa que o feudalismo precisava impedir era que a mercadoria introduzisse a descodificação de fluxos, de modo que a produção mercantil tanto quanto a posição central do rei, não só não ofereciam perigo ao sistema como eram constitutivos dele, enquanto puderam reforçar a servidão e o conjunto das estruturas feudais. Ao par virtual/atual da estrutura, substitui-se agora o par abstrato/concreto como mais adequado a essa relação do Estado, enquanto Forma do Império, com os Estados localizados que o efetivam.
                Já quanto à relação do capitalismo com o Estado, Deleuze-Guattari observam que o Estado capitalista não tem como tarefa a sobrecodificação do território, e mais geralmente, não conserva a função centralizada que reparte a dominação ou determina o sistema. O Estado agora se põe a serviço desse sistema social em que se destaca a composição das classes. Ou seja, se a função do Estado é fazer com que se o deseje ( o déspota, tanto mais amado quanto mais terrível ), o que se deve desejar é a dominação pelo qual ele se institui, e isso não muda com o capitalismo.
A visão do AE quanto a isso me parece bem pós-moderna pois permite pensar a atribuição do Estado no capitalismo como função estética de representação das relações sociais por/para sujeitos-simulacros. Contudo o mais interessante agora será destacar a atuação do momento clássico nessa axiomática do capital.
              À página 203 do AE, Guattari e Deleuze retomam a expressão pela qual deve-se reler a história através da luta de classes, mas agora no sentido de que essa tarefa equivale a ler a história em função da burguesia, a única “classe” real, pois lutando contra os códigos impõe uma sujeição incomparável. Se o capitalismo surge do encontro desses dois fluxos descodificados, o trabalho e o capital, a oposição molar de classes no interior do sistema desempenha-se como mascaramento da organização axiomática pela qual há uma só classe complementar a uma só máquina.
                  Essa classe só se opõe à não-classe, assim como os fluxos axiomatizados do corpo pleno do capital se opõem aos fluxos livres do corpo pleno da produção desejante, o CsO. Mas a axiomática se opõe também à codificação de fluxos que viria impedir o livre jogo do capital. Ora, o momento clássico é o da formação da burguesia. Quanto a isso, Deleuze-Guattari conservam a visão de Marx. O capitalismo é na sua essência, como modo de produção, industrial, (AE, 183) definindo-se pelo poder de converter a mais-valia de código em mais-valia de fluxo - abrir espaço para os fluxos livres do mercado lá onde as operações econômicas estão fechadas por sobrecodificações culturais, religiosas, trabalhistas etc.
              Contudo, se os momentos renascentista e clássico do capital comercial e financeiro são ainda pré-capitalistas, seria simplista associar unicamente pré-capitalismo e mais-valia de código, capitalismo e mais-valia de fluxo, ao menos quanto a esse tópico. Mas a exposição do AE não me parece facilmente retraçável nesse ponto.
             A princípio retém-se a expressão de Marx: antes da máquina capitalista estar em seu pleno funcionamento industrial, o capital mercantil e o financeiro entram em relação de aliança com a produção não-capitalista remanescente do feudalismo, instala-se “nos poros” do antigo Socius.
Nesse momento, que poderia parecer estar sendo focalizado como tipicamente transicional, a moeda como equivalente geral das trocas instaura já um reino da quantidade mas se o que ela mede são os quanta particulares de uma unidade de trabalho abstrata, o particular sempre permanece conversível como união formal de objetos produzidos.
Troca e moeda permanecem sobrecodificáveis, e vimos que na economia clássica assim como descrita por Foucault, não obstante as oposições entre as escolas o que se mantinha comum era o mesmo quadro em que a produção se instalava como que de uma vez, na totalidade, como relação pré-fixada, pré-estabelecida na convergência “natural” de necessidades e bens, a relação do valor surgindo sempre como um meio.
              Conforme o AE, o capital deixa de ser de aliança para se tornar filiativo apenas quando o dinheiro produz dinheiro, o valor é como que autopoiético, mercadoria e moeda atuando como formas puras, meios conversíveis no universo determinante que é o do valor. Agora o capital comercial e o financeiro assumem funções específicas dentro de um esquema que relaciona apenas capital variável e capital constante, isto é, a abstração se torna independente de qualquer particular.
             Assim não parece muito contraditória a referência anterior ( AE, 183), pela qual se afirma, após a exposição do funcionamento bancário tal como implementada por Suzanne de Brunhoff, que se em essência o capitalismo é industrial, seu funcionamento é mercantil ou uma aliança de capital mercantil e financeiro.
Na exposição sobre o funcionamento do sistema bancário intervém a consideração da diferença entre moeda de troca e moeda de crédito, isto é, a dualidade do dinheiro, seja ligado ao salário (corte-extração sobre fluxo de consumação) ou ao manejo empresarial (corte-destacamento de cadeias econômicas sobre fluxos de produção). Agora retoma-se essa dualidade para mostrar que não há medida comum entre o valor do capital das empresas e o da força de trabalho como valor de salário, pois as cifras são incomensuravelmente maiores no que tange aos valores operados pelas empresas, e elas não se destinam a uma conversibilidade simples a produtos de consumo mas ao investimento na produção, ao crescimento incessante.
Assim pode-se mesmo supor uma tendência à diminuição da taxa de lucro. A margem de extorsão da mais-valia diminui inversamente ao incremento de fatores convergentes no sentido de subir o valor da força de trabalho assalariado. Mesmo assim o capitalismo se mantém, pelo deslocamento sempre ilimitado dessa tendência, de modo que faz de sua própria impossibilidade o motor do sistema.
             Pode-se aqui falar de limites imanentes ao capitalismo, de que essa tendência seria um exemplo. Quanto a isso, não é contraditório afirmar que o capitalismo não tem limites, pois esses são os limites que ele, por natureza, está sempre deslocando, mesmo que Deleuze-Guattari utilizem a expressão “limite interno”, para esse limite deslocado que está sempre se abolindo (AE, 184-5), expressão que anteriormente vimos, num outro contexto, associado ao Édipo e indeslocável. Aqui, porém, parece-me que a expressão está sendo utilizada com esse sentido, relativo à imanência, ao funcionamento paradoxal do sistema.
Ora, a baixa tendencial conduz a economia aos setores sempre mais progressivos, a fim de deslocá-la enquanto limite interno. Esses setores estão no centro, não sendo só mais progressivos mas também os mais automatizados. Concomitantemente, a economia vai induzir, na periferia, investimentos destinados a cobrir a margem de diminuição, isto é, na periferia deve-se produzir uma alta da mais-valia pela exploração ilimitada da mão de obra local.
Assim a acumulação não se produziu de uma vez, como primitiva, mas está sempre se produzindo, já que é a periferia que, pode-se afirmar, efetivamente exporta capital para o centro, não inversamente como se costuma supor. É por isso que seria simplista limitar a mais-valia de código ao pré-capitalismo, pois se os códigos subsistem é devido a que a máquina técnica pode organizar seus fluxos. As sociedades pré-capitalistas sobrecodificam, o capitalismo descodifica, de modo que é o capital que faz a máquina, não o inverso.
Essa operação de descodificação, no entanto, libera fluxos e toma os próprios códigos como fluxos. Assim, a ciência e a técnica têm seus fluxos de códigos liberados pelo capital para que este possa engendrar uma mais-valia maquínica que unirá à mais-valia humana, corrigindo a tendência e formando, ambas, o conjunto da mais-valia de fluxo que é essencial ao sistema.
Pode-se por esse meio constatar a singularidade do capitalismo, agora na relação que mantém com o Estado. Assim, fluxos descodificados também se presentificam nas formações estatais pré-capitalistas, como em Roma ou no feudalismo, circulação de moeda e mercadorias, acúmulo de riquezas. Mas o Estado pré-capitalista se mantém, como unidade abstrata, na função de refazer códigos sobre esses fluxos. E se as coisas chegam a um ponto de mutação é porque tal função não pode mais ser mantida.
Ao invés do capitalismo implicar a obsolescência do feudalismo, o inverso é que ocorreu. Nesse sentido se pode compreender porque é que a era despótica se instala de uma só vez, mas o capitalismo depende desse longo intervalo que abrange a Renascença e a Época Clássica. O que se relaciona ainda com a pergunta: porque o capitalismo na Europa, se houve através da história tantos meios em que teria sido possível a sua realização?
Os capitalistas chegam sucessivamente, mas tudo o que eles introduzem não basta para determinar o novo Socius, até que o capital possa se apropriar diretamente da produção, isto é, pressupondo a burguesia como classe, todos os fatores da ocidentalização que convergem no sentido de tornar efetivo o processo de descodificação, o correr livre dos fluxos da produção e do capital. Ora, o não-codificado de fluxos só se torna desejo pelo encontro de uma descodificação generalizada, uma desterritorialização massiva e a conjunção desses fluxos livres, o que pode, a meu ver, servir de balizamento a uma leitura da história da burguesia no Ocidente.
Isso implica um novo papel do Estado, pois ele se torna uma instância anti-produtiva a serviço da extração da mais-valia, ao invés de uma instância de sobrecodificação dos fluxos. O Estado se torna o complexo político-militar-econômico que organiza a extração da mais-valia nas zonas periféricas, impedindo que se produza fora da axiomática do mercado internacional, organizando também a mais-valia maquínica no centro.
O Mille – Plateaux (MPx) repõe a tese da forma-Estado, abstrato irredutível a suas formações concretas, concebendo-o agora como unidade de composição ou meio de interioridade, numa espécie de continuun formado pelos textos sucessivos, o Tratado de Nomadologia e o Aparelho de Captura.
Conceituado como Aparelho de Captura, o Estado opera a integração global, a redundância da ressonância dos centros localizados das comunidades primitivas e a estratificação territorial. Essa função o instala como limite da máquina de guerra nômade e da máquina territorial primitiva, na medida precisa pela qual elas o pressentem e o conjuram. Assim Guattari e Deleuze utilizam aqui essa proposição que se encontra já na tese de Clastres, conforme a qual as sociedades não estatais não o seriam por uma falta ou um menor grau de desenvolvimento, mas seriam formações sociais que pressentem a possibilidade do Estado e criam mecanismos destinados a inviabilizá-lo.
Contudo, a reposição da tese da forma-Estado acarreta a oposição de Guattari e Deleuze às diversas hipóteses que dele pressupõem uma origem, incluindo a de Clastres que a propõe de modo ambíguo, conforme esquemas possivelmente utilizáveis (fator demográfico, poder do profetismo). Opõem-se assim também às hipóteses de Nietzsche, que compreendeu a infinitização das castas pelas genealogias profundas e filiações intensas (AE, 159) e de Marx, que pensa o surgimento do Estado como transição, desenvolvimento de forças produtivas com diferenciação de forças políticas.
Ora, a reposição dessa tese do Ustaat vai agora se relacionar à afirmação de uma topologia social. As formações sociais, definindo-se por processos maquínicos, coexistem seja intrinsecamente, por interação, ou extrinsecamente, por apropriação, resistência ou metamorfose (um sistema se metamorfoseia em outro mas para continuar a funcionar secretamente).
A topologia social, como programa pelo qual se pode compreender um dado contexto histórico complexo através da cartografia dessa coexistência, supõe uma tipologia que abrange as formações. Com efeito, elas podem ser: sociedades primitivas (mecanismos de conjuração-antecipação), sociedades de Estado (aparelhos de captura), sociedades nômades (máquinas de guerra), organizações internacionais ou ecumênicas (englobando formas sociais heterogêneas).
Aqui se retoma o problema do nascimento do capitalismo, agora relacionado ao funcionamento maquínico do Estado como estrato ou “Aparelho de Captura”. Assim não só as máquinas nômade e primitiva conjuram o Estado despótico arcaico, mas também se verificam mecanismos de conjuração nas cidades (“Villes”), feudais e “pós-feudais” (Renascença e época clássica), destinados a evitar o Estado capitalista. São mecanismos que inibem a conjugação geral dos fluxos descodificados do capital mercantil e financeiro.
Se os mecanismos de conjuração-antecipação se encontram voltados tanto contra o Estado quanto contra o capitalismo, pode-se compreender que o capitalismo só se impõe ao lograr unir-se ao Estado, o que se processa como criação desses Estados nacionais que estão progressivamente se consolidando no período “pós-feudal” como um todo. Resulta daí a formação das nações ocidentais, modelos de realização para uma axiomática de fluxos descodificados.
A exposição sobre a aparelhagem de captura é bastante extensa e detalhada, de que retenho apenas alguns aspectos. O Estado é sempre constituído como espaço geral de comparação, centro móvel de apropriação, sistema muro-branco buraco-negro que compõe o rosto do déspota. Seus aparelhos de captura são a renda, o lucro, o imposto. Mas o Estado apresenta dois pólos de captura: a) o imperial despótico; e b) a esfera pública, em que a apropriação se torna privada.
Com o Estado, ao invés de relações comunais objetivas, o laço se torna pessoal, as relações se exercendo entre pessoas privadas , quando não mais se trata do pólo imperial de sobrecodificação de fluxos mas sim do pólo capitalista de organização da conjunção de fluxos descodificados.
Ora, esse segundo pólo se estende sempre que os Estados evoluem, tanto no Oriente quanto no Ocidente, e mesmo as cidades e feudos supõem, nesse sentido, um império, apresentando variadas formas. O assujeitamento social como processo de subjetivação lhes é comum, bem como o direito se torna subjetivo, tópico e conjuntivo. É a evolução da sociedade privada, associada agora, finalmente, ao capitalismo, que substitui a propriedade como expressão do laço de dependência pessoal, pela independência de um Sujeito que constitui o novo laço.
Ao invés da propriedade portar sobre terras, coisas ou pessoas, pelo direito, ela porta agora sobre o direito mesmo. Ao invés de sobrecodificação de costumes (Império arcaico) ou conjunto de tópicos (Estados evoluídos), o direito se torna a forma e o caráter da axiomática (Estado Capitalista). Com o capitalismo o Estado não se suprime, mas toma a forma de modelo de realização da axiomática, o que define os Estados- nação, isomorfos por relação à axiomática do capital (meta-economia), mas polimorfos por poder comportar, conforme a estratégia internacional, todas as formas (totalitários, democráticos, liberais, etc).
Essa temática do direito deve nos interessar particularmente por inserir-se no cenário do período clássico, de modo a ressoar com certos conteúdos do Curso de Vincennes, em que Deleuze expõe a filosofia de Spinoza. Compreende-se a relação entre esse tema e as transformações em curso, no período clássico, nas teorias jurídicas e políticas. Ora, Deleuze assinala a entrada nesse período, que ele designa no Curso como constituindo o “Mundo Barroco” , precisamente pela implementação do direito moderno. Aqui o personagem importante é Hobbes, que introduz a transição do antigo direito natural ao moderno direito social.
Os fundamentos do direito natural antigo são comuns às mais variadas teorizações até o “pós-feudalismo”, mas pode-se assinalar os seus momentos fortes com Cícero (Antigüidade) e São Tomás (Cristandade). O mais básico aqui é a concepção essencialista que define a natureza das coisas. O direito é “natural” por se propor conforme a essência que define o ser, a natureza mesma da coisa. Assim ser animal racional é o direito natural do ser humano, ser racional é a lei de sua natureza.
Por esse meio nada precede a sociedade, pois a boa lei, ou verdadeira lei, é a da natureza mesma. O estado de natureza é aquele conforme a essência, na melhor sociedade, que é aquela em que o ser humano pode realizar a sua essência.
Ora, o fundamento do direito é assim o dever, pois todo direito tem por correlato um dever, como “officium”, o termo latino que Cícero utiliza, algo como o dever funcional cujo cumprimento é condição de realização da essência. Mas quem pode dizer qual é, em cada caso, a essência? Quem tem a competência da essência? Na sociedade antiga, o sábio, na cristã, a igreja. Em todo caso só quem possui a competência da essência pode bem orientar a conduta da vida, sendo essa competência o conhecimento.
Com Hobbes, já no mundo barroco, reverte-se a base mesma do direito natural, pois à definição do ser pela essência substitui-se a definição pela potência. O direito de natureza abrange assim tudo o que o ente pode, independente de se ter que decidir sobre o que ele é. Mas desse modo o estado de sociedade precisa ser outro, não pode se confundir com o estado de natureza, pois em sociedade existem interdições, se todos fizessem tudo o que podem, quem subsistiria nessa guerra generalizada?
Ora, Deleuze mostra assim que uma certa crítica que se costuma fazer a essa tese de Hobbes é ingênua, pois ele não supõe que deve ter havido concretamente um tal estado de natureza prévio ao de sociedade, ele só o supõe logicamente. E penso que se pode inserir aqui o tema da reversão da teologia e do mito como fundo constitutivo da episteme, pois a decalagem entre natureza e sociedade se relaciona estreitamente com aquilo que, conservando o termo ainda que com outro uso, designo ideologia.
Há agora espessura crítica na constutividade conceitual da sociedade, ao invés de uma inscrição da episteme na própria gênese do ser cujo conhecimento fundava a possibilidade de saber. Contudo, se só posteriormente se poderá desenvolver essa proposição, por ora deve-se observar que essa decalagem entre natureza e sociedade impõe um devir como ascenção de um estado a outro.
Com efeito, o direito como potência é o dado inicial, original. Mas é o dever que deve interditar esse direito que impede a conjunção em sociedade, o dever é a defesa da sociedade, ao invés de ser um correlato da essência.
Ao invés de um Adão que perdeu seu estado original essencial de direito, temos o cidadão que precisa asceder ao seu estado social de convivência. Resta a contingência dessa operação de socialização, que não podia antes ser vista, nem proposta: é ela necessária? Por quê? Mas restaram também as reações provocadas – Hobbes adquiriu bem depressa a pior reputação e Spinoza, que quanto a isso lhe permaneceu fiel, foi, como sabemos, excomungado.
Nesse mundo barroco hobbesiano, o louco possui o mesmo direito natural que o são, mas não o mesmo direito civil. Ora, para compreender qual é o meu direito natural, ninguém é mais competente que eu, minando-se assim todo domínio de autoridade quanto à essência, pois da potência só se “sabe” quando se sente que se a exerce, compreendendo que se pode exerce-la ou não.
Spinoza desenvolverá amplamente as conseqüências desse pensamento da potência. Ele vai afirmar assim que não se pode ter conhecimento de um ser por sua definição, pela sua pertença geral a uma espécie, mas apenas traçando a cartografia de sua potência, compreendendo a variação do seu poder de afetar e de ser afetado, poder esse que nada de prévio determina, que só se pode visar a partir da experimentação e da observação.
Assim o estado de sociedade, conforme Hobbes, resulta do consentimento, não da competência, da adesão dos participantes, não de um conhecimento privilegiado. Ora, na topologia social do clássico, em que penso ser possível observar a convivência dos elementos do Estado evoluído e do capital em vias de formação, esse consentimento se visava ao modo de representação monárquica. O Estado nacional só poderia se fechar, em torno de um esquema de descodificação crescente comercial e bancário, à custa da recodificação do protecionismo, do mercantilismo e do absolutismo, que só designavam a liberação das trocas por sua estabilização (sobrecódigo) na concretude do metal ou do poder central.
Quanto a isso, Deleuze assinala o limite que para o pensamento de Spinoza representava a democracia. Mas se a circunscrição do período barroco, quanto à topologia, parece-me suficientemente determinada, resta a sua consideração mais geral, por Deleuze, enquanto mundo.
O MPx, no texto sobre o “Ritornelo”, aí onde se trata de caracterizar as artes clássica (arte da terra), romântica (arte do território) e moderna (arte do cosmo), afirma que jamais se poderia traçar um fronteira nítida entre o barroco e o clássico ( MPx, 417). É´ o mesmo modo de afrontar o caos, o um-dois rítmico que cria um meio, depois conjuga os meios que se sucedem. Se um ruge no fundo do outro, é no sentido em que ambos são extremamente ágeis nesse afrontamento, sempre perigoso, do caos: a tarefa do artista-deus, a árvore da criação. Afrontamento das forças da matéria indomada que é preciso sempre, por meio da imposição da forma, fazer consistir em uma substância ou código, em todo caso o meio.
Não me parece haver contradição entre essa asserção do Mpx e os estudos da Logique de la sensation, que quanto a isso convergem com certos registros do Curso de Vincennes e com o livro sobre Leibniz e o barroco (“A Dobra”), onde se destaca uma compreensão do barroco por oposição ao clássico. Contradição que seria uma conclusão extremamente simplista portando sobre uma obra como a de Deleuze, parece-me ser possível observar que se é o mesmo meio de enfrentamento do caos, pode não ser o mesmo regime, ou o mesmo “mundo” no sentido de seus pressupostos ou de sua topologia, do que aquele da Antigüidade ou da Renascença. Assim a expressão “época clássica” não iria se aplicar agora com tanta conveniência quanto “mundo barroco”.
Assim em Logique de la sensation, que retoma temas expostos no Curso de Vincennes, Deleuze observa o corte entre a arte clássica do quinhentos – representação orgânica, sempre relacionada à essência como sua manifestação – e aquilo que surge a partir do século XVII, como liberação da sombra e da luz, em um espaço designável agora como o do ótico puro. Ora, esse clássico, como sendo o espaço da representação orgânica, é comum a Renascença e Grécia. Já o espaço ótico puro é comum ao mundo barroco do século XVII e à arte bizantina.
Compreender essa compartimentação nos permite alcançar a unidade profunda que a terminologia de Deleuze, “mundo barroco”, introduz como se fosse agora um todo complexo, fechado, em que vários níveis, políticos, sociais, epistemológicos e artísticos, se conjugam e ressoam. O mais proveitoso me parece iniciar pela problemática matemático-filosófica envolvendo a conceituação do infinito no prolongamento da conceituação do ser pela potência.
Esse prolongamento se instala, no Curso de Vincennes, no exame da questão filosófica da individuação em Spinoza. O que Deleuze introduz quanto a isso são duas noções importantes, de que retenho aqui apenas o essencial `a compreensão estética em causa, já que teremos oportunidade, posteriormente, para uma aproximação mais detalhada da filosofia de Spinoza.
Trata-se da noção de indivíduo como potência e da noção de indivíduo como composição de relações. Particularmente quanto à composição de relações, ela tanto se designa no processo de individuação, as relações que compõem o complexo individual, por exemplo, relações intra-orgânicas, relações com o meio, relações perceptivas, etc., quanto se estende entre os indivíduos. Observa-se que no que tange ao processo de individuação, do ponto de vista das relações não se pode considerar o indivíduo como substancial, mas já se o pensa numa complexão que envolve o infinito.
Esse é um modo novo de pensar a noção de relação. Pois a relação aqui é independente dos seus termos, relação absoluta. É´ isso um peculiaridade do século XVII, ter proposto a noção de relação independente dos termos que define o âmbito do cálculo infinitesimal, o domínio do infinitamente pequeno. Nesse domínio conserva-se a independência da relação, mas de modo que a tendência ao limite torna tanto a relação quanto o infinito imanentes ao finito.
Esses três termos – infinito, relação, limite – assim como propostos na concepção do cálculo característica do século XVII, tornam-se coextensivos à matemática e à filosofia. O infinito se define por esse certo tipo de relação ao infinito portada por algo finito. Assim o século XVII vê o indivíduo a partir do limite, como relação que o compõe em si e com os outros indivíduos, pondo por esse meio tanto o finito de sua limitação quanto a infinitude de suas composições. Conforme Descartes, pode-se conceber o infinito, mas não compreendê-lo. Pode-se alcançar sua razão de ser conceituado (razão de conhecer), mas não seu modo de ser atuado (razão de ser).
Ora, a tendência ao limite define também a potência, em Spinoza, como tendência a perseverar no ser, o Conatus. Mas como se está assim concebendo o limite?
O “peras” grego-platônico se articula como contorno da forma. A essência, o indivíduo, são assim a forma reportada ao contorno. Isso exatamente do mesmo modo que o tátil-ótico da pintura clássica, o tátil que é contorno, o ótico que é a essência enquanto visível-compreensível. O exemplo aristotélico da estátua o expressa bem. A estátua é a forma que se torna visível por seu contorno tátil, mas a visibilidade do contorno só se pode assegurar por que o que ela deixa ver é uma forma, uma essência.
O molde tátil torna possível ver a forma que torna possível que o que se está vendo seja um molde, esclarecendo-se assim a relação entre forma e matéria.
Já o estoicismo se introduz em um outro ambiente grego, não “clássico”, o estoicismo mesmo representando o elemento oriental dentro do mundo grego. Nessa concepção, a natureza não procede por moldagem, pois o limite da coisa não é o de sua forma, mas o de sua ação. O oriente também se põe na filosofia através de Plotino, deslocando o limite-contorno da forma e instaurando algo que Deleuze vai designar limite-espacialização. Enquanto o mundo clássico pensa o limite no espaço, e o espaço como algo dado, Plotino concebe a espacialização como desenvolvimento da gradação da luz relativamente à sombra. Assim ao invés do espaço como um dado estático, temos o espaço como resultado variável, relativo à espacialização.
Estudando o período helenista, já observamos a convergência de Plotino com a arte bizantina. Aqui anula-se o tátil justamente por deslocar a relação de profundidade, desde o interior do quadro, ao espaço entre o mosaico e o espectador. Podemos lembrar agora como o helenismo determinava o quase-pensar do sujeito, mas ele não o desenvolvia plenamente, assim como se o constata desde o pós-feudalismo.
Ora, se o século XVII, com Descartes, define a região problemática do sujeito, Deleuze afirma que o problema da individuação põe essa noção característica da época, a de infinito atual – o infinitamente pequeno pertencendo aos corpos finitos. Logo, põe no mesmo lance uma transformação da noção de contorno. Justamente o que a liberação da luz no espaço ótico puro torna importante é o papel do fundo, que desde Tintoretto e Caravaggio se torna sombrio, marrom-avermelhado.
A forma ótica surge do fundo, não do contorno, isto é, surge do regime de luz e sombra, da espacialização que o artista impõe ao quadro pelo manejo desses dois elementos, não de um limite traçado pela linha-contorno de sua forma.
É o conjunto do quadro que anula tanto as distâncias quanto as proximidades, esses dados que tornavam o que se via “tátil”. Tal anulação se deve a uma relação constitutiva da luz-claro com a sombra-escuro. Os acidentes não manifestam a essência, são puros acontecimentos (graça ou milagre). Surgindo do fundo, a figura, no ótico puro, não se relaciona a um molde externo e é interessante o paralelo que Deleuze estende com Buffon. Procurando compreender a produção do ser vivo, Buffon propôs essa noção, que ele mesmo considerava contraditória, ainda que adequada, de “molde interno”, que penetra a massa e informa os seres vivos.
Como resultado da espacialização, que se faz pela relação de sombra e luz, o espaço ótico puro do barroco também se harmoniza com a concepção de Newton sobre a luz, que enfatiza a tonalidade (contraste de preto e branco, saturação), concepção que se opõe à que virá a ser a de Goethe enfatizando o valor (oposição de verde e vermelho, azul e amarelo, frio/quente).
Ora, essa dualidade de claro-escuro corresponde a um “intimismo”, define um espaço interno, “foyer”, que se estende ao mundo, reintroduzindo a eventualidade de uma narrativa. A interioridade que vimos, anteriormente, como meio de afrontamento do caos, comum `as artes clássica e barroca. Mas compreendemos agora como é que não pode ser o mesmo regime, pois o clássico o consegue pela externalidade do molde que define o limite de uma interioridade enquanto essência, e o barroco estabelece o quadro mesmo enquanto essa interioridade da qual a figura emerge do seu próprio fundo sombrio, o contorno é a própria espacialização.
Mas assim o barroco instaura uma relação essencial da arte com a filosofia, o que se pode ver com Leibniz, pois “o essencial da mônada é ter um fundo sombrio” ( A Dobra, 88). E desse fundo a mônada tira tudo, nada vem de fora. Ora, aqui se torna também proveitosa a aproximação com a arquitetura. Pois trata-se de repor na partição arquitetural caracteristicamente barroca de fachada e interior, aquela que se estende conceitualmente entre o exterior da matéria (lei física do fenômeno) e a interioridade da mônada (princípio metafísico da vida).
A arquitetura barroca autonomiza a fachada tanto quanto o interior, de modo que a relação entre esses elementos deixa de parecer “natural”, precisa agora ser pensada em termos de um novo sistema de harmonia, que a partição do interior em dois andares vai resolver – o andar inferior encarregado de algum modo da fachada, pelo menos por se manter no mesmo nível, e o andar superior permnecendo puramente metafísico, mas ambos pertencentes ao mesmo mundo, à mesma residência.
A dobra arquitetônica dos dois andares, e a que corta a relação da fachada com o interior, ressurge porém na pintura, como linha de luz que ora opõe claro/escuro, ora as trevas e o fundo. Mas ela se instala por todo o mundo barroco. Está na música, que sobrepõe a harmonia verticalizada, proeminente, em relação à proliferação melódica das horizontais “menores”. E mesmo na vestimenta: as ondas infláveis do calção renano que tem forma de saia, o transbordamento da camisa, a grandeza exagerada do colarinho.
O barroco é um verdadeiro sistema estético da dobra, que prolonga as artes tornando-as Socius, espaço público que a cidade-cenário do teatro povoa de bailarinos.
Ora, a dobra filosófica inaugura essa região que o novo sistema leibniziano faz localizar entre os dois andares, zona de inseparabilidade entre o mundo – atualizado na alma e realizado no corpo – e o “eu” que se torna constituído nessa nova relação público-privado em que às almas privadas pertence já um estatuto público. A dobra é efetivamente essa região.
Penso que já há elementos suficientes para afirmar que, tanto quanto Foucault, Deleuze expressa uma irredutibilidade desse período, o que se pode reter dessa terminologia “mundo barroco”. Com efeito, em vários lugares Deleuze mostra que certas concepções como a de limite atual, ou de interioridade “dobrada”, são peculiares a esse período e que é custoso compreende-las hoje, ou mesmo reconstitui-las.
Topologicamente entrelaçando a escalada do capital dentro de uma evolução do Estado que articula as formas-cidade com o processo de formação das nações, lugar da partição público/privado sem que se tenha instaurado ainda a “Subjetividade global” de que fala Marx, relacionada ao espaço público já investido pela máquina capitalista (1 MPx, 564-5), não parece contudo que se trate aqui de “mundo barroco” como de uma formação transicional. Em Guattari e Deleuze ele apresenta uma autonomia, como um contexto topológico preciso, que se pode de um modo ou de outro, reconstituir.

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